A Garganta da Serpente
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Meus amigos do lago

(Cleo de Oliveira)

Abrindo a janela pela manhã uma cena se repetia. Ele estava ali, com os xingamentos ao amigo de pelúcia e os gestos exagerados. Girava-o no ar, o dedo censurador esticado. Outras vezes, colocava-o sentado no muro que fazia o contorno do lago. Parecia haver sempre um motivo para o castigo. De repente faziam as pazes, saindo a contar os pulos das pedras sobre a superfície da água. Os passeios eram observados por um homem grisalho que sentado à distância folheava o jornal. Ao final da manhã ele acenava, trazia o menino de volta com um assobio e juntos os três iam embora.

Instalado no escritório com vista para o lago, comecei a escrever o livro. Ficaria dois meses no apartamento de minha irmã, em busca de algum sossego; naquele momento era tudo que eu precisava. Assaltado pela curiosidade, meu trabalho não rendia. Com as persianas arriadas tentava me concentrar, mas aquele grande ímã me forçava a abrir uma fresta e descobrir que de novo estavam ali e seguiam a representação. Num determinado dia, percebi que o jovem viera sozinho. Ou pelo menos o homem não estava no banco ou mesmo perto dali. Com um sobretudo e um boné de lã me aventurei pela chuva polvilhada. Coloquei no bolso um pacote de biscoitos amanteigados, chamariz para uma conversa, e sentei num banco próximo observando se o homem não estaria escondido. Os pedaços de frases que ouvia eram reprimendas ao seu amigo, que agora eu percebia, era um coelho. Do pouco que entendi, faziam referência ao irmão do animal que estaria dormindo no fundo do lago e teria sido empurrado por ele. E isto era uma espécie de ameaça ao coelho assassino. Continuasse se comportando mal e iria se juntar ao irmão.

Abrindo o pacote de biscoitos, fingindo distração, eu me aproximei:

- Você e o pequeno amigo não me fariam companhia nestas bolachas?

O olho espichado de soslaio me avisou que havia sido notado. Olhando para o coelho ele respondeu com cara de educador:

- Olhe pra sua imensa barriga e responda que já comeu demais, seu orelhudo imbecil.

- E você? Parece mais em forma do que ele. Aceita um? - falei, desconsiderando a atenção desviada para o animal.

- Papai não permite que se fale com estranhos por aqui.

E dizendo isto saiu, com um pulo da altura de um palmo cruzando o muro que circundava o lago, correndo com o coelho pendurado na cintura.

Havia nele certa dificuldade para articular as frases. Não exatamente na construção, mas no tempo que levava para dizê-las, como se tivesse que pensá-las bem antes da cuspida final. Um pouco dessa dificuldade talvez fosse por causa do meio-sorriso que parecia involuntário e que lhe escapava da boca semiaberta. Após me ouvir, seu olhar se transformou em medo. Sutil, mas medo. Ainda dei alguns passos tentando segui-lo, mas parei pouco adiante, assustado com as folhagens que se remexiam.

No dia seguinte cheguei antes deles e me pus a brincar com um coelho que havia comprado e que era semelhante ao do menino. Quando ele se aproximou, eu acariciava as orelhas do meu novo parceiro. Notei seu interesse e perguntei por que não trazia seu amigo para brincarem juntos. De novo a resposta veio com uma ofensa ao coelho, mandando não se assanhar, pois sabia muito bem do seu castigo. E dizendo isto sacudia o animal simulando sua folgança. Em seguida com uma das mãos apertou-lhe o pescoço e com a outra esfregava o dedo em seu olho. "Quem mandou empurrar o irmão pro fundo do lago", ele disse. Eu logo me adiantei:

- Este aqui também empurrou sua irmã, sabia? Mas a punição dele é diferente - deixei sua curiosidade trabalhar por mim.

Ele chegou a abrir bem os olhos para perguntar alguma coisa, mas por alguma razão não o fez. Olhou para seu coelho e esticou-lhe a orelha. Vocês são mesmo todos iguais, disse com a voz rouca. Fiz uma nova tentativa, lembrando meus tempos de consultório quando sabia muito bem como riscar os vernizes dessas conchas:

- Meu irmão tinha um que roubava bolachas e era igual ao seu. Depois ele comia as bolachas embebidas no leite. Coelhos adoram elas assim. Molhadas ficam macias, já experimentou? Coitado, teve a mesma punição também. Parece ser a única que causa algum efeito.

