-Primeira Parte-
Da Viagem do Mestre e seu ajudante, o narrador,
à Índia e dos mistérios e maravilhas que ali encontramos
As caravelas estavam a sair de Belém. As prateadas águas do rio
Tejo agitavam-se levemente por impulso de uma ligeira brisa, que também
insuflava ar nas brancas velas das caravelas. O meu amo olhava para o céu,
tratando de adivinhar o azar da viagem que iniciávamos para a Índia.
A mirada dele ficava escura, enquanto os gritos das gaivotas ensurdeciam o ir
e vir dos marinheiros com as diferentes cargas e materiais para ficar no porão
( alimentos contra o escorbuto, tonéis de água, velas e mastros
de reposto, garrafas de vinho do Porto e demais objetos misturados com pessoas
e animais de toda classe ). O vento açoitava a sua capa. Eu sabia que
abaixo dela levava os seus valiosos papéis e pergaminhos, apertados ao
peito com umas faixas de couro. Essa era a nossa carga, o nosso peso, o motivo
de partirmos tão longe: assim salvávamos a nossa vida.
A mesma vontade de el-rei para lutar contra os infiéis levava-nos a fugir
das afiadas garras da Inquisição: o Mestre foi investigado pelos
seus estudos sobre o voo de aves e bruxas, umas com assas, as outras com vassouras...O
perigo era tal que todas a recomendações de amigos e conhecidos
foram desaparecer quanto antes de Portugal.
Podia olhá-lo naquele momento: a sua figura magra, a longa barba, as
mãos delicadas...tudo parecia-lhe tremer ao mesmo tempo. Não era
medo. Na verdade, tremia de tristeza, pela interrupção das investigações
que tão meticulosamente levava adiante entre as suas obrigações
como astrônomo real. Agora partia para aquela viagem conturbada, só,
com os seus próprios pensamentos, e comigo, seu jovem ajudante.
Ainda gozava de alguns privilégios e poderíamos mudar entre as
diferentes naus e caravelas que o Capitão-mor Vasco da Gama tinha sob
o seu comando.
Um sorriso ao escutar a ordem para levantar âncora, fez-me saber que
ele tinha adivinhado bem na visão dos pássaros a traçarem
signos entre as nuvens. De seguida os seus lábios voltaram a fechar-se
com força e penetrou no camarote , com o olhar perdido nas suas próprias
nuvens.
Sabendo que procurava solidão me aproximei a proa e contemplei como
a frota inteira afastava-se do porto de Belém. Fechei os olhos e murmurei
para mim um de tantos encantamentos que tinha escutado tantas vezes na boca
das mulheres que visitavam o Mestre.
Naquela noite dormimos como passarinhos até que os gritos da tripulação
nos acordaram. O sol ainda parecia molhado e as nuvens semelhavam farinha estendida
sobre a mesa do padeiro... De seguida uma grande atividade encheu a coberta:
marinheiros a limpar, os oficiais a manobrar o astrolábio, aprendizes
consultando a bússola e a balestilha, naturalistas da Academia de Ciências
a examinar a pesca de amanhã e diplomáticos e nobres falando sobre
as grandes possibilidades de negócio na Índia.
Assim decorreu a viagem até a chegada ao porto de Calecute, trás
vários meses de vagas alterosas e de inúmeras ocasiões
em que estivemos em perigo de naufrágio. Uma vez desembarcamos fomos
a nos instalar nas dependências do Samorim de Calecute.. Ao mesmo tempo
que o Capitão-mor e o Malemo Canaca ( o piloto mouro que levou com ele
) falavam sobre instrumentos de navegação e mapas antigos, nós
saímos a passear pelas ruas cheias de pessoas, animais esquisitos e cores
sem fim.
Caminhamos por estreitos becos, onde a luz do dia quase não chegava
e onde o silêncio era um rumor audível. Foi numa destas quando
encontramos uma janela aberta e iluminada tenuemente. Ali, uns grandes olhos
de mulher contemplavam os nossos passos curiosos com uma fixidez embruxadora...Nesse
preciso momento, começou a chover e uma cortina de água empapou-nos
de imediato. Entretanto, a misteriosa mulher desapareceu. A seguir uma trovoada
sacudiu o céu e escapamos por entre as casas de telhados achatados, ouvindo
detrás das paredes os acordes musicais que invisíveis instrumentos
faziam estremecer à própria chuva...Simultaneamente as cores e
cheiros golpearam os nossos sentidos extasiados. Nem soubemos como atingimos
chegar à morada.
Mais tarde, quando a chuva cessou e estávamos deitados nos leitos com
os olhos abertos, não podíamos esquecer aqueles outros: como duas
luas decoradas com os pigmentos que tínhamos visto nos postos das mercearias
de especiarias. E como dois lobos-homens ficamos até bem entrada a madrugada.
