O cabeleireiro escutava o som calado da tesoura enquanto eu escutava um outro
som pertinho do meu coração.A minha cabeça afagada devagar
pelos meus próprios pensamentos, à procura da palavra, chegando
até aos pulmões, sem fôlego, sem revelação
nenhuma
Tenho perdida a minha dor - penso com os olhos fechados. Num momento qualquer
repousava entre as mãos, trêmula, quase tranquila, fazendo o que
a dor faz
Como uma corda esticada sob o peito, mantendo acordada a certeza
duma realidade - ele morreu, mas ainda o tenho presente.
E depois, o quê? Um esquecimento, um deixar passar-se, um murmúrio
surdo. Perdi o fio da meada
Algumas vezes as lágrimas chegam, como janelas abertas para a claridade
daquela dor.
A terra falada de longe, úmida de juventude, mais nova quanto mais
tempo se passa - quanto mais são os cabelos arranjados e penteados.Os
anos caem, é certo. São os desenhos dos caracóis no chão
que ficam como lembranças.
Um espelho diante de mim o dia todo e nem consigo ver o meu reflexo.
O som cresce, desliza pelas vias geladas que percorrem a pele - o sangue
quente, porém - Atinjo ouvi-lo, como a nota duma viola repetida inumeráveis
vezes, até mergulhar-me numa chuva desconhecida, onde tudo se mexe. A
dor e a saudade dela.
Terra molhada, habitada pelos espíritos que em menino via aparecer quando
as avós se reuniam ao redor do fogo, cujas labaredas tinham a qualidade
de fazer olhar as respostas às perguntas que não se tinham feito.
Aqueles rostos pasmados por uma magia quotidiana maravilhavam-me, pois sentia
que ninguém deixava de ser criança.
Fora está frio.Cá permaneço com o que se tem perto, como
uma caligrafia invisível, sem adivinhar o que se conta. Por isso é
tão triste não compreender a escrita que fala assim.
Tudo resta na memória, tudo mora lá. Saudade é perder
o que não pode ser perdido.