A Garganta da Serpente
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Aquela Ella

(Cynthia Oliveira)

Ella cantava. Muito e mesmo. Desde os primeiros minutos da manhã, antes mesmo de levantar-se da cama, ela já estava a cantar algumas notas de alguma música que morasse em seu coração. Ella cantava tanto, que até os passarinhos mais afoitos sentiam-se envergonhados com sua imensa euforia, entusiasmo e afinação. Assim, recolhiam-se, os passarinhos, aos ninhos, aos fios e aos cantos.

Em casa, o padrasto, se incomodava. Não dava, aquela menina, precisava estudar, estudar, estudar, martelava a cabeça da esposa, mãe de Ella, que sofria, a mãe de Ella, pela incompatibilidade total entre os dois.

- Mas como, eu, mãe de Ella, fazê-la abandonar-se? deixar-se? esquecer de sua voz e do que tem aqui, dentro de si?

Então Ella não se queixava, jamais, vez alguma. Partiu. Foi rumo ao nada ou ao tudo, vai saber. Pegou viola, poucas coisas, mochila.

- Leva dinheiro, filha minha, dá notícia, já sinto tua falta, te amo, te amo.

Um abraço de mãe e um carinho de filha; ficaram assim, demoradamente, mais de meia hora, e a partida antes do padrasto acordar, era preciso partir. A mãe, já meio cansada, sentindo-se velha, partiria com a filha, se fosse mais nova, se não dependesse tanto daquele homem.

- Compro o pão, tudo aqui nessa porra dessa casa. - batia o pé, o chefe daquele lugar.

E a filha foi, linda, cabelos curtos, olhos azuis; pequena e forte, frágil e imensa. Corpo bonito e meigo, sorriso de uma alegria contagiante. Apesar de tudo, sorri e canta, diziam todos.

Foi morar com uma amiga; amiga? Fazer o quê? Não tinha mais ninguém que apoiasse sua decisão. Cantar nas noites do Rio? Loucura era essa? E assim saiu de lá longe para a Zona Sul do Rio, onde morava a tal amiga. Foi ela, a amiga, quem avisou Ella de que, em uma determinada praça da zona sul, as pessoas paravam para ouvir música. Mas esqueceu de avisá-la de detalhes preciosos.

- Dão um bom trocado pro músico, já vi.

E Ella foi. Afinal, só o 'bico' de cantar nos bares não estava dando. Não dava para ratear o aluguel com a amiga; a convivência em espaço alheio nunca é muito agradável. Não dava não. Ela, Ella, precisava de dinheiro para juntar.

- Tenho que sair daqui e ter o meu lugar. Não quero te incomodar.

E a amiga:

- Tão pouco tempo? Já está pensando em querer ir embora? Puxa!

Mas era assim mesmo, Ella não sabia como mudar aquela situação provisória e que não estava boa, a não ser ganhando dinheiro e saindo daquilo tudo.

- O dinheiro que te dei, filha minha, já acabou? Mando mais. - disse a mãe, ao telefone.

- Manda não, mãe; me viro. Fica bem. - despediram-se; um longo suspiro de saudade.

Foi a tal praça da zona sul. Bem em frente, colocou uma caixinha para que os passantes depositassem os possíveis trocados, improvisou um banco, e lá se pôs a dedilhar o instrumento. A roupa clara e vaporosa mostrava a fragilidade da doce silhueta de Ella. A estatura pequena agigantou-se e, viola em punho, soltou a voz. Ella tocou o sino da igreja; com seu canto, soprou ao ouvido dos passantes o doce som da alma; dedilhou no instrumento o néctar, o pólen; não que isso fosse bom ou mau, era simplesmente Ella. Os passarinhos que por lá passavam aquietaram-se e ouviram Ella. Os pedestres que por lá passavam acalmaram-se e por lá ficaram e ouviram e ouviram Ella que cantava assustadoramente bem. Alegre, alegre, cantou a alegria de viver a vida que era, afinal, bonita.

Em outro canto daquela mesma praça, estava a Aquella, outra ela dessa história, tão dona da situação quanto a anterior; essa outra ela tinha lá outro perfil. Aquella inventava horrores com a voz, abalava os semáforos e, estridente, estilhaçava os vidros dos carros e das janelas dos edifícios. A sua voz aguçava os corações, inquietava ainda mais as dores; seu instrumento fazia ferver o asfalto e aquecer os ânimos. Não que isso fosse mau ou bom, era simplesmente Aquella.

E a amiga, com quem Ella morava, esqueceu-se de avisar da fera louca que morava dentro de Aquella, e a 'amiga?' já havia presenciado alguns barracos da figura em questão.

- A outra moça é de outro jeito. Tá vestida toda de preto. Cabelos desgrenhados, corpo cheio de tatuagem, cheia de olheiras, cheia de atitude. - comentou um homem que por lá passava.