No dia seguinte voltamos à nave. O Mestre andava com o olhar fixo naquelas
nuvens que semelhavam talhadas numas pedras brancas e vaporosas: dias depois
partiríamos para Cochim, a Branca.
O dia da chegada estava calor. Tudo era movimento no porto. Sem afastarmos
muito caminhávamos entre os postos de peixe, quando um cheiro particular
deteve os nossos passos. Entre um montão de especiarias ( grandes como
pessoas ) uma mulher movia-se com graça de ave. Ao inclinar o seu corpo,
o pescoço ficou à nossa vista e pudemos contemplar uma tatuagem
de hena que desenhava um dragão vermelho. Aquilo foi uma sinal para os
dois. E para o confirmar o céu calmo mudou em ventania. Uma grande confusão
seguiu na fugição da gente para se protegerem do forte vento.
Umas mãos amigas levaram-nos até a nave.
Entre o rugir do vento apercebíamos que o nosso caminho se aproximava
mais ao seu destino.Marinhávamos à gávea para o assinalar
na distância.
-Segunda Parte-
Onde continuam os Milagres da Viagem
E escuta-se o Discurso da Sereia
A tempestade prolongou-se durante oito dias. Como num sonho as pessoas pareciam
flutuar a cada passo e as conversações tornaram-se impossíveis.
Todo o mundo sofria imenso, exceto o Mestre, que aproveitou o forte vento e
a ausência da tripulação na coberta para fazer experiências:
aproveitando paus, pedaços da vela e outros materiais construiu uns passarinhos
que voavam quase invisíveis, ascendendo em espirais velozes até
se perder no confuso céu...
As noites passava-as a escrever, hora após hora, com um entusiasmo que
nem sequer eu compreendia. Quando finalmente o sono o vencia, os lábios
tremiam-lhe, murmurando palavras num idioma desconhecido para mim.
Dias depois, acalmada a tempestade, abandonamos Conchim e partimos para Kerala.
O Mestre e eu passamos aquele percurso a contemplar o mar de âmbar por
onde as naus deixavam traços de ouro. Ao entardecer as aves marinhas
começavam a descer e dançar sobre essas águas misteriosas,
à procura do alimento. Então podíamos afagar seus plumagens
dourados e metálicos, escutando fascinados o som dum milhar de assas
sobre as nossas cabeças.
Mais tarde, quando as estrelas brilhavam duplas no céu e no mar, falávamos
da nossa terra e algum marinheiro tomava a viola, enquanto outro entoava com
voz rasgada alguma canção de saudade. Todos compartilhávamos
aquele sentimento, incluindo o capitão-mor, que desde o castelo de proa
cantava com os mapas na mão.
Chegamos a Kerala numa manhã fresca e tranquila. A costa era rochosa,
cheia de buracos, onde as algas se acumulavam como naufrágios naturais.
Uma pequena frota aproximou-se, construindo com as próprias barcas e
muitas tábuas, uma espécie de embarcadouro para poderem descer.
Dado que o mar estava tão calmo a segurança daquela construção
era confiável.
Desembarcamos e baixo os nossos pés a madeira rangia e arranhava a roca.
A brisa salgada, o som da água, o sol refletido mil vezes na superfície,
excitaram os nossos sentidos. Devagarinho afastamo-nos por entre as pequenas
selvas, onde assomavam curiosas criaturas: caranguejos diminutos, peixes que
pareciam respirar pelas bocas sufocadas, estrelas de mar amarelas e grandes,
ouriços azuis, medusas transparentes e um sem fim de animais que escapuliam
entre as algas multicores.
Ao dobrarmos uma grande rocha, encontramos a maravilha das maravilhas: numa
balsa formada por uma cavidade na rocha olhamos o corpo duma sereia. A pele
brilhava com os diamantes de sal e as mãos afagavam os longos cabelos
que lhe caíam sobre os peitos. A cauda mergulhava-se na água e
movimentava-se como assas de borboleta, quase respirando. Mas, o que ficou na
nossa memória daquele encontro foram os olhos. Rasgados, orientais, abertos
como conchas, fitavam para nós, como descobrindo um tesouro esperado...E
então ela falou com a linguagem dos sonhos do Mestre. Os dois, porém,
compreendimos naquela música uma mensagem destinada para nós dois:
Viajantes que de tão longe vêm, esperávamos a vossa chegada.
Estávamos à procura de corações-nuvens para afastar
o perigo que ameaça às bruxas... O homem fica abismado quando
só o seu pensamento tenta arranjar a realidade. Fica cego, assassina
a magia... Vocês não esvaziaram os corações, estão
cheios como as nuvens de água... As bruxas falam com a Natureza de olhos
transparentes. Escutam a voz sagrada... Com a vossa ajuda pretendemos fazer
um encantamento para dar fim as perseguições que esta cegueira
provoca na vontade humana...Há uma Força que todo o alcança,
compartilhada por cada coisa e ser vivente..E nessa Força podemos intervir..
