Não falar, mas não calar esta voz que é
escritura
As fogueiras no ar, Gabriela Andrade
A flor falava do mar, do céu, dos amores antigos, de idas e vindas em
longas viagens. Dantes, foi semente na areia dourada, sonho dum deserto com
a beleza dos séculos.
Chegou há tempo, à procura dum homem e duma mulher. Cem anos
esteve, mas não sozinha, pois aquela praia onde nasceu era o lugar de
encontro dos amantes. Foram eles que fizeram crescer a flor com o suor dos corpos
abalados, com a chuva das lágrimas de despedida.
No início o vento só trazia restos de navios, cantos na distância
ou rumores da vida na água. A alma dela estava apertada no interior da
casca e tudo era invisível. Então ouviu o que esperava.
Alguém acendeu uma vela e a dura cera transformou-se em esperma, enquanto
uma voz dizia palavras tépidas e as ondas salgadas batiam uns pés
que saiam da escuridão...
Aquela noite a flor acordou.
De manhã, duas primeiras folhas molharam-se com o orvalho e dois primeiros
dedos acariciaram a flor sem flor. Depois o sol ardente fecundou o verde ventre
das cores do arco-íris e um beijo esquecido foi gérmen nas raízes.
Ao cair da noite os amantes olharam o milagre florescido e souberam o destino
compartilhado deles três.
Quem amou mais à flor ? Ele ou ela ? Ele vinha as tardes todas com pedras
do rio onde morava, para fazer pulseiras e colares. Ela trazia doces e maçapão,
para os lábios ternos. A flor sentia-se amada e dava-lhes anéis
feitos com pétalas, um por cada noite de calor e sal.
As estrelas contavam-lhe, com verbos secretos, histórias sobre a pele
deles, sobre as marcas masculinas e femininas confundidas nos corpos adormecidos,
entre os restos da fruta aberta, que apanhavam do chão todos os dias
quando o sol saia. Segredos vegetais que a flor escutava e sabia próprios.
Toda a flor da maravilha é macho e fêmea ao mesmo tempo. Todo
o amor é como uma flor maravilhosa.
Mesmo aqui o conto não fala ou fá-lo como a flor...
Daqui em diante somente há escritura: há um jardim filho das
primaveras passadas; há um porto de onde partem as novas ilhas; há
cartas marítimas para ler aos náufragos.