Ella cantava. Muito e mesmo. Desde os primeiros minutos da manhã, antes
mesmo de levantar-se da cama, ela já estava a cantar algumas notas de
alguma música que morasse em seu coração. Ella cantava
tanto, que até os passarinhos mais afoitos sentiam-se envergonhados com
sua imensa euforia, entusiasmo e afinação. Assim, recolhiam-se,
os passarinhos, aos ninhos, aos fios e aos cantos.
Em casa, o padrasto, se incomodava. Não dava, aquela menina, precisava
estudar, estudar, estudar, martelava a cabeça da esposa, mãe de
Ella, que sofria, a mãe de Ella, pela incompatibilidade total entre os
dois.
- Mas como, eu, mãe de Ella, fazê-la abandonar-se? deixar-se? esquecer
de sua voz e do que tem aqui, dentro de si?
Então Ella não se queixava, jamais, vez alguma. Partiu. Foi rumo
ao nada ou ao tudo, vai saber. Pegou viola, poucas coisas, mochila.
- Leva dinheiro, filha minha, dá notícia, já sinto tua
falta, te amo, te amo.
Um abraço de mãe e um carinho de filha; ficaram assim, demoradamente,
mais de meia hora, e a partida antes do padrasto acordar, era preciso partir.
A mãe, já meio cansada, sentindo-se velha, partiria com a filha,
se fosse mais nova, se não dependesse tanto daquele homem.
- Compro o pão, tudo aqui nessa porra dessa casa. - batia o pé,
o chefe daquele lugar.
E a filha foi, linda, cabelos curtos, olhos azuis; pequena e forte, frágil
e imensa. Corpo bonito e meigo, sorriso de uma alegria contagiante. Apesar de
tudo, sorri e canta, diziam todos.
Foi morar com uma amiga; amiga? Fazer o quê? Não tinha mais ninguém
que apoiasse sua decisão. Cantar nas noites do Rio? Loucura era essa?
E assim saiu de lá longe para a Zona Sul do Rio, onde morava a tal amiga.
Foi ela, a amiga, quem avisou Ella de que, em uma determinada praça da
zona sul, as pessoas paravam para ouvir música. Mas esqueceu de avisá-la
de detalhes preciosos.
- Dão um bom trocado pro músico, já vi.
E Ella foi. Afinal, só o 'bico' de cantar nos bares não estava
dando. Não dava para ratear o aluguel com a amiga; a convivência
em espaço alheio nunca é muito agradável. Não dava
não. Ela, Ella, precisava de dinheiro para juntar.
- Tenho que sair daqui e ter o meu lugar. Não quero te incomodar.
E a amiga:
- Tão pouco tempo? Já está pensando em querer ir embora?
Puxa!
Mas era assim mesmo, Ella não sabia como mudar aquela situação
provisória e que não estava boa, a não ser ganhando dinheiro
e saindo daquilo tudo.
- O dinheiro que te dei, filha minha, já acabou? Mando mais. - disse
a mãe, ao telefone.
- Manda não, mãe; me viro. Fica bem. - despediram-se; um longo
suspiro de saudade.
Foi a tal praça da zona sul. Bem em frente, colocou uma caixinha para
que os passantes depositassem os possíveis trocados, improvisou um banco,
e lá se pôs a dedilhar o instrumento. A roupa clara e vaporosa
mostrava a fragilidade da doce silhueta de Ella. A estatura pequena agigantou-se
e, viola em punho, soltou a voz. Ella tocou o sino da igreja; com seu canto,
soprou ao ouvido dos passantes o doce som da alma; dedilhou no instrumento o
néctar, o pólen; não que isso fosse bom ou mau, era simplesmente
Ella. Os passarinhos que por lá passavam aquietaram-se e ouviram Ella.
Os pedestres que por lá passavam acalmaram-se e por lá ficaram
e ouviram e ouviram Ella que cantava assustadoramente bem. Alegre, alegre, cantou
a alegria de viver a vida que era, afinal, bonita.
