A Garganta da Serpente
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A Sátira e o Amor
- uma novela medieval -

(Coelho de Moraes)

1) Tartarassa ni voutur.

- Fica assim, pois, determinado, senhores críticos, que não percam tempo tentando encontrar defeitos nos escritos que começam neste momento a se estenderem pelas folhas em branco. Não encontrarão e, se por ventura encontrarem, serão relegados, os erros e as opiniões, para as profundidades do Orco, cujo local, apesar de quente é o que há de mais correto para instalação de inutilidades.

- Peço, também, o perdão para tais homens e mulheres que não podendo ou não tendo o talento para escrever se autodeterminam sábios e expertos de vários níveis, analisando e descrevendo coisas que provavelmente nunca tenham passado pela cabeça do criador. Lancem seus esputos intelectualóides para outras vizinhanças, pois não há coisa que seja criada paciente de observações e julgamentos. O que se construiu, é. O que se fez, assim fica, de modo que os críticos não têm lugar no espaço, uma vez que não têm capacidade para darem veredictos benéficos ou maléficos para tal e qual obra. Que criem as suas próprias!

- Cuidado, leitor, com críticos. Se encontrar com algum deles pela rua, cace-o! Não permita que escape. Cortaremos suas orelhas e as poremos nos burrinhos. Cortaremos seus esbirros e os poremos nos eunucos, nas salamandras ou nos tamanduás-bandeira. Afaste-se dele, leitor!



2) Deich von der guoten.

Ó nobre amada - dizia assim o trovador, após vituperar contra os intelectualóides de óculos e penas rombudas - nobre amada, - repetia ele - como lastimo não passar esta noite contigo. Tenho muita roupa para lavar. Mas, muito lastimo a canção que não fiz, ó amada minha, nobre amada. As roupas sujas não mo permitiram; o tempo desceu pelo ralo do meu casebre e incapacitado fiquei de invocar as musas para que o som do meu saltério de plectro verberasse em cantigas e eu as pudesse entoar nesta madrugada fecunda, madrugada jucunda. No entanto, jucundo não está o meu coração. Desejo, no entanto, que a luz da Aurora afaste do seu caminho a dor e a tristeza, ó bela, ó amada, ó bem aventurada, não mais virgem, mas querida de minha alma.



3) L`aute`ier tout seus chevauchoie.

Mas aquele troubadour, poeta e compositor renomado, apesar de pobre de dinheiro, mas rico de amor, mantinha estreito, íntimo, penetrante relacionamento com a mulher de um burguês - é assim mesmo, burguês a gente pega, mata, mata, come, esfola, mata e engole. Sempre que possível descendo o cacete sentido nesta raça desnaturada e, repito - o trovador roubou a mulher do burguês, mesmo porque o artista aquele era mais bonito, pois lidava com música; tinha menos problemas de consciência, pois não espoliava os demais campônios da região; e por último, dava à senhora aquela, momentos de prazer que dificilmente conseguiria ao lado do porco de seu marido - é que ele comia com as mãos, o almoço e o jantar, bem entendido, sem usar a nova moda dos talheres. A senhora odiava-o por estas e por outras e foi numa ceia de Natal, quando o trouvère cantava melodias e cantava as mulheres do burgo, que a gentil senhora caiu no prato do rapaz que, imediatamente, papou-a.

Na época ele citava este refrão: "mulher que tem marido e arruma um amigo, não deve ser criticada", ao que todos riam, mesmo os que eram alvo da advertência do cantor. O traído, rindo, olhava de soslaio, para tentar perceber as direções que os olhos da esposa tomava, sendo que seu riso era tão amarelo como os molhos que embelezavam seus dedos vorazes. As mulheres olhavam de soslaio para tentarem captar um instante de distração dos maridos ao mesmo tempo em que coincidiam esse instante com o de olhar o seu bem amado, fosse ele quem fosse. Os bem amados, enfim, estavam a disposição. Soslaio pra cá, soslaio pra lá.

Cumpre dizer que os traídos não eram flores a se cheirar com tranquilidade. A maioria, imbuída do poder próprio do dinheiro mantinha as suas ninfas e as degustava em silêncio e às escondidas

No caso de nossa história, o trovador ganha a senhora gentil mesmo porque ela se vinga do marido, ao descobrir que na mesma festa participavam três amantes bem pagas, todas com vestidos novos, robustos leques, armados cabelos de mechas entrelaçadas e galantes sorrisos convidativos.

A senhora gentil, vexada, perdeu a vergonha e se trancou no quarto com o trovador já comentado e na semi escuridão do cômodo, incomodou-se com a roupa exagerada, própria da época, semidespiu-se e pôs-se a trocar impressões, compressões, puxões, mordidas, apertadelas, sucções e estremecimentos vários, aliados aos mais variados tipos de gemidos e sussurros. Ao que minnesinger comentou:

- A senhora geme em lá bemol... curioso!

