A Garganta da Serpente
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A volta do fantasma Elesbão
- uma novela bárbara -

(Coelho de Moraes)

1

O conto que hora vai e hora vem, nunca termina, tem seu início neste momento de modo que pedimos aos caríssimos leitores que o folhear calmo, sem exasperações, pode ser precioso para o bom entendimento da história de uma personagem fictícia, às vezes sobrenatural, às vezes subnatural, às vezes semidesnatada. Queremos falar de Tartamunduel-Elesbão, o espírito das cavernas e das covas escuras; dos cantos ignotos e das grimpas soturnas; das locas febris e das frinchas agudas. Espírito que hoje prefere vagar pelas ruas das cidades, que no final das contas, é a mesma coisa.
Não se envergonhem de dizer que gostaram do conto. É natural.

2

No começo de sua morte, Tartamunduel-Elesbão habitava uma abadia nas profundezas de um vale perdido onde a umidade imperava mais que o abade e sua corretíssima abadessa (que à boca pequena era considerada amante dos pelourinhos. Naquela época o pelourinho era uma forma de diversão que os graúdos locais usavam, paralelamente aos jogos florais ). E, foi nesse meio de cultura poético-religiosa que Tartamunduel veio a morrer vitimado por uma parotidite que o leigo chama pelo apelido de caxumba, a qual veio se instalar nas regiões púbicas do homem supracitado, sendo que o seu fim foi amargamente chorado pelas mulheres vicinais, inclusive a sua, que até aquele momento não passava de simples objeto de adorno do castelo.

Por isso, Elesbão, o Mefítico, como gostava de ser chamado, desprendeu-se dos amigos e companheiros para sobremorrer nas dependências do castelo-abadia pois não suportava mais o choro dos vivos. O Sr. e Sra. Birrostrat eram os privilegiados donos do castelo-abadia cuja face principal dava de cara com o Mar da Noruega.

Vale também dizer que no começo da aparição do fantasmagórico Tartamunduel, o Porco, como gostava de ser chamado, o Sr. Birrostrat tentou vender o castelo muitas vezes pois não suportava mais o cheiro de cebola que exalava do perispírito do recém-morto e, não poucos foram os momentos, talvez com o propósito de ofender Elesbão, que o Exmo. Sr. de Birrostrat dizia ter conhecido várias falanges de fantasmas sem que nenhum fosse tão fedido àquele ponto. Fato que impossibilitava a convivência.

Tartamunduel-Elesbão, o Chamuscado , como gostava de ser chamado não se fez de rogado: parou de exalar o cebolóide aroma e passou a espalhar um forte cheiro de alho que impregnou cada recanto da abadia. Isso, em 1545, foi chamado de "Movimento Revolucionário ALLIUN CEPA mutandis ALLIUN SATIVUN" que logo caiu no esquecimento tanto por causa do latinório como por causa da inquisição.

3

O fato é que Tartamunduel-Elesbão permaneceu morto, vagueando pelas ameias do castelo-abadia até que o efeito aromatizante fosse de costume para todos os moradores do lugar, exclusive, é claro, possíveis visitantes ou vendedores de artigos de cama - lençóis, fronhas, cortinado, mulher - coisas similares para a mente viciada daquela época de feudos.

É fato, no entanto, importante que o leitor conheça o porquê de Elesbão escolher tal abadia para passar o resto dos séculos. E isso eu conto agora. Alguém disse que pretendia, Tartamunduel-Elesbão, o Jumento, como ele gostava de ser carinhosamente chamado, tornar-se herdeiro daquelas terras, quatrocentos e cinquenta anos depois, levantando bom lucro com a especulação imobiliária dos tempos modernos, inda mais, de frente para o Mar do Caminho do Norte; eu, por seu turno, sem tomar partidos, fico obrigado a desmentir tais boatos já que sei os verdadeiros motivos de Tartamunduel. Algo nada menos do que a certa dívida, sim, mas de outra origem, com outros valores de SPC diferente. Valores cósmicos e cármicos. Resgates de erros pretéritos. Não como queria o irascível Tartamunduel, o Irascível, como ele não gostava de ser chamado.