Em outro canto daquela mesma praça, estava a Aquella, outra ela dessa
história, tão dona da situação quanto a anterior;
essa outra ela tinha lá outro perfil. Aquella inventava horrores com
a voz, abalava os semáforos e, estridente, estilhaçava os vidros
dos carros e das janelas dos edifícios. A sua voz aguçava os corações,
inquietava ainda mais as dores; seu instrumento fazia ferver o asfalto e aquecer
os ânimos. Não que isso fosse mau ou bom, era simplesmente Aquella.
E a amiga, com quem Ella morava, esqueceu-se de avisar da fera louca que morava
dentro de Aquella, e a 'amiga?' já havia presenciado alguns barracos
da figura em questão.
- A outra moça é de outro jeito. Tá vestida toda de preto.
Cabelos desgrenhados, corpo cheio de tatuagem, cheia de olheiras, cheia de atitude.
- comentou um homem que por lá passava.
- Veja só: a moça de branco canta bem, mas a moça de preto
também. - comentou outra pessoa.
- As duas boas, boas. Mas vejam, a moça de preto já viu a outra,
e ta com aquela cara de brava. Vai ter porrada. - e outra pessoa comentou ainda.
E não havia tido porrada, ainda. Aquella viu, melhor dizendo, ouviu Ella
cantar e atrapalhar a sua cantoria já cativa do ponto. E foi tomar satisfação.
- Esse ponto é meu!
E a doçura habitual de Ella deu lugar ao comentário óbvio:
- Tem placa?
Não, não tinha, então ela mandou que Aquella não
enchesse o saco.
- Tem palco pra todo mundo. A praça é do povo e eu sou povo também.
- Ella continuou, mostrando ter, também, uma fera dentro de si.
- Não é Ave Maria, mas é cheia de graça, hein?!
Vamos ver se pode comigo. - Aquella empunhou o violão e começou
o que podemos chamar de disputa musical.
Elas disputavam a música, onde Ella ganhava, sem dúvida nenhuma,
pois tinha voz nova, tinha voz doce. E o homem que por ali estava, comentava
sem parar, qual narrador de jogo de futebol: "A moça de branco continua
a cantar, continua sim senhor, e não pára de jeito nenhum, nem
diante do 'tamanhão' da outra moça. Coisa feia, a moça
de preto, coitada, sem recurso de voz, sem tanto talento, resolveu apelar. Baixaria..."
Aquella não conseguiu aceitar tamanha afronta e gritou ao microfone.
- Nem precisa gritar, se tem microfone, né? - gritou o homem no bar.
Após notar a preferência do público por Ella, Aquella sentiu-se
mais traída ainda:
- Cambada de traíra, só porque ela é nova no pedaço
vocês desistem de mim, que tô aqui, fiel a vocês há
tanto tempo. Canto pra agradar vocês; gasto minha voz, faça chuva,
faça sol. Esse espaço é meu, é meu!
- E as duas estão peladas! Você nem imagina, tá tendo porrada
ali, ó, bem ali, naquele ponto. Duas mulheres. Já tiraram até
a roupa uma da outra. - continuava o homem do bar a fomentar o zum-zum-zum.
As duas ficaram peladas? Peladas... como assim?
- Peladonas. É que a outra moça, a vestida de preto, resolveu
dar porrada na outrazinha, a pequenina, mas a pequenina era forte, precisava
ver, revidou e sentou o microfone na cabeça da outra, a grandona, que
ficou furiosa e disse que era um desrespeito, alguém não respeitar
o espaço do outro.
A rua era pública, não era? Pois então, não tinha
isso não, diziam todos os presentes, e vaiaram ainda mais Aquella.
Enlouquecida, Aquella, deu muito tapa e grito em cima de Ella que tentou inutilmente
se defender. Aquella puxou, então, o vestido de Ella, deixando-a praticamente
nua; o corpo tão lindo, a mostra. Os passarinhos ruborizaram, as senhoras
e senhores recolheram-se ante a beleza da moça e ficaram mudos, de espanto
e de felicidade por verem tamanha delicadeza no corpo da dona da voz imensa.
- Mas o senhor não disse que as duas ficaram peladonas? Só tem
uma pelada ali. E só ficou nua agora... - argumentou outro homem para
o primeiro homem.
- Me enganei. Só a pequena ficou nua, olha só, dá pra ver
ainda. Vamo ver, vamo ver.
E Aquella saiu triunