1) Tartarassa ni voutur.
- Fica assim, pois, determinado, senhores críticos, que não percam
tempo tentando encontrar defeitos nos escritos que começam neste momento
a se estenderem pelas folhas em branco. Não encontrarão e, se
por ventura encontrarem, serão relegados, os erros e as opiniões,
para as profundidades do Orco, cujo local, apesar de quente é o que há
de mais correto para instalação de inutilidades.
- Peço, também, o perdão para tais homens e mulheres que
não podendo ou não tendo o talento para escrever se autodeterminam
sábios e expertos de vários níveis, analisando e descrevendo
coisas que provavelmente nunca tenham passado pela cabeça do criador.
Lancem seus esputos intelectualóides para outras vizinhanças,
pois não há coisa que seja criada paciente de observações
e julgamentos. O que se construiu, é. O que se fez, assim fica, de modo
que os críticos não têm lugar no espaço, uma vez
que não têm capacidade para darem veredictos benéficos ou
maléficos para tal e qual obra. Que criem as suas próprias!
- Cuidado, leitor, com críticos. Se encontrar com algum deles pela rua,
cace-o! Não permita que escape. Cortaremos suas orelhas e as poremos
nos burrinhos. Cortaremos seus esbirros e os poremos nos eunucos, nas salamandras
ou nos tamanduás-bandeira. Afaste-se dele, leitor!
2) Deich von der guoten.
Ó nobre amada - dizia assim o trovador, após vituperar contra
os intelectualóides de óculos e penas rombudas - nobre amada,
- repetia ele - como lastimo não passar esta noite contigo. Tenho muita
roupa para lavar. Mas, muito lastimo a canção que não fiz,
ó amada minha, nobre amada. As roupas sujas não mo permitiram;
o tempo desceu pelo ralo do meu casebre e incapacitado fiquei de invocar as
musas para que o som do meu saltério de plectro verberasse em cantigas
e eu as pudesse entoar nesta madrugada fecunda, madrugada jucunda. No entanto,
jucundo não está o meu coração. Desejo, no entanto,
que a luz da Aurora afaste do seu caminho a dor e a tristeza, ó bela,
ó amada, ó bem aventurada, não mais virgem, mas querida
de minha alma.
3) L`aute`ier tout seus chevauchoie.
Mas aquele troubadour, poeta e compositor renomado, apesar de pobre de dinheiro,
mas rico de amor, mantinha estreito, íntimo, penetrante relacionamento
com a mulher de um burguês - é assim mesmo, burguês a gente
pega, mata, mata, come, esfola, mata e engole. Sempre que possível descendo
o cacete sentido nesta raça desnaturada e, repito - o trovador roubou
a mulher do burguês, mesmo porque o artista aquele era mais bonito, pois
lidava com música; tinha menos problemas de consciência, pois não
espoliava os demais campônios da região; e por último, dava
à senhora aquela, momentos de prazer que dificilmente conseguiria ao
lado do porco de seu marido - é que ele comia com as mãos, o almoço
e o jantar, bem entendido, sem usar a nova moda dos talheres. A senhora odiava-o
por estas e por outras e foi numa ceia de Natal, quando o trouvère cantava
melodias e cantava as mulheres do burgo, que a gentil senhora caiu no prato
do rapaz que, imediatamente, papou-a.
Na época ele citava este refrão: "mulher que tem marido e
arruma um amigo, não deve ser criticada", ao que todos riam, mesmo
os que eram alvo da advertência do cantor. O traído, rindo, olhava
de soslaio, para tentar perceber as direções que os olhos da esposa
tomava, sendo que seu riso era tão amarelo como os molhos que embelezavam
seus dedos vorazes. As mulheres olhavam de soslaio para tentarem captar um instante
de distração dos maridos ao mesmo tempo em que coincidiam esse
instante com o de olhar o seu bem amado, fosse ele quem fosse. Os bem amados,
enfim, estavam a disposição. Soslaio pra cá, soslaio pra
lá.
Cumpre dizer que os traídos não eram flores a se cheirar com tranquilidade.
A maioria, imbuída do poder próprio do dinheiro mantinha as suas
ninfas e as degustava em silêncio e às escondidas
No caso de nossa história, o trovador ganha a senhora gentil mesmo porque
ela se vinga do marido, ao descobrir que na mesma festa participavam três
amantes bem pagas, todas com vestidos novos, robustos leques, armados cabelos
de mechas entrelaçadas e galantes sorrisos convidativos.
A senhora gentil, vexada, perdeu a vergonha e se trancou no quarto com o trovador
já comentado e na semi escuridão do cômodo, incomodou-se
com a roupa exagerada, própria da época, semidespiu-se e pôs-se
a trocar impressões, compressões, puxões, mordidas, apertadelas,
sucções e estremecimentos vários, aliados aos mais variados
tipos de gemidos e sussurros. Ao que minnesinger comentou:
- A senhora geme em lá bemol... curioso!