O destino batia à porta de Elesbão.

4

Voltando um pouco mais no tempo veremos Birrostrat sentado em uma pedra. Naquela época ele tinha outro nome, mas, para não atrapalhar o leitor fazendo-o decorar uma penca de nomes será mantido o de Birrostrat. E, sentava-se ele sobre uma pedra, observando os céus. Era o seu ofício: observador da Natureza. Aliás, a maioria das pessoas daquela tribo não faziam mais do que isso e, assim viviam.

Um dia chegou ao lugarejo uma certa mulher que veio a se apaixonar pelo tal Birrostrat, justamente pelo fato de que ele observava os céus colocando o cotovelo sobre o joelho direito, permitindo que o indicador e o polegar da mão direita erguessem o queixo até o angulo desejado, dando-lhe um ar de beatitude e comiseração. A certa mulher logo viu que aquele especialista era seu ideal para cônjuge e propôs-lhe consórcio marital.

Birrostrat pensou muitas vezes, comparou valores do passado e futuro longínquos, propôs ideias importantes e decidiu que o consórcio tinha lá sua razão de ser; para, no entanto, não deixar seu trabalho de observador ao léu, pediu àquela certa mulher que escrevesse o pedido de modo mais formal, numa daquelas pedras boas fabricadas no país de Chêmi, onde o barro chega a ser sagrado.

Laboriosamente, durante algumas luas, a certa mulher debateu-se com o pensamento até ordenar adequadamente uma série de frases que soassem entre o jurídico e o amoroso, de modo que a petição-carta começava dessa maneira:- Venho por estas mal traçadas linhas ousar reclamar junto ao emérito observador da natureza... etc... de modo que, apesar do espírito frio da escrita cuneiforme, pretendo expressar aqui o quanto me aproxima o meu pensar do pensar de vossa pessoa... etc... porquanto hei de lembrar-vos das minhas virtudes orgânicas e espirituais, as quais serão completamente compartilhadas com o excelso senhor... etc... reafirmando grande respeito e autoestima. Nestes termos pede deferimento. Data. Assinatura.

Ora, tal trabalho foi dispendioso, se bem que um escriba renomado a ajudasse no mister; via-se pelas olheiras que orlavam, evidentemente, os olhos da certa mulher, que ela estava exausta, coisa que somente seria recuperada com dieta bem balanceada e reforçada com leite de caprinos e muito trigo. O problema surgiu quando Birrostrat, através de um lacaio, mandou devolver o requerimento com um carimbo de indeferido.

5

O choque fora fatal.

A certa mulher irou-se profundamente e desagradou-lhe a fria ação de Birrostrat, levando-a a supor (por despeito)que todos os observadores da natureza fossem iguais a ele. Nós, o escritor este e o leitor, sabemos que não é verdade. Mas, para piorar a situação, mais tarde ela soube a razão que levou Birrostrat a excluí-la de sua lista de pretensas pretendentes. Birrostrat conhecera um exemplar de dromedário que fazia solo num grupo musical formado por quatro camelos e duas hienas mansas, sendo que o dromedário aquele era possuidor de excelente voz abaritonada e um poderoso vibrato, trazendo ao quase noivo Birrostrat uma dúvida: ou casava ou comprava o dromedário. Optou pela segunda hipótese acreditando haver maior utilidade no dromedário solista.

Para resumir, a certa mulher fremiu de raiva extraterrestre e completamente furibunda com todos e consigo mesma, viu-se, repentinamente, armada de pedras atiradas para todo lado, sem mira, sem direção, destrambelhadamente. Os viandantes, aquilo vendo, puseram-se a correr; outros, mais aquinhoados de um espírito cristão anacrônico, passaram a socorrer a subitamente endemoninhada mulher que não regulava esforços no afã incomensurável de arremessar projéteis pontiagudos sobre cabeças incautas, diga-se de passagem, alheias.