Encontrem o Cristal de Haryana!!!
Naquela altura do seu discurso, acompanhando à urgência das últimas
palavras, um barulho afogou a voz dela e logo a seguir as vagas chocaram contra
as rocas, formando uma cortina de água. Depois voltaram a ascender construindo
no ar colunas que pareciam ser empurradas pelo oceano todo. Escutamos então
os gritos de terror dos companheiros de travessia ao verem aquela manifestação
terrível do mar. Quando as vagas baixaram outra vez, acalmando-se tudo,
a sereia já não estava. Voltamos à nave, onde a tripulação
ainda tremia. A voz do capitão-mor dava já as ordens para reparar
os desperfeitos, enquanto ditava aos cronistas o que a história lembraria.
Por fortuna ninguém resultou ferido e as naves estiveram prontas a sair
de novo.
À noite, com os ânimos mais calmos, recuperou-se a normalidade.
Os marinheiros cantaram e as estrelas escutaram, os frades rezaram longamente
e a luz do castelo mantinha acordada a nave inteira...Horas depois a figura
do Capitão emergiu para falar com os contramestres: tomávamos
rumo a Goa.
Ao escutarmos a notícia o Mestre tomou-me do braço e caminhamos
até a popa. A nave deixava uma esteira onde a noite se escorava junto
a voz dele:
?A nossa viagem toca destino. Mal cheguemos a porto devemos inquirir sobre
esse cristal de Haryana. Anda de olhos abertos, rapaz. Com certeza receberemos
mais uma mensagem de outra bruxa.
Eu assenti e fiquei calado, enquanto as estrelas caíam ao mar, como
flechas acesas que o céu atirasse.
-Terceira Parte-
Onde os olhos são sonhos e a história não tem fim
Fomos os primeiros ocidentais que chegavam a Goa. A frota foi recebida por
uma multidão de pescadores nas suas barcas, agitando bandeirolas e fazendo
soar trombetas e tambores. O conhecimento da nossa chegada ( e dantes de outros
navegantes ) tinha recorrido aquelas terras de um extremo a outro e a alegria
pela novidade competia com a nossa curiosidade e maravilha pelas roupas, cores
e diversidade de olhares e falas.
Acompanhamos ao capitão e fomos levados para o palácio do Marajá
de Vijayanagar, uma das cidades do estado de Goa. Ali fomos recebidos pelas
autoridades religiosas, ansiosas de qualquer conhecimento novo fora das suas
terras. O Mestre aproximou-se a eles e com a ajuda de um intérprete apresentou-se
e falou-lhes sobre as suas atividades e estudos.
Aquela noite, na ceia que foi dada em nossa honra, os boddhisattvas contaram-nos
muitas histórias e ensinos. Um daqueles sábios relatou a legenda
do "Olho no Céu":
Há muitos anos - começou - numa manhã de Maio, quando
o Sol já estava alto, um grande olho apareceu sobre as montanhas. A primeira
pessoa que o viu ficou espantada com o milagre. Era um olho tranquilo, que parecia
olhar a terra com serenidade. Um só olho em meditação.
A voz correu-se pela comarca e dias depois centenas de pessoas contemplavam
o Olho de Deus desde uma planície desértica, rodeada de escarpadas
montanhas ( onde os mais valentes ascendiam para o admirar. O olho continuava
plácido, embora o barulho das vozes e do polvo que cobriam como um manto
a planície toda.
Muitos alcançaram a iluminação. Outros tranquilizaram
a alma e corpo com a visão do olho. A maioria, depois de o contemplar,
mudavam a sua existência de maneira total.
Meses depois eram milhares as pessoas que viajavam para assistirem a Paz Clara
(Perjalanan, como se disse lá ). O silêncio foi estendendo-se até
atingir uma única voz calada. Então o olho começou a diminuir
o tamanho, ao tempo que descia devagarinho. Uma grande expectação
recorreu a multidão. A pálpebra fechou-se uma vez, e quando voltou
abrir, uma luz muito intensa ocupava o lugar da pupila. Ao fechar outra vez
um jorro de luz, como leite, caiu para a terra. Logo o olho desapareceu.
Alguns vieram como junto ao jorro caía uma joia e tentaram de buscá-la,
mas nunca foi encontrada.
As pessoas voltaram para as suas vilas e cidades, com os corações
cheios de luz, e a legenda continuou até hoje.
Um segundo sábio acrescentou que a procura do cristal de Haryana ( chamado
assim pela primeira cidade que proclamou té-lo encontrado ) era considerada
um caminho de sabedoria, que uma vez iniciado permitia entrar em contacto com
forças espirituais muito profundas. Até tinha surgido uma Escola
Haryana cujos adeptos atingiam estados de iluminação semelhantes
a quem contemplou o Olho. O Mestre perguntou então onde podia encontrar-se
o mágico cristal, lembrando-se das palavras da sereia.
O tercer sábio olhou para ele, mostrando-lhe uma caixinha dourada que
apertava entre os dedos. Lá estava, disse com voz sussurrante. Logo abriu
a tapa e nos mostrou um povinho cor de cinza. Com a ponta da unha depositou
uma pequena quantidade nos nossos copos de água-mel.
O Mestre fez um movimento de gratidão com a cabeça e bebeu devagarinho.
Eu fiz o mesmo, enquanto a conversa continuava, misturando-se com o som do sitar
e as vozes do capitão-mor e o Marajá que falavam de viagens em
longínquas terras.
No meio da sala uma fogueira iluminava com chamas verdes todos os rostos que
me pareciam então fantasmas líquidos. Num momento senti que flutuava
mexido pela dança da labareda e achei que tudo estava ótimo. A
seguir, sonhei acordado como nunca tinha sonhado dormido e despertei, feliz,
no nosso aposento.
O meu amo estava deitado no seu leito, feito de almofadas com desenhos de aves,
coberto de papeis onde, ao me aproximar, a sua letra labiríntica cobria
até o último pedacinho. Ele dormia, assim que tomei uma folha
qualquer e li:
Dentro do fogo vislumbrei um olho formado por outros muitos olhos mais pequenos
que dançavam dentro dele. Depois, uma água encheu o meu peito
e uma voz feminina falou-me com palavras de consolo que acalmaram a minha alma.
Levantei os olhos, espantado com aquela escrita-sonho. O Mestre tinha o mesmo
rosto de felicidade que eu devia ter quando acordei. A sua respiração
movimentava a pilha de folhas. Tirei uma outra do montão e continuei
a ler:
Então uma grande dor ficou no meu peito. Alguma força tentava
atravessá-lo. Podia contemplar o meu próprio corpo como se fosse
um ave e me viesse desde o céu.Verifiquei assim que o que me estilhava
era uma joia luminosa que esticava a minha pele tentando sair. Podia escutar
os meu próprios berros pela intensa dor. Mas então tomei consciência
de ser uma ave: escutava o som das minhas assas, sentia a respiração
trespassando todos os ossos e órgãos do meu corpo; era ligeiro,
leve, feito de ar. Mal percebi esta nova realidade o meu outro corpo deixou
de sofrer. Nesse momento voltei ao corpo humano e a este mundo..
Em cada papel desenhos, confusos às vezes, intercalavam-se com a narração.
Nesta apressada memória reproduz-se um deles, pois fica cheio de todo
o mistério que naquele momento eu sentia.
Aguardei até o Mestre acordar. Ele ficou deitado mais uns momentos com
os olhos abertos. A luz da manhã enchia as paredes das sombras de lá
fora; os sons da rua entravam pelas janelas; o ar cheirava a cominho e a pó
de amapola; cada detalhe resplandecia de novidade. Tínhamos olhos recém
nados... Então bateram à porta.
Fui abir. Era o Chefe do Correio Real. Devia entregar ao Mestre uma carta que
tinha sido levada à India por um frade com ordens da Santa Inquisição...Má
notícia, pensei. A carta foi entregue e o Mestre leu. Eram poucas linhas
pois num abrir e fechar de olhos já dobrava a folha e a entregava ao
Chefe.
Na carta, contou-me o amo depois, o Padre Calafrio aconselhava-lhe não
voltar para Portugal, advertindo do perigo de fazê-lo se voltarmos. Além,
acrescentava, lhe lembrava da inutilidade de toda magia contra a vontade de
Deus. Isto, aclarou-me, era um sinal do começo de certos planos dos que
tinha tido conhecimento quando esteve na corte.
O Mestre ficou em silêncio. Alguma visão da noite anterior dava-lhe
a certeza do acontecer futuro. Como num espelho, presente e futuro se refletiam.
E aquelas palavras suspeitosas eram como uma pedra atirada num poço.
Conversamos sobre o que fazer. Falou o Mestre com voz pausada.Como o Olho devíamos
deixar um tesouro para o futuro, uma procura: a possibilidade da magia embora
o mundo ficara cego, para a descobrirem os de olhos abertos. Era a missão
que nos tinham encomendado as sereias. Encontrámos o cristal de Haryana
( no nosso interior ) e agora devíamos transmitir essa sabedoria para
os vindouros.
Mas, qual era o plano?, perguntei. Tudo está nos sonhos, tudo resta
cá, disse ao tempo que afagava o maço de papeis. Nesta escrita
sobrevivemos.