- E, isso é mal, pássaro canoro?

- Claro que não, senhôra, isso até me inspira uma canção.

- Estou pronta para ouvir, doce cantante.

- Então, por favor, largue a flauta.

- Ah! - era sua flauta? Pensei que...

- Sim?

- Bem, eu pensei... pensei que nunca se satisfizesse... eu...

- Quer que eu cante, senhôra?

- Sim.



4) Baros de mon dan covit.

Quando voltaram para a sala, o cantor foi instalado a deleitar a plateia com algumas canções de seu próprio punho. Então ele pediu um tambor e passou a destruir um sambinha.

- Não! Não! - Gritou o Barão, dono da casa, da senhôra, do dinheiro, das amantes, da festa - Use o alaúde, sua besta!

O troubador, músico como era, enfiou a cabeça no colarinho e pediu desculpas. Sabia que um pé no traseiro seria a paga se não agisse corretamente. E, de traseiros, bastava o da senhôra.

Mesmo assim, ele se vingou e mandou lá uma sirventés legítima, uma canção que acabou indicando, por palavras obscuras, que o deflorador da região era o próprio Barão, dono de tudo, porém traído.

O ápice da canção assinalava o Barão, tendo comido muito pela manhã, quis comer à tarde também e foi com muita dor de barriga que se dirigiu para a casa de uma donzela muito recatada e digna que, obviamente repudiou o nobre pérfido que exalava gases continuamente.

Com o último acorde o cantante foi extraído do salão, enxovalhado na enxovia e chutado para a rua, porco, úmido, fungando, estapeado, apenas levando consigo ainda, um pouco do licor da senhôra.



5) Ce fu en mai.

No meio do burgo uma fonte. No meio da fonte um chafariz soltando água natural, levemente, sem violência. No meio da água a cabeleira do trovador.

Era de manhã. Um coro de bêbados rodopiava pela fonte e cantava canções onde se desenhava o amor não correspondido. A amada desprezando o amante. O trovador levantou a cabeça e retesou-se. Sentia-se melhor. Água gelada da fonte livrava-o da borracheira. Munido de pifão e hálito impuro, o cantor mergulhara na fonte, estragando o alaúde caro, amassetando o saltério. Corda para todo o lado.

Motivado pelos bebuns curetas, adiantou-se alguns passos e permitiram, então, que ele participasse do concerto matinal.

Todos assim, abraçados, se dirigiram para a taverna mais próxima.



6) Entendez tuit ensamble.

Naquela noite a senhora rezava. Era natural. Todos rezam, hipócritas ou não. Tecia ela laudes à Virgem. Pedia para que o trovador não desaparecesse e que, por questão de mágica, ele estivesse naquele instante no seu solitário quarto de esposa desguarnecida de forro sexual.

Nas suas orações, a senhôra concordava plenamente que o pecado e traição pelo pecado eram heranças de Eva, aquela crápula que, enquanto o pobre Adão comia a maçã, embevecido com o sabor, ela cráu, caiu em cima dele, e foi preciso a espada de Gabriel para separar o engate. E a senhora também concordava que a salvação estava com a virgem, que resgata a humanidade para a glória do céu.

- Ainda não, Virgem! Não resgata ainda não. - dizia a senhôra, enroscada em seda - ainda quero sentir o sabor de pêssego dos lábios do trovador. Ainda não caí muito. Quero mais profundezas. Quero sentir o calor dos baixios da Terra, aí sim, a Senhora vem e me resgata, tá?

- O calor que sentira, senhôra, é o meu calor.

- Ó! - ela exclamou. - Trovador, trouvère, minnesinger, cantor de minha vida. Como entrou?

- Pela janela, é claro. Tem dois cachorros destamanho lá embaixo.

- Dois? Só temos um, querido.

- Contei também o seu marido. Rá, rá, rá - isso foi a risada que ele deu.

- Não ria muito alto.

- Não se preocupe - ele se dirigiu para o leito da senhôra, pondo a mão na colcha dela. A mulher gemeu. - Subornei o cozinheiro e foi dado ao glutão do seu marido um punhado de Cannabis a modos de salada.

- Isso explica o delírio durante o almoço.

- Que fez ele?

- Não sei se você sabe, trovador do meu coração, mas o Barão tem um báculo enorme.

- Sim já vi o seu báculo.

- E, olha que ele queria por o báculo justamente na minha boceta?

- Não diga!

- Impossível!

- A senhôra deixou?