De piora em piora, a coisa tomou ares de loucura extrema quando passaram a vaiá-la, o que chamou a atenção dos soldados do rei. Pensaram em revolução (o rei metia os pés pelas mãos). Pensaram em manifestação (os impostos eram crescentes). Pensaram em greve (trabalhava-se muito para se ganhar pouco). Bem, pensaram em coisas basais, próprias para os limites de suas inteligências parcas. Por via das dúvidas botaram as mãos nas pernas e braços da certa mulher, carregando-a para o calabouço real (o que de maneira nenhuma significava que o rei estava no calabouço, como era de se esperar). Lá ela poderia refrear seus ânimos e colocar a cabeça no lugar, mas, não foi isso o que ocorreu. A certa mulher optou pela loucura. Antes, porém, deixou bem claro que um dia e, repetiu, um dia voltaria para vingar-se (o de sempre) de Birrostrat (claro, de quem mais), e sua decendência (aí já era exagero da pobre ), estivesse onde pudesse, fosse como acontecesse.

Daí que após longas peregrinações pelos Kosmos, de vida em vida, na captura do observador da natureza, deparamos a certa mulher nascendo, vivendo e morrendo sob a pele de Tartamunduel-Elesbão, o Sujo, como gostava de ser chamado, fomentado de nojos e imprecações dos mais variados tipos que, naquela época de 1545 A.D. assombrava magnificamente o castelo do Sr. e da Sra. de Birrostrat, como um abantesma da mais baixa qualidade.

Nem correntes o vagabundo carregava!

6

- Eu sou o Elesbão! - a voz ecoou pelos corredores úmidos da Abadia. O Sr. de Birrostrat começou a rir sem peias. Nunca se divertira tanto desde que empalaram o Conde no meio da floresta cinzenta.

- Eu sou o Elesbão! - a voz se repetiu de maneira trágica. No entanto era como se palhaços de um circo inglês fizessem micagens na frente do abade.

- Eu sou o Elesbão, cacete!! Não ouve?

Birrostrat parou de rir porque aquilo já ia longe demais. Uma evidente falta de respeito para com os outros fantasmas da casa. Espectros antigos, alguns, ali já aposentados. Crias do castelo através de custosas e longas noites de tortura e sofrimento no esticador de membros, ou no garrote vil, ou ainda sob simples machadadas nos dedos. Não se podia permitir que o intruso agisse de tal forma. Birrostrat resolveu interceder a favor da decência:

- O que você quer, sombra da escuridão?

- Tem muito bagre aqui no mar da Noruega, seu patife?

Mantendo uma daquelas faces de entendedor que nem mil palavras bastam, Birrostrat disse: - Bagre? Claro... claro.. já comi muito bagre. Aqui mesmo no Mar da Noruega...

- Tem muito , não é?

- É.

- Mentiroso. - E ato contínuo Elesbão cuspia um pouco de vento com aroma de alho no rosto de Birrostrat. Continuou: - Meu caro observador da natureza com sentidos embotados, como vai a sua esposa? O enfeite que perambula diariamente pelo castelo, que não lhe dá trabalho algum. O enfeite só se desrecalca quando há diversões no pelourinho do burgo ou, então, solitariamente, enroscada no meio de tantos vestidos e saiotes, escondidinha no banheiro. Mas, digo a você, verme, que foi através dela que eu preparei minha arapuca. A arapuca que o manterá sob minha custódia durante uns bonitos pares de anos!

Nesse momento Elesbão deu uma sonora gargalhada. Birrostrat encheu-se de terror e, bem baixinho, pôs-se a rezar um salmo, tentando se safar de tormenta tão embaraçosa. Ainda teve forças para dizer:

- Mas, o que é que eu tenho a ver com o peixe?

- Muito bem, meu caro! - É desnecessário dizer que Tartamunduel-Elesbão, o Grosso, como ele gostava de ser chamado, ficou espantado com a perspicácia do amedrontado abade. - Sim, o peixe, o bagre do qual já falamos. Ele servirá como garantia de que cumprirei minhas ameaças. Lembra-se dos vassalos de Aleksander, o puritano? Lembra-se? O que teriam eles comido à mesa, naquela ceia para caírem intoxicados na beira da estrada?

- Sim, eu me lembro. Todos os coscuvilheiros da Europa espalharam a notícia.

- Peraí. Agora você me pegou. Que que é coscuvilheiro?

- Intrigantes, mexeriqueiros, boateiros, Seu Fantasma. - Birrostrat respondia com perito ar serviu.

- Muito bem, minha cara vítima. Só que não foi boato, coisa nenhuma. Nem mentira. Mas, saiba que à minha mesa os vassalos foram obrigados a comerem bagre, meu caro, bagres crus; tenros, frescos... mas, crus. Com olhinho e tudo. Com escamas, cauda e buchada, meu caro, como manda o figurino ou o cardápio do melhor abutre-gurmê.

Birrostrat sentiu que a saliva chegava mais espessa ao seu paladar e que algumas gotas de suor frio faziam cócega no seu queixo, no entanto, continuou a ouvir a arenga de Tartamunduel-Elesbão, o Psicopata, como gostava de ser chamado, mesmo porque não tinha força suficiente, nem coragem a bem da verdade, para escapulir dali, saindo daquela presença invisível, graças ao medo e também ao imenso bolo de matéria fecal que se havia formado sob as calças de veludo.

- Foi por isso, meu caro perseguido, que havendo os vassalos vomitado sobre a mesa, no começo da refeição, até se adaptarem ao novo pasto, ganhei a alcunha de Mefítico, que pega bem paca; acredito que você venha a acreditar nesta história uma vez que sou, nesse momento, assessorado pela convincente argumentação que lentamente se instala debaixo de suas distintas vestimentas. Estou certo?

Nova gargalhada proporcionou um esvaziamento total e completo do tubo intestinal do Sr. de Birrostrat que já não tinha outro remédio a não ser pedir antecipado perdão.

- Mas, por que tanto ódio, Seu Fantasma?

- Pergunte ao seu dromedário predileto, abade banana.

- Juro que não estou entendendo!

- É!, ai de você, se ousar levantar a voz contra a minha espectralidade outra vez. Começaremos uma sessão de alimentação a partir de toda a fauna do lago aqui perto, sem esquecer dos crocodilos. Saiba, Birrostrat, que você só ganha enquanto espera a sua vez de chegar.
- Não!

- Sim!

- Não! Misericórdia!

- É tarde, é muito tarde, eu já vou indo. Eu preciso ir embora. Té manhã.

7

E por falar em manhã, o dia seguinte chegou trazendo também para os lábios de madame de Birrostrat um doce sorriso por causa dos acontecimentos da noite. É que após a tempestuosa conversa do mortal com o morto, como sabemos, o Sr. de Birrostrat foi presa de ligeiro transtorno entérico, o que o levou rapidamente para a alcova e, dali para o reservado nauseabundo no fundo do corredor. Ocorre que a partir daí surgiu um imprevisto na rotina do casal.

Toda a noite a madame de Birrostrat era a última a se recolher ao leito, pois ela perdia-se em arranjos e rearranjos que mais adornassem o seu castelo; com o desarranjo do marido fora de ampla magnitude, ocorreu uma troca de horários, de modo que ao deitar-se, a mulher do Sr. de Birrostrat apercebeu-se sozinha sobre a cama, levando-a a pensar no consorte, o que era raro.

Ora, na solidão do castelo o que mais se ouvia era um grupamento de barulhos desde os infernais gritos de almas danadas até coaxar de sapos perdidos nas umidades da masmorra. No entanto, a madame, por bem, apurado o ouvido, pôs-se a discriminar uma nova gama de vibrações desconhecidas. Vinha do fundo do corredor e ela pode notar que eram sons emitidos pela boca de seu marido, algo entre lamentoso e lúbrico, contrito e profundo, às vezes agudo e animalesco. Imediatamente lembrou-se de que só ouvira tais sinais e sintomas na noite de núpcias com o Sr. de Birrostrat, o que a colocou repentinamente fora de si, prevendo que o marido preparava-lhe uma de suas surpresas anuais.

