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Antes de que tudo aquilo houvesse acontecido e, sem que os familiares soubessem , Sanvae deixou o emprego muito bem remunerado-mordomíaco-faraônico e partiu para o Amazonas em busca das famosíssimas Kertetszias - animais relativamente raros, pequenos, mas, elegantes - habitantes de altas copas de árvores pejadas de chuva, cujos paladares preferiam o suculento sangue de macacos. Isso, no começo, quando os verões eram vermelhos e os invernos dormiam em forma de azul. Antes de que tudo aquilo acontecesse.
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Sanvae era robusto e pesava em torno de noventa quilos bem proporcionados. Era alto, coisa que se percebia claramente quando Sanvae se punha de pé. Usava barba postiça quando deixou as mulheres e os filhos pequenos, hipnotizado pelas imagens aladas das Kertetszias, no entanto, nem bem chegava ao Amazonas e já era dono de bonita sombra azulada em torno de queixo oval e, uma outra não tão bonita que o acompanhava por toda a parte, especialmente nos dias de sol e, somente na rua. A partir daí, deixou de lado o disfarce e assumiu a sua posição de exímio caçador de Kertetszias, se bem que fosse aquela a primeira vez que Sanvae se enfronhava em mataria e se transformava em predador.
A fome de Kertetszias apareceu-lhe aos onze anos de idade, quando seu pai, um industrial fabricante de botões, mostrara-lhe fotos do anofelínio. Dessa época para frente esqueceu completamente o assunto. Um surto de amnésia galopante, por ocasião dos casamentos, auxiliou-o na introspecção da ideia, enterrada que foi nos recônditos insondáveis da cabeça de Sanvae. Só voltou a sua memória - a relação com o inseto Kertetszia - após certo sonho que teve com uma de suas sogras.
As famílias ficaram decepcionadas e muito choraram quando perceberam que Sanvae partia, mas, Sanvae, empedernido como ele só, partiu num dia de chuva grossa. O navio balançava e o almoço de Sanvae a muito custo se manteve no estômago. Sua cabeça queimava de ansiedade e, por momentos viu-se em palcos e conferências, adulado, coberto de medalhas pró-isso, pró-aquilo, recebendo prêmios científicos.
Chegou ao Amazonas na quarta feira.
Na quinta de um amigo, velho conhecido, tomou vinho e mordeu carne de pirarucú, em tempos de descanso. Esperou que a barba tomasse seu rosto completamente, desejou felíz Páscoa para o amigo e, munido de arcabuz, embornal e sapiquás, atolou suas botas de couro de jacarés- aligatores-crocodilianos de várias marcas nas lamas da floresta comedora de gente e outros bichos, na incessante busca de Kertetszias.
Ia ele ladeado por cinco guias bem pagos que, infelizmente, perderam-se no meio da jornada.
3
Sanvae percebeu que adentrava reinos de Kertetszias quando viu os macacos.
Eles desciam correndo o arvoredo, em algazarra perene, mas, o detalhe mais emocionante, muito bem explicado pelos almanaques, era o de que muito macaco tremia incessantemente e, além disso, ficavam banhados de suor - pêlos completamente molhados!
Sanvae ria de dobrar a barriga, pois à sua mente vinham relembros do dia em que esguichou água sobre uma de suas sogras ( a adotiva ) e ela, em desespero, sentou-se no chão aos brados e berros. Riu, também, pois o passeio pela floresta já o desgotava, levando a esperança de encontrar o inseto para bem longe. Mas, parou de rir quando os macacos olharam para ele... rindo, também.
Montou barraca esperando a noite.
Os almanaques diziam que o anofelínio era notívago e, mais ainda, explicavam os técnicos, era necessário capturá-lo com todas as asas, pois um determinado estudioso levantara a hipótese de que o inseto sofreria problemas de ordem psíquica se fosse colocado em ridículo, sem asas, de modo que seu corpo, de verde com listas douradas se transformaria em cinzento salpicado cor de rosa. A tese do estudioso defendia a opinião hipotética de que Kertetszias se sentiriam, então, vexadas e extremamente indóceis, necessitando - elasinhas - de tratamento a base de Diasepan.
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A primeira técnica era baseada nos ensinos do sábio Barão de Itararé, renomado bípede. A segunda era a própria ideia de Sanvae, por isso, não muito boa, que consistia em descer um prato de ouro no meio das folhagens e esperar que os alados se sentassem na superfície fria, de modo que ficassem presos por causa de uma possível interação eletrostática entre as patas e o ouro. Só que, ou isso não dava resultado mesmo, ou as Kertetszias já conheciam o truque. Nem a mais infantil delas ficou presa no prato de ouro e, a coisa teve que ser resolvida no tapa.
Sanvae teve que enfrentar um milhão de seres voadores adentrando sua barraca, como uma tempestade nasal - verdadeiro reflexo esternutatório, comumente chamado de espirro.