- Já tentei de tudo, mas com este danado não tem jeito. Ele me faz dar voltas, e acaba me enrolando. Veja agora que ele come pequenas moscas. Quem pode com um coelho que come moscas? - e dizendo isto fazia movimentos rápidos como se o coelho abocanhasse o ar.

- Isto também pode ser resolvido. Amanhã lhe trarei uma solução. Esteja aqui.

- Não sei se poderei. Já disse que não devo falar com estranhos - arregaçou as calças e com as sandálias nas mãos saiu pisando forte os rasos do lago, na direção de umas árvores onde em seguida conversava com alguém. O homem grisalho, adivinhei. Saí rápido, com as samambaias se retorcendo por todos os lados. De volta ao apartamento não conseguia mais contar o tempo. Um instante ou três dias eram a mesma coisa. Uma sensação de descoberta me fazia esquecer das coisas que estavam à minha volta. Panelas secando no calor do fogo e torneiras abertas eram coisas menores. Minha irmã perguntou o que eu queria dizer com lago, coelhos, folhagens. Fui até a janela e apontei a paisagem. Ela apenas se lamentou. Mas eu sabia que não, tudo era real, mesmo que ao fim se tornassem parte de meu processo de criação. Sim, este eu conhecia muito bem, foi exatamente assim das outras vezes, em todos os meus livros foi assim. Semanas ou meses que permanecesse ali não fariam diferença. Escrevia dez ou quinze páginas de uma novela que em seguida eram amassadas e sufocadas na lixeira. Outras histórias não tinham sentido naquele momento e aquela que eu presenciava carecia amadurecimento. Sentia um queimar nas pontas dos dedos, um fogo que colava as axilas. Minha vida pertencia às criaturas do lago, como passei a chamá-los.

Eles voltaram, após alguns dias sem aparecer, desta vez na margem oposta. De longe vi que o jovem vinha acompanhado de um amigo vestido com uma roupa igual à sua. Desci rápido. Quando cheguei onde estavam, haviam sumido. Sentado no banco fiquei observando o lago que replicava os pinheiros em seu espelho. Fiquei em dúvida se havia mesmo o segundo jovem ou se foi o reflexo do primeiro nas águas do lago. Ou haveria sim uma segunda pessoa, talvez fosse o seu irmão. Ou mesmo, pensando de outra maneira, quem sabe minha irmã tivesse razão. Enquanto pensava, ele reapareceu no outro lado. Alimentava o coelho, ambos sentados na amurada. Quando cheguei perto, ele me pediu que tomasse cuidado com os esquilos que estavam à espreita. Ao primeiro descuido roubariam as bolachas e se esconderiam entre os arbustos. Disse isto revirando os olhos. Lembrei daquelas cenas em que macacos tomam comida de algum turista descuidado. Mas achei estranha a ideia dos esquilos, jamais tinha visto um por ali. Quando pensava em alguma técnica para contornar a alucinação do garoto, avistei um animal saltitante vindo em nossa direção. Parou a dois metros de nós, apoiado nas patas traseiras. Não sei bem se por medo ou raiva dei um chute na parte inferior do seu pescoço. O pobre deu duas voltas no ar e caiu desfalecido à beira do lago. O menino e seu coelho riram à beça, entremeados aos risos, pencas de xingamentos ao esquilo, exigindo-lhe bom comportamento. E então, mais risadas. De repente surgiram outros dois esquilos, estes bem maiores. Um deles teve o mesmo destino do primeiro e o outro, esquivando-se dos chutes, saiu correndo em ziguezagues na direção de um carro estacionado perto dali. Sentia-me bastante humano, quase um deus a decidir a sorte deles. Meu amigo continuou rindo, embora mantivesse os pés erguidos para não ser tocado. Companheiro naquela guerra, ele estava mais confortável com a minha presença. E em instantes queria saber tudo a meu respeito. Perguntas mal formuladas, ouvidos atentos, respostas com monossílabos inteligentes. Eu replicava, em seguida voltando ao irmão do coelho no fundo do lago, ainda era a minha maior curiosidade. Ele apenas fazia de conta que não ouvia, ou que perguntasse ao seu pai. Foi o que fiz, um pouco mais tarde. O velho apenas sorriu, talvez um pouco desconfiado, olhando ao longe o menino balançando o coelho. Na verdade - ele falou - Erik tinha um irmão gêmeo que caiu no lago quando jogavam bola ali naquele gramado. Sempre teimou em afirmar que tinha empurrado o irmão, mas nunca acreditamos nisso. Ou nunca quisemos pensar que uma criança, mesmo com os problemas que ele sempre teve, fosse capaz de tamanha maldade. Aconselhados por um terapeuta, inventamos a história do coelho que seria uma tentativa de tirar da sua cabeça a ideia do assassinato. Disse isso se afastando, como se estivesse falando para si, quase não pude entender as últimas frases.

