A enciclopédia estava em minhas mãos ossudas.
Folheei com esmero e entre um vento e outro, as folhas abriram caminhos e asas
para a lembrança.
Eu me lembrei da Souzinha, enquanto a lombada densa da enciclopédia dormitava
nas minhas mãos ossudas. A folha rósea do papel barato se mostrou,
no segundo vento. E eu lia. E eu via a Souzinha se abrindo igual aquelas folhas
e se fechando como o livro da estante. Livros mudos de estante.
Se eu marcasse um dia com uma pedrinha branca talvez fosse mais feliz, mas a
única marca que me ficou foi o de uma pedrada - Souzinha era jovem, meio
menina - e me lascou uma pedra na testa. Era uma cena bucólica, até,
levemente campesina com olor de bosta e mijo de vaca nas ruas de Mococa, onde
morávamos.
Mas, tudo bem.
A enciclopédia pesava e me trazia para a Terra.
Souzinha era leve, morena e um cheiro de pipoca na boca. Lembro que seus olhos
não permitiam que as lágrimas se formassem neles. Logo as lágrimas
subiam para o espaço.
Um outro eu, no âmago da idade juvenil, abriu os braços da Souzinha
e dormiu neles. De novo, um outro eu, abriu as pernas da Souzinha e pousou ali
a sua boca. Era a doce saliva no salgado do gozo da Souzinha.
A todo custo, de livro aberto eu percebia que me excitava. Um dilúvio
alcançou o ventre da Souzinha e eu me vi enfiado numa fruta melíflua,
enquanto ela me lambia desarvoradamente. Não era uma desgraça
e isso certamente serviria para o futuro.
Mais alguns ventos e percebi que nunca houve futuros, somente presentes e que
a enciclopédia podia muito bem falar de passados. Mesmo assim, sublimando
a arte em favor da arte ousei cometer uma poesia impar que relatasse uma viagem
pela boca veludosa da Souzinha. É claro que com as mãos apertando
cada mamilo.
Essa arte ousada e despudorada haveria de perdurar, a não ser que queimassem
meus livros. A vida é que não, se bem que a vida só é
tão curta por que nos acostumamos a isso. Aliás, nos acostumamos
com o que põem na nossa mesa.
Souzinha não! Eu fui atrás dela... seu corpo me puxou e fui tragado
pelas suas formas. Quando eu me dava conta as mão estavam no meio de
suas coxas.
Hoje estão aparando as folhas levadas pelos ventos da tarde.
...
Um sono me chega.
...
A enciclopédia começa a pesar.
Afastado das coisas sagradas e sacralizando - por minha conta - o sexo com Souzinha,
eu percebi que a criação em si é um erro. Se é que
há criação e que há erros. Imbuído de segredos
e acontecimentos principescos eu me baseei na antiga locução de
que a sorte favorece os ousados. E era assim que Souzinha e eu nos amávamos,
até aquela tarde, quando os ventos se tornaram violáceos.
Uma cacatua lançava seus apelos pelo ar.
As crianças diziam que era o pássaro bigorna.
E o bater desse metal não me iludiu. Era uma execrável fome de
ouro que me punha descontente e me tornava esquecido daquela mulher. Ela se
abria sobre mim mas eu me tornava bem-aventurado, então, ou seja, pobre
de espírito e , em vez de beijar aquela vulva ardente que me lambuzava,
não(!)... me afastava e ia procurar no computador algumas saídas
para a solidão.
Aí estava uma ação que acabou por destruir o mais insignificante
dos valores vitoriosos que eu possuía, segundo minha mãe.
É claro que ela se foi.
A Souzinha... e não minha mãe.
Hoje recordo aqueles dias com um sorriso idiota nos lábios e uma leve
sensação de que meu tempo passou e que o trem se foi, também.
Há quem diga que tudo pode voltar.
Esses profetas de esquina talvez tenham razão e aí então
eu seja novamente o centro de atenção de alguma outra mulher e,
é claro, Souzinha será esquecida, que é o que se deve fazer
com os mortos, ou com aqueles que deixam você lendo enciclopédias
e compêndios de uma sabedoria errática, mesmo estando cobertos
de razão.