- E, isso é mal, pássaro canoro?
- Claro que não, senhôra, isso até me inspira uma canção.
- Estou pronta para ouvir, doce cantante.
- Então, por favor, largue a flauta.
- Ah! - era sua flauta? Pensei que...
- Sim?
- Bem, eu pensei... pensei que nunca se satisfizesse... eu...
- Quer que eu cante, senhôra?
- Sim.
4) Baros de mon dan covit.
Quando voltaram para a sala, o cantor foi instalado a deleitar a plateia
com algumas canções de seu próprio punho. Então
ele pediu um tambor e passou a destruir um sambinha.
- Não! Não! - Gritou o Barão, dono da casa, da senhôra,
do dinheiro, das amantes, da festa - Use o alaúde, sua besta!
O troubador, músico como era, enfiou a cabeça no colarinho e pediu
desculpas. Sabia que um pé no traseiro seria a paga se não agisse
corretamente. E, de traseiros, bastava o da senhôra.
Mesmo assim, ele se vingou e mandou lá uma sirventés legítima,
uma canção que acabou indicando, por palavras obscuras, que o
deflorador da região era o próprio Barão, dono de tudo,
porém traído.
O ápice da canção assinalava o Barão, tendo comido
muito pela manhã, quis comer à tarde também e foi com muita
dor de barriga que se dirigiu para a casa de uma donzela muito recatada e digna
que, obviamente repudiou o nobre pérfido que exalava gases continuamente.
Com o último acorde o cantante foi extraído do salão, enxovalhado
na enxovia e chutado para a rua, porco, úmido, fungando, estapeado, apenas
levando consigo ainda, um pouco do licor da senhôra.
5) Ce fu en mai.
No meio do burgo uma fonte. No meio da fonte um chafariz soltando água
natural, levemente, sem violência. No meio da água a cabeleira
do trovador.
Era de manhã. Um coro de bêbados rodopiava pela fonte e cantava
canções onde se desenhava o amor não correspondido. A amada
desprezando o amante. O trovador levantou a cabeça e retesou-se. Sentia-se
melhor. Água gelada da fonte livrava-o da borracheira. Munido de pifão
e hálito impuro, o cantor mergulhara na fonte, estragando o alaúde
caro, amassetando o saltério. Corda para todo o lado.
Motivado pelos bebuns curetas, adiantou-se alguns passos e permitiram, então,
que ele participasse do concerto matinal.
Todos assim, abraçados, se dirigiram para a taverna mais próxima.
6) Entendez tuit ensamble.
Naquela noite a senhora rezava. Era natural. Todos rezam, hipócritas
ou não. Tecia ela laudes à Virgem. Pedia para que o trovador não
desaparecesse e que, por questão de mágica, ele estivesse naquele
instante no seu solitário quarto de esposa desguarnecida de forro sexual.
Nas suas orações, a senhôra concordava plenamente que o
pecado e traição pelo pecado eram heranças de Eva, aquela
crápula que, enquanto o pobre Adão comia a maçã,
embevecido com o sabor, ela cráu, caiu em cima dele, e foi preciso a
espada de Gabriel para separar o engate. E a senhora também concordava
que a salvação estava com a virgem, que resgata a humanidade para
a glória do céu.
- Ainda não, Virgem! Não resgata ainda não. - dizia a senhôra,
enroscada em seda - ainda quero sentir o sabor de pêssego dos lábios
do trovador. Ainda não caí muito. Quero mais profundezas. Quero
sentir o calor dos baixios da Terra, aí sim, a Senhora vem e me resgata,
tá?
- O calor que sentira, senhôra, é o meu calor.
- Ó! - ela exclamou. - Trovador, trouvère, minnesinger, cantor
de minha vida. Como entrou?
- Pela janela, é claro. Tem dois cachorros destamanho lá embaixo.
- Dois? Só temos um, querido.
- Contei também o seu marido. Rá, rá, rá - isso
foi a risada que ele deu.
- Não ria muito alto.
- Não se preocupe - ele se dirigiu para o leito da senhôra, pondo
a mão na colcha dela. A mulher gemeu. - Subornei o cozinheiro e foi dado
ao glutão do seu marido um punhado de Cannabis a modos de salada.
- Isso explica o delírio durante o almoço.
- Que fez ele?
- Não sei se você sabe, trovador do meu coração,
mas o Barão tem um báculo enorme.
- Sim já vi o seu báculo.
- E, olha que ele queria por o báculo justamente na minha boceta?
- Não diga!
- Impossível!
- A senhôra deixou?