- Mas, ainda é tão cedo! - falou para si mesma. - Geralmente só acontece no inverno.
Concluiu, por fim, que seria melhor não se preocupar, repetindo para si que a cavalo dado não se olha os dentes, monta-se e (rindo) cavalga-se. Aproveitou e treinou relinchos e jogos de anca.

Cá entre nós deve-se acrescentar que o problema de Birrostrat era bem outro e, não pretendendo me introduzir muito na questão, o leitor é bastante inteligente para entender que o observador da natureza gemia por causa dos estertores e borborigmos flatulentos que acometiam a sua mísera constituição e, não poucas vezes, pensou ter pilhado um ou outro fantasma amigável opinando sobre o mau cheiro que exalava continuamente de tão incompreendido tubo gástrico.

Uma hora mais tarde, um pouco melhor das cólicas e após ter tomado um bom copázio de BOLDO FRAGRANS, vemo-lo de volta ao seu quarto com a completa certeza de que encontraria sua mulher deitada e livremente flutuante nos braços de Morfeu. Porém, péssima surpresa o tomou quando ao pisar no tapete do quarto e subir os degraus da alcova percebeu que sua esposa estava nua!

O autor fica nesse momento com o direito de omitir descrições que talvez sejam indeléveis para as mentes de alguns que venham a tomar contato com a história de Tartamunduel-Elesbão, o Josta, como ele gostava de ser chamado. Sabemos de antemão que é possível que pessoas dotadas de calças-curtas-mentais ou pés-descalços-morais, no descuido, passarem a ler tal romântico enlevo, o que seria pernicioso para sua formação juvenil, quiçá, adulta. Outrossim, fica aqui a opinião do renomado Barão de Itararé, já valorizado em outro conto, que dizia ser muito melhor ter um galo no terreiro do que dois na testa, de modo que ousamos dizer em paralelo que é melhor sonhar com o que se gosta do que constatar, na realidade, que o que se gosta não presta.

Podemos dizer que foi uma noite agradável para trambos, ou seja para os três: Sr. e Sra. de Birrostrat e, Elesbão, que ficou olhando a pugna.

8

Não só olhando.

Realmente, com a ajuda de outros desencarnados vagabundos por alí, Elesbão, o Sujo, como gostava de ser chamado, procurava o máximo possível interferir no coito. E, diga-se de passagem, conseguiu. Aproveitou o momento propício do encontro celular fatal para promover uma nova formação germinativa e enveredou zigoto a dentro, habitando definitivamente o que mais tarde seria um corpo humano. Ele, Tartamunduel, outrora antiga apaixonada de Birrostrat, seria nada mais nada menos - agora - do que o seu filho, herdeiro de tudo e de todos. "Não é assim que se vinga, adulador de camelo?", pensou.

Para júbilo dos moradores do castelo, desaparecido aquele fedor de cebola misturado com alho, os visitantes começaram a se apresentar com maior frequência do que antes. As festas começaram a se repetir ao longo dos Invernos, enchendo os cômodos, salões, andares da Abadia com Cortesãs, Quimeras, Dissimuláveis, Rapazes alegres, outros alegres mesmo. No entanto ninguém era capaz de perceber o grande efeito palingenético que ocorria no interior matricial da Sr. de Birrostrat. O abade estranhou a desaparição da aparição aquela, mas foi dúvida que durou no máximo alguns centímetros numa ampulheta de hora. Às favas o fantasma, passaram muitos dias observando atentamente o Sol-da-meia-noite, junto a convivas e comensais, beberantes e notívagos, alguns vampiros e codornizes que, no meio daquela bagunça toda passaram despercebidos.

No entanto, Tartamunduel-Elesbão, o Pereba como gostava de ser chamado, senhor de quilates emurchecidos, virtudes opacas e suavidade evaporada, não contava com um pequeno detalhe. Pequeno como ele só, em seu segundo mês de crescimento intrauterino. A Sra. de Birrostrat não queria ter filhos. Ela, tão logo constatou a terrível possibilidade com a primeira vomitada, chamou seu médico familiar, sempre apto na sua função de contraceptivo medieval.

Tartamunduel alarmou-se. Seu plano ia para derradeiro brejo.

9

" Ó forças terríveis, inomináveis e sutis da Natureza.
Horrores esperam o Homem na manhã de seus dias.
Pior é viver no escuro da noite e ser incógnito.
Nulo para as lides da terra sedenta,
Rasgado em pedaços e ao solo atirado, como estrume."

Perdido na metafísica de tais pensamentos, Tartamunduel preocupou-se em arrebanhar aliados para a árdua tarefa. Permanecer dentro da Sra. de Birrostrat, quisesse ela ou não. Uma guerra a ser travada. Uma luta total ele começaria dentro da barriga daquela miserável. Só de ouvir falar em curetagem já se tornava irado e pronto para mandar pedradas. Imagino que o discípulo de Hipócrates fosse daqueles que utilizavam beberagens para seus fins nefandos, já que o narrador jura ter visto no embornal do facultativo um libreto muito tentador de origem Húngara, relatando o funcionamento de ervas e outros quejandos. Tartamunduel, certamente imaginou o mesmo pois o fantasma prorrompeu em lágrimas embrionárias, ,já pensando em sua expulsão através de contrações horripilantes e pouco higiênicas, aliás.

Contudo ao seu lado tinha amigos que o apoiaram na hora crucial.

E, um dia, foi travada a luta.

No início o médico tramava arrancar o amontoado celular chamado Elesbão à força de um persuasivo estilete, o qual rabiscava o útero da mulher que, de vez em quando se contorcia como que apunhalada repetidamente. Enquanto o suor rolava pela testa do douto senhor, os espíritos aliados de Tartamunduel, o Blasfemo, como ele adorava ser chamado, muito deles frutos de abortos passados, desviavam magneticamente a ponta do aparelho para qualquer lado, evitando o contacto direto do metal com Tartamunduel, o qual grudava-se no endométrio.

Fora um combate exaustivo e, cansado, sem entender que o resultado não se manifestava, o doutor deixou-se abater numa cadeira, ensopado de suor e trêmulo de nervoso.

- Utilizaremos a beberagem. Não haverá problema. É fatal!

- Não fará mal a ela? - gritou Birrostrat, com as faces contorcidas.

- O que há Birrostrat, por que esta súbita bondade? É claro que bem não fará. - e, ato contínuo, fê-la tomar o líquido do copo. Um líquido leitoso com sabor de terra. De repente a Sra. de Birrostrat ficou pálida, mais do que isso, arquipálida e, o embate recomeçou.

Vários espectros, notando as novas posições do inimigo, foram falar com Tartamunduel, o Cão, como gostava de ser chamado, e disseram à um só voz:

- O problema, meu caro, é só seu. O sujeito deu um troço para ela beber. Não sabemos como agir e o Sindicato não permite que participemos de ações espectrais sem estarmos capazes para o serviço. Conta ponto contra a classe. O que a gente sugere é que você se segure onde puder. Faz de conta que está num aeróstato desequilibrado.

- Mas, não sou eu quem precisa se segurar!, - Tartamunduel gritou visivelmente alterado. - São estas células aqui!

- O problema continua sendo seu, - falou outro fantasma de hierarquia inferior mas claramente palpiteiro. Aí veio a primeira contração. Tartamunduel não se continha:

- Pô, mas que porcaria de amigos são vocês! Servem para nada!

- Grita não! Grita não que a gente se vinga!

Nova contração jogou todos de um lado para o outro, como se estivessem em um navio adernante. Tartamunduel-Elesbão se prendia aos tecidos com todas as forças mas, não deixava de discutir com sua patota sobrenatural:

- Fazer o quê, seus frouxos? O que é que vocês podem fazer contra o Nojento máximo do pedaço, seus canalhas transparentes!?

- Quando você for pequeno a gente vem assustar você... de noite.

- Do jeito que vai, seu palerma, não serei pequeno nunca! Graças a vocês!

- Chega!!, - disse aquele que parecia ser o líder da rebelião, já que carregava a bandeira. - Vamos embora daquí e deixar esse ingrato se virar sozinho. Se ele nascer, vai morar no castelo; estamos por aí mesmo, é só assustar o garoto. Se não nascer, a gente dá um pau nele aqui fora. Vamonessa! Aiô, Silver!!

E, deixaram Tartamunduel sozinho, constantemente acossado pelas ondas que pretendiam expulsá-lo daquela região estratégica para o exterior, numa paródia em que se daria à luz uma mistura de sangue e peles. Pensando nisso, Elesbão juntou os decilitros finais de força que tinha e começou a retirar de si mesmo uma série de peles e tecidos que lentamente moldou numa estrutura similar ao seu corpo embrionário, levando-o a crer que ainda não tinha perdido o talento de escultor que obtivera quando um dia fazia dobradinha com Fídias, seu mestre, nas exposições da Pólis.

Afastando-se um pouco para poder visualizar melhor sua obra caiu em si de contentamento. Em seguida trabalhou no sentido em que se manifestasse uma hemorragia importante, através da qual faria sair a maçaroca produzida como embuste. Enquanto isso deveria permanecer firme e aguentar até o momento mais tranquilo da batalha. Cá do lado de fora, o Sr. de Birrostrat começou a tremer quando a hemorragia foi percebida e, ele, o desmaiável Birrostrat, começou a dar cotoveladas no rosto do médico. De branca, a madame se transformava em um verde muito claro. Sofrendo o ataque importuno do marido da vítima o doutor, imediatamente, ministrou-lhe outro líquido, cor de âmbar, o qual tinha a sublime propriedade de parar o processo; e, virando-se para o marido, o facultativo descerrou poderoso soco na barriga abacial, a qual arrotou de chofre os quatro frangos, os bacalhaus, os molhos tártaros, as tortas vienenses (já havia Viena?), as nove colheradas de morangos em calda, os cinco litros de cerveja da Germânia, além dos condimentos e petiscos que participavam do opíparo almoço, à la carte.

Para suprema alegria do terapeuta, com a hemorragia saiu um retalho de tecido avermelhado que foi rotulado de embrião indesejado, prontamente extirpado, de modo a deixar os futuros-ex-papais bem livres do incômodo.

Tartamunduel, o Empecilho, como não gostava de ser chamado, passou um lenço na testa, mas sorriu, vitorioso.

10

Ah,... a verve literária é pouca para definir com exatidão todo o drama que se desenrolou para aquelas vidas conturbadas. Cada um fazendo a justiça por próprias mãos, decidindo destinos pelos próprios desejos, plantando assim germens de discórdias futuras. Não! É impossível continuar tal história, uma vez que ela já raia o extremo da incredibilidade. No entanto recebo cartas e cartas pedindo para que venha à tona a moral desses sacrílegos acontecimentos e eu, cansado, fico com dificuldades para dizer que a moral é variável de lugar para lugar e, que no máximo, o que posso fazer é relatar o fim que tantas personagens alcançaram após o emaranhado de erros e danações.