Meu instinto farejou ali uma grande história. Agora sim parecia ter forma, personagens fortes. Logo recomecei a escrevê-la. A irmã que chegara de uma viagem de três dias surpreendeu-se com a minha súbita motivação. Elogiou-me, mesmo sem entender como havia feito tais amizades há tanto tempo, sem que ela percebesse ao menos uma dessas minhas descidas. Pensei ser mais uma de suas brincadeiras, ela disse. A verdade é que, a partir daquele dia, não desci mais ao lago. A história tomando corpo, o nascimento dos gêmeos, quando pequenos cada um ganha um esquilo - foi a maneira de incluí-los na história -, a infância de disputas, reli todo o Gênesis buscando inspiração em Caim e Abel. Os personagens me possuíam e um sentimento tornou-se crescente, um ódio pelo menino que por ciúmes privara o irmão de viver ao seu lado. Uma vida. E agora, valendo-se de sua razão, colocava a culpa no pobre amigo coelho. Eu, que já havia decidido a sina dos esquilos, sentia-me capaz de ajustar mais essa desventura. Finalizei a historia depois de escrever por oito dias, quase sem dormir. A irmã dizendo que eu precisava me alimentar. Ela fechava a porta e eu seguia, amparado por generosas taças de café, flambadas com tequila. O arremate da história me deixara contente, mas não satisfeito.

Certa manhã, determinado a um novo desenlace, coloquei uma faca dentro de um pacote de amanteigados e desci ao lago, esperei até que chegassem e me aproximei sem ser percebido. O jovem vestia um traje preto de linho felpudo. Quando me viu, sorri, enfiando a mão no pacote. Deslizei a faca pelo pescoço dele e segurei a cabeça até sentir o liquido envolver minha mão como uma luva quente. Com guinchos estridentes ele tentava me morder. Afastei-me ao ver que convulsionava. Quando saía correndo, me deparei com o velho a obstruir o meu caminho e não tive outra saída senão cortar a garganta dele também, tingindo suas roupas pretas. Um terceiro vulto teve o azar de estar passando naquela hora. E a esta altura eu já não controlava meus atos. Circulei pelo parque algum tempo e houve mais esquilos abatidos antes de chegar em casa. Contei à minha irmã que havia matado alguns esquilos, não queria magoá-la. Ela dizia - e repetia - que não havia esquilo algum por ali e me abraçava chorando, apertando a toalha encharcada contra o pescoço vermelho. Dois homens vieram me buscar. A mana em prantos. Eu não podia deixá-la, mas fui, com a condição de que parasse de chorar. Trouxeram para este lugar, onde pessoas severas misturam ordens a picadas de agulhas. Ainda não consegui escrever o final do livro da maneira que o imagino. O papel fornecido por eles é pouco. Evito falar, estão todos fora de si, e se descobrirem que já fui psicólogo ou escritor passarão o dia me incomodando com suas histórias. Muito mais do que já fazem quando me chamam de cruel, assassino de macacos, maluco do parque e outras bobagens. Não me atingem. Se esforçam, mas só eu sei que tudo vai ser em vão.

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