Sanvae ficou alucinado com as riquezas pululantes por toda a parte, parecendo que se esquecia que na escuridão e em massa, muito inseto alienígena e covarde podia se entranhar na multidão e fazer das suas. Portanto, no meio das picadas, sopapos, garatujas de braços no ar, pernilongos e pernicurtos de várias espécies desmaiados, outros fugitivos, outros tontos, gritos, zumbido de moscas que perderam o rumo, o que sobrou como saldo da batalha, foi uma Kertetszia presa em saco plástico ( uma pata quebrada ) e, uns quinhentos e cinquenta pontos vermelhos só no rosto de Sanvae, o caçador.
Aí é que o mal estava feito, definitivamente.
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Sanvae não se lembrava de nada mais terrível do que as febres que o acossavam de tempos em tempos. Até o sangue se alterava, parecendo se modificar em líquido movediço misturado a porcarias das mais variadas, desde cocôs de bactérias até protistas em decomposição. A pele amarela combinava com o verde limão do pijama - pelo menos era uma compensação - mas as febres pontuais, a tremedeira terremoteante, o suor copioso que enchia bacias e mais bacias, tudo isso não estava nos planos de Sanvae. A Kertetszia , por sua vez, dormia tranquilamente em seu saco plástico, tendo se restabelecido da perna, agora, gessada; as sogras riam a valer vendo os dentes do genro comum batendo e seus ossos chacolhando. Punham a mão na barriga e gargalhavam quase até desmaiarem, principalmente quando viam Sanvae prostrado no fim dos acometimentos.
As velhas desmontavam-se na hilariante desopilação figadal quando o frio desaparecia do caçador e uma febre torrencial o destruía durante horas seguidas. Sanvae tomava forma de um barril esponjoso.
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Sanvae passou a sonhar que uma cobrinha em forma de anel rubídico penetrava em suas células. As mulheres já tomavam o marido por louco completo. No desjejum ele relatava tais onirismos ao mesmo tempo que tocava, com a dextra, a face morena de uma e, com a sinistra, a boca de pessego da outra. Do sonho, as sogras riam e dançavam quadrilha, pensando em heranças e no dinheiro que ganhariam com a venda da Kertetszia sobrevivente. E, enquanto isso, Sanvae sonhava e, ele contava que via mais cobrinhas pelo bico ( bico do inseto? ) e, saíam em direção de macacos displicentes que sempre existem. Então, ele acordava, com olhos esbugalhados. As sogras se debatiam de tanta risada justamente por causa dos olhos medrosos e desesperados. As mulheres se abraçavam e dominavam o pavor que sentiam, bem como a ansiedade. As crianças jogavam bola com o vizinho.
7
Do jeito que as coisas estavam, não poderiam ficar pior, mas, ficaram.
Era manhã de torpor e lassidão, quando três mulheres montadas em fogosos ginetes adentraram o quarto de Sanvae. Elas bateram as patas dos cavalos contra a parede e pediram de volta a Kertetszia. Sanvae escondeu-se atrás das esposas, cheio de pavor. Nunca vira coisa igual, nem sentira tanto medo desde que fora apanhado roubando jaboticaba no quintal da tia solteirona.
As mulheres dos cavalos, com a facilidade que a falta do seio direito dava, puxaram arco e flecha e apontaram para o peito do caçador frustrado. Pediam, pela última vez, que lhes devolvessem o acrídio preso no plástico. Um cavalo cuspiu na cara do homem e, este, engatinhou para os baixios da cama, entre pó e chinelos esquecidos.
No entanto, nada de Kertetszia aparecer.
As cavaleiras desceram dos potros coloridos e arracaram o doente do esconderijo e fizeram-no jurar que o pequeno anofelínio estava em correta situação de saúde, bem estar alimentício, e, moral elevada; pediam, também, pressão arterial e variação no peso corporal do inseto desde o início dos eventos.
Sanvae benzeu-se quando as cavaleiras saíram, ao mesmo tempo que cantavam melodias que imitavam corrida de formigas. As esposas abraçaram-se e maldisseram o dia em que se casaram com o poltrão caçador e já começavam a sentir pena do inseto prisioneiro. As sogras resmungaram contra as cavaleiras pois estavam tomadas de ciúmes, por duas razões: a primeira e menos importante que era o fato de não terem cavalos tão bonitos para pisotear o pobre Sanvae e, a segunda, talvez a mais importante das razões, que era o sentimento de inferioridade. As selvagens eram donas de um seio farto e interessante cada uma, enquanto as sogras não tinham nenhum para contar história. Além disso, elas é que queriam esfarinhar o genro. O doente, inútil e desacreditado Sanvae.
8
Um dia, o paciente do Dr. Zaromeu ergueu-se decididamente. Mas, logo se deitou porque foi acometido de vertigem e dores nos artelhos. Na segunda tentativa, três semanas depois, percebeu que estava sozinho na casa e que teias de aranha se formavam em torno de si. Apesar do mal estar, pôs-se em pé e telefonou para o seu amigo Dr. Zaromeu, tendo porém, que desligar, uma vez que era domingo e o doutor não atendia, mesmo que sua mãe precisasse de transfusão de sangue. Sanvae tentou no dia seguinte, no entanto, ele se perdeu nas contas dos dias que sempre vinham em seguida e resolveu telefonar naquele mesmo, mas, já era sexta-feira, então, e nas sextas-feiras o insígne Dr. Zaromeu ficava em estado de animação suspensa assistindo televisão, ou dando aulas sobre Teorias do Comportamento, baseando-se na Constituição Federal da Rumênia, de trinta anos atrás, matéria de muito interesse para a sua idosa esposa, tanto que ela dormia rapidinho.
Sanvae ficou num impasse. Sozinho, pois as esposas haviam fugido com quatro maridos e doze filhinhos agregados, mais cinco sogras de várias nacionalidades, sendo duas de estimação; tonto, abatido, ele calçou os chinelos de tecido rústico, rumou direto para o banheiro, onde com dedos ágeis apertou furiosamente - a bem dizer esmagou - uma bisnaga de pasta de dentes sabor lagosta e pôs-se, completamente fora de si, a escovar sua boca, até que conseguiu que o branco mais branco de todos os seus nove dentes naturais e seu hálito estivessem agradáveis. Trocou de roupa e saiu.
9
Parado sobre a ponte, mirando as águas dos bebedouros e as correntes de ferro que prendiam os cães, Sanvae analizou sua vida e resolveu se afundar em pensamentos, palavras e obras. Afinal, era sua culpa, máxima culpa, por tudo aquilo que acontecera. E, ainda ter que devolver a Kertetszia tão bravamente conseguida nas grotas da Amazônia!
Às suas costas sentiu passos de cavalos. Depois, a ponta de sua orelha foi rabiscada por ponteaguda conformação em forma de dardo. Um sorriso idiota desenhou-se-lhe no rosto, dando um ar de covardia absoluta à ele frente à situação. Foi obrigado a levar a mão ao bolso e retirar de lá o saco plástico onde uma Kertetszia ressonava qual anjinho. Olhou com olhos de lagarto para as cavaleiras que lhe devolveram olhos de águia. Sanvae dobrou os supercílios e ficou parecendo um sabujo que tivesse levado um belo pontapé. O dardo escreveu-lhe na testa palavras só intelegíveis para cavaleiras, centauros, faunos e uirapurus alfabetizados. Enquanto isso a Kertetszia despertava, abrindo a boca ( boca do inseto? ) num bocejo incorreto.
A um sinal de mão, dado por uma das cavaleiras que também se mostrava como líder, Sanvae abriu o saco ( o plástico ) e o inseto voou para a atmosfera, fazendo questão de mostrar que já estava sufocado, puxando em imitação perfeita, o colarinho do casaco, o que deixou as cavaleiras bastante irritadas, de modo que esporearam os corcéis e estes acabaram de cuspir na cara de Sanvae, numa falta de educação das maiores que já se viu. O pobre enfermo caçador baixou a cabeça, tristonho, mas, aproveitando para ver se tinha alguém olhando e, repentinamente, sem que percebessem o intento, pulou no ar, segurou o inseto que ria a valer e mergulhou com ele de cima da ponte.
As cavaleiras entreolharam-se espantadas.
Os cavalos ficaram de queixo caído e foi um custo levantá-los. Mas, de nada adiantou todo o trabalho mandibular. Sanvae e a Kertetszia debochada haviam sumido.
10
Muito mais tarde soube-se que um circense fazia demonstração de certo animalejo considerado por todos como um fenômeno voador. Tratava-se de um homem barbudo dono de um pernilongo dançarino, mas, fora tais boatos, nada mais serviu para por em claro a existência da dupla.
A não ser...
A não ser um fato que acabou citado nos jornais, sobre um anofelínio paranóico que assolava os casais perdidos nos matos, nas moitas ou nos escuros dos cinemas do interior, onde vale tudo. Dizia o texto que de um circo sumira, certo dia, o pernilongo assaltante ( com coleira e tudo ) e, que a partir daquele momento uma série de febres terçãs, quartãs e anãs, mais os estremecimentos, foram compilados. Além disso, havia em hospital categorizado , uma guia de internação para tratamento de nervos em nome de Sanvae Kertetszia da Silva. O texto fora assinado por um tal de Zaromeu que se dizia da estirpe dos doutores mas, que não era mais que um pobre sorveteiro especialista em distribuir resfriados para todas as crianças do bairro. Sorveteiro e aposentado, jurava que o que havia escrito para o jornal tinha ouvido falar não sabia quando nem onde e, que realmente não se preocupava com a saúde dos protagonistas da história, mesmo porque achava que não era história mas, sim, estória.
Dizem que no fim ele teria dito: - De qualquer forma, fica o dito pelo não dito. Se não gostou, vá reclamar com o Benedito! - sendo, em ato contínuo, encarcerado em célula privativa no hospital psiquiátrico, onde até hoje caça pulgas domesticáveis, preparando-as para um espetáculo beneficiente, do qual, somente ele sabe o roteiro.