- Claro que não. - Ela se virou e apanhou uma pequena bolsa sobre a cômoda.
- Olha o, tamanho. É uma bocetinha. Aqui cabe no máximo um pouco
de pintura. Não um báculo. Inda mais daquele tamanho. Depois,
ele dormiu.
- E, isso, é o que interessa - o trovador alisou a colcha de lã
que envolvia as pernas e os lençóis de seda sobre a cama.
- Trouxe a flauta, minnesinger?
- Trouxe, as duas.
- Uau!
- A soprano e a tenor. Queria mais alguma, querida?
- Só você, artista franco atirador. Só você. Estou
esquentando lentamente. Meus volumes e retundidades são para que você
se gaste e me gaste.Vem poçucar de mim, vem? Tem muita coisa sobrando.
Poçuqueia, poçuqueia!
E, o trovador, não tendo mais o que falar, poçucou da senhôra,
não tão tranquilamente como ela gostaria, mas, o suficiente
para transformarem o leito da alcova em salão de balé. Quase que
quebram as flautas.
7) Hipocritae, pseudopontifices.
Eis que, no momento exato em que a ejaculação se processava, adentram
o quarto da senhôra, os dois cães, seguidos de soldados. Flagrante
maior não houve. Junto vinha o padre do burgo, assalariado do Barão.
Começa ele a falar sobre moral e cívica:
- Abutres que compurscaram o santo leito do matrimônio, ouçam!
Ouçam, abutres! Arrependam-se das imoralidades pensadas e praticadas!
Sujos pecadores, que querem destruir a dignidade de uma pessoa de bem como o
nosso Barão.
A senhôra abraçou mais sofregamente as costas do trovador e ele
se posicionou mais profundamente, enquanto sua boca babava sobre o ombro da
mulher, os soldados olhavam estarrecidos.
- Porcos! Fazem do quarto de casamento a sua pocilga! Vilipendiando a nobre
estatura do Barão com achincalhes de baixa importância. Preferem
o pecado maior aos prazeres da espiritualidade. Preferem se esconder do que
praticar o ato imundo publicamente. Preferem a sordidez dessa sujeira de salivas,
esperma e suor, do que o frescor da água benta! Arrependam-se, corruptos,
ou o látego do Barão...
- O báculo!
- O que?
- O báculo, o báculo!
- Ou o báculo do Barão descerá sobre suas miseráveis
cabeças!
A senhôra virou-se, ficando de costas para o trovador que se enfronhou
mansamente entre os volumes macios, carnosos no alto das coxas, podendo ali
depositar seus produtos animais, a modos de anticoncepcional medievo. Ela em
seguida, tomou a flauta e soprou, o que significava recomeço dos embates.
Os soldados lambiam os lábios, ouvindo a maviosa canção.
Vendo a adorável encenação. O padre olhou para o Barão
e continuou, com cara de quem já não aguenta mais:
- Inconsequentes! Traidores da confiança alheia, excomungo vocês,
deixando-os a arder para sempre nas chamas do Orco, do Hades, do Inferno, da
Geena...
- Pode parar! - Gritou o Barão. - Não adianta nada. Só
tenho uma saída.
O Barão, decididamente, apontou para o enorme cachorro aos seus pés.
8) Kalenda maia.
Conta-se que o trovador, depois de cinco anos, montou um grupo de música
que passou a viajar pelo Languedoc, pela Provença, favorecendo um florescimento
de lírica profana em língua vernácula, o que foi possível
graças à ajuda da senhôra, que o acompanhava por toda a
parte. Pobres, mas adequadamente engatados, em todos os sentidos. Participavam
de festejos, cantando e dançando o amor das Cortes e seus objetivos.
Receberam influência dos andaluzes, árabes, especializando os cantos
em culto à mulher. O trovador era rico nesse ponto, como já foi
dito. Fica também dito que o sorriso não mais escapou da boca
dos dois, o que convém dizer ainda mais que é preciso complemento
total em espírito ou em corpo, para que não se formem conflitos
de qualquer espécie. Não há santos.
Enquanto isso o Barão, descobrindo suas verdadeiras tendências,
não se importou de que o entrelaçamento do trovador com a sua
senhôra se desse durante mais alguns dias em sua própria casa.
Não se sabe se ainda sob as influências da Cannabis ou não,
o Barão deu as costas para os soldados e o padre, puxando seu cão
para os longevos campos de sua propriedade. O que lá aconteceu ninguém
sabe, mas, muitos dizem que o Barão e o cão dividem a mesma cama
e, há quem diga mais, mas, deixa-se isso na conta da calúnia e
mentira ou da perversão e promiscuidade.
De qualquer modo, era Maio. Primavera. Fim do gelo. Fim do Inverno.
O trovador e a senhôra tinham um quarteto de filhos tocadores de rabeca.