Se não gostaram da história, que a fechem numa sólida gaveta da cômoda e esqueçam o ocorrido, ora essa! Já me basta aguentar a crítica dos falsos entendidos... já me basta é o que eu digo. Então, meu filho, não adianta reclamar! Creia, você também, que não há outro fim para tal história, coberta de lances macabros e fantasmagóricos. Lembre-se sempre da implacável Nêmesis; ela regula o movimento dos homens sobre a Terra. A culpa não é minha, gente! Eu sei que apesar de Mefítico - alcunha que lhe caía tão bem, sua mãe intuía algo nesse sentido quando o viu brincando na pocilga ao lado dos porquinhos, Elesbão tinha o seu quesinho de charme como qualquer ser invisível do tipo brincalhão (tá bem, brincadeira de mal gosto! ). Mas, eu bem sei que muita gente ficou do lado dele (especialmente os que têm realçado o seu lado feminino, que devem ter sofrido bastante quando Tartamunduel foi trocado por um dromedário, talentoso, é bem verdade, mas sempre com aquela grotesca corcova ali em cima ). No entanto é preciso dizer: a Nêmesis não perdoa porque ela é apenas uma situação estabelecida e não uma causa. Não tenho culpa se Elesbão não percebeu que para montar o artefato que faria o papel de embrião ele arrancava pedaços importantes de si mesmo. Não tenho culpa se Tartamunduel nasceu um tanto quanto amorfo. É bem verdade que a alcunha terá de ser trocada para o... Feiudo, por exemplo, ou... o Quasímodo, mas, é a vida... ou... a morte...

Outros ainda, bem sei, estarão a favor de Birrostrat e sua mulher, que também tinha suas dívidas para resgate. Basta alterar a natureza que ela logo responde. Filosofias à parte, a mulher atentou contra uma vida e o marido, omisso, cúmplice, no mínimo, não valia grande coisa. Há gosto para tudo. Eu, por mim, muito me identifico com o braço da Nêmesis, fazendo o papel de anjo interventor. Afinal das contas são dez capítulos!

11

A Sra. de Birrostrat pensou que tinha um tumor terrível. Não era. O que era ela não queria que fosse, mas foi. Um filho. Houve quem disesse: " A rejeição foi a causa necessária e suficiente para que o pequerrucho nascesse deformado". Mas, não se sabe. Curiosamente recebeu o nome de Renato. Na verdade, Renatus Aquareulus Vômer de Birrostrat, herdeiro. A pompa do nome compensava a comprovada destruição anatômica de que era dono.

Enquanto sua mãe fugia de casa, caindo na conversa de um domador de taturanas, deixando o abacaxi na mão de Birrostrat-pai, Renatus Vômer, mais tarde conhecido como Capivara, pelos coleguinhas de folguedo, nunca aprendeu a ler, limitando-se a praticar no uso da colher para se alimentar; precisava, então, da ajuda de um preceptor vindo da Normandia, veterinário, apicultor, além de exímio caçador de elefantes em África, aclamado como o melhor domesticador do Oriente. Sendo assim, a herança dos Birrostrat acabou passando para um familiar que não chegou a entrar nesta história, mas se saiu muito bem dela, pelo visto, deixando nos papéis do juiz assinado o nome de Charles de Drummond.

O Sr. de Birrostrat, completamente desestruturado com os últimos acontecimentos, imprevistos e desalentadores, deixou a criança sob a tutela do padre franco-suíço Jamoreau, o qual, por sua vez, permitiu que um coroinha desconhecido fizesse uso... ou melhor, cuidasse de Tartamunduel-Elesbão, renascido Renatus de Birrostrat, o que não durou muito tempo pois o tal coroinha cansou de tentar fazer o pobre Vômer compreender que não se comiam cabelos, muito menos os da perna e, muito menos ainda os da perna alheia.

Naturalmente que a vida de Renatus não foi comprida, já que muitas vezes era esquecido no reservado, em posição de devolução; quando o coitado já se encontrava, às vezes, à deriva, dentro da latrina, à mercê de fedores e objetos orgânicos, lá vinham com cordas e caçambas e balaios, prontos para retirá-los do local, muito a contra gosto, o que acarretava uma orquestra de vômitos e exclamações nauseabundas.

Renatus Aquarelus Vômer de Birrostrat morreu nas mãos de uma indulgente velhinha que o empregava como espantalho de sua hortinha, mas, isso já era em torno do importante ano de 1563, um ano antes da morte de Michelangelo Buanarroti.

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