- Veja só: a moça de branco canta bem, mas a moça de preto também. - comentou outra pessoa.

- As duas boas, boas. Mas vejam, a moça de preto já viu a outra, e ta com aquela cara de brava. Vai ter porrada. - e outra pessoa comentou ainda.

E não havia tido porrada, ainda. Aquella viu, melhor dizendo, ouviu Ella cantar e atrapalhar a sua cantoria já cativa do ponto. E foi tomar satisfação.

- Esse ponto é meu!

E a doçura habitual de Ella deu lugar ao comentário óbvio:

- Tem placa?

Não, não tinha, então ela mandou que Aquella não enchesse o saco.

- Tem palco pra todo mundo. A praça é do povo e eu sou povo também. - Ella continuou, mostrando ter, também, uma fera dentro de si.

- Não é Ave Maria, mas é cheia de graça, hein?! Vamos ver se pode comigo. - Aquella empunhou o violão e começou o que podemos chamar de disputa musical.

Elas disputavam a música, onde Ella ganhava, sem dúvida nenhuma, pois tinha voz nova, tinha voz doce. E o homem que por ali estava, comentava sem parar, qual narrador de jogo de futebol: "A moça de branco continua a cantar, continua sim senhor, e não pára de jeito nenhum, nem diante do 'tamanhão' da outra moça. Coisa feia, a moça de preto, coitada, sem recurso de voz, sem tanto talento, resolveu apelar. Baixaria..."

Aquella não conseguiu aceitar tamanha afronta e gritou ao microfone.

- Nem precisa gritar, se tem microfone, né? - gritou o homem no bar.

Após notar a preferência do público por Ella, Aquella sentiu-se mais traída ainda:

- Cambada de traíra, só porque ela é nova no pedaço vocês desistem de mim, que tô aqui, fiel a vocês há tanto tempo. Canto pra agradar vocês; gasto minha voz, faça chuva, faça sol. Esse espaço é meu, é meu!

- E as duas estão peladas! Você nem imagina, tá tendo porrada ali, ó, bem ali, naquele ponto. Duas mulheres. Já tiraram até a roupa uma da outra. - continuava o homem do bar a fomentar o zum-zum-zum.

As duas ficaram peladas? Peladas... como assim?

- Peladonas. É que a outra moça, a vestida de preto, resolveu dar porrada na outrazinha, a pequenina, mas a pequenina era forte, precisava ver, revidou e sentou o microfone na cabeça da outra, a grandona, que ficou furiosa e disse que era um desrespeito, alguém não respeitar o espaço do outro.

A rua era pública, não era? Pois então, não tinha isso não, diziam todos os presentes, e vaiaram ainda mais Aquella.

Enlouquecida, Aquella, deu muito tapa e grito em cima de Ella que tentou inutilmente se defender. Aquella puxou, então, o vestido de Ella, deixando-a praticamente nua; o corpo tão lindo, a mostra. Os passarinhos ruborizaram, as senhoras e senhores recolheram-se ante a beleza da moça e ficaram mudos, de espanto e de felicidade por verem tamanha delicadeza no corpo da dona da voz imensa.

- Mas o senhor não disse que as duas ficaram peladonas? Só tem uma pelada ali. E só ficou nua agora... - argumentou outro homem para o primeiro homem.

- Me enganei. Só a pequena ficou nua, olha só, dá pra ver ainda. Vamo ver, vamo ver.

E Aquella saiu triunfante, julgando-se vitoriosa. Após o confronto final, pegou a viola e a enfiou no saco junto com o microfone.

- Amanhã eu volto pro ponto que é meu por direito e vou cantar pra vocês. - ameaçou e partiu.

O público olhando, Ella chorando, a viola sangrando, a voz calando. Ella ficou ali, caída na praça, seu corpo mais exposto do que gostaria; os olhares de todos sob ela; a piedade de todos sob sua alma partida. Até que surgiu um 'príncipe', que naquele momento ainda era príncipe; olhou a pequena figura caída no chão e deu a ela o seu paletó, ajudou-a a se levantar e a se recompor, pegou o seu violão e microfone e tudo enfim. E os dois juntos, mas não muito, ainda, passaram por Aquella que, a essa altura, caminhava de cabeça baixa, resmungando com os ratos que também costumavam passear pela rua. Ella e o príncipe sentaram-se em um bar, pediram vinho. O dono do bar, que havia visto toda a formosura do corpo e da voz de Ella, perguntou:

- Canta pra minha freguesia todo dia na hora do almoço, bem aqui dentro, mas perto da porta pra atrair gente; te pago um salário muito bom. Quer?

Os passarinhos, do alto, podiam sobrevoar a cena da continuação do voo de Ella rumo ao seu próprio céu.

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