- Claro que não. - Ela se virou e apanhou uma pequena bolsa sobre a cômoda. - Olha o, tamanho. É uma bocetinha. Aqui cabe no máximo um pouco de pintura. Não um báculo. Inda mais daquele tamanho. Depois, ele dormiu.

- E, isso, é o que interessa - o trovador alisou a colcha de lã que envolvia as pernas e os lençóis de seda sobre a cama.

- Trouxe a flauta, minnesinger?

- Trouxe, as duas.

- Uau!

- A soprano e a tenor. Queria mais alguma, querida?

- Só você, artista franco atirador. Só você. Estou esquentando lentamente. Meus volumes e retundidades são para que você se gaste e me gaste.Vem poçucar de mim, vem? Tem muita coisa sobrando. Poçuqueia, poçuqueia!

E, o trovador, não tendo mais o que falar, poçucou da senhôra, não tão tranquilamente como ela gostaria, mas, o suficiente para transformarem o leito da alcova em salão de balé. Quase que quebram as flautas.



7) Hipocritae, pseudopontifices.

Eis que, no momento exato em que a ejaculação se processava, adentram o quarto da senhôra, os dois cães, seguidos de soldados. Flagrante maior não houve. Junto vinha o padre do burgo, assalariado do Barão. Começa ele a falar sobre moral e cívica:

- Abutres que compurscaram o santo leito do matrimônio, ouçam! Ouçam, abutres! Arrependam-se das imoralidades pensadas e praticadas! Sujos pecadores, que querem destruir a dignidade de uma pessoa de bem como o nosso Barão.

A senhôra abraçou mais sofregamente as costas do trovador e ele se posicionou mais profundamente, enquanto sua boca babava sobre o ombro da mulher, os soldados olhavam estarrecidos.

- Porcos! Fazem do quarto de casamento a sua pocilga! Vilipendiando a nobre estatura do Barão com achincalhes de baixa importância. Preferem o pecado maior aos prazeres da espiritualidade. Preferem se esconder do que praticar o ato imundo publicamente. Preferem a sordidez dessa sujeira de salivas, esperma e suor, do que o frescor da água benta! Arrependam-se, corruptos, ou o látego do Barão...

- O báculo!

- O que?

- O báculo, o báculo!

- Ou o báculo do Barão descerá sobre suas miseráveis cabeças!

A senhôra virou-se, ficando de costas para o trovador que se enfronhou mansamente entre os volumes macios, carnosos no alto das coxas, podendo ali depositar seus produtos animais, a modos de anticoncepcional medievo. Ela em seguida, tomou a flauta e soprou, o que significava recomeço dos embates.

Os soldados lambiam os lábios, ouvindo a maviosa canção. Vendo a adorável encenação. O padre olhou para o Barão e continuou, com cara de quem já não aguenta mais:

- Inconsequentes! Traidores da confiança alheia, excomungo vocês, deixando-os a arder para sempre nas chamas do Orco, do Hades, do Inferno, da Geena...

- Pode parar! - Gritou o Barão. - Não adianta nada. Só tenho uma saída.


O Barão, decididamente, apontou para o enorme cachorro aos seus pés.


8) Kalenda maia.

Conta-se que o trovador, depois de cinco anos, montou um grupo de música que passou a viajar pelo Languedoc, pela Provença, favorecendo um florescimento de lírica profana em língua vernácula, o que foi possível graças à ajuda da senhôra, que o acompanhava por toda a parte. Pobres, mas adequadamente engatados, em todos os sentidos. Participavam de festejos, cantando e dançando o amor das Cortes e seus objetivos. Receberam influência dos andaluzes, árabes, especializando os cantos em culto à mulher. O trovador era rico nesse ponto, como já foi dito. Fica também dito que o sorriso não mais escapou da boca dos dois, o que convém dizer ainda mais que é preciso complemento total em espírito ou em corpo, para que não se formem conflitos de qualquer espécie. Não há santos.

Enquanto isso o Barão, descobrindo suas verdadeiras tendências, não se importou de que o entrelaçamento do trovador com a sua senhôra se desse durante mais alguns dias em sua própria casa. Não se sabe se ainda sob as influências da Cannabis ou não, o Barão deu as costas para os soldados e o padre, puxando seu cão para os longevos campos de sua propriedade. O que lá aconteceu ninguém sabe, mas, muitos dizem que o Barão e o cão dividem a mesma cama e, há quem diga mais, mas, deixa-se isso na conta da calúnia e mentira ou da perversão e promiscuidade.

De qualquer modo, era Maio. Primavera. Fim do gelo. Fim do Inverno.

O trovador e a senhôra tinham um quarteto de filhos tocadores de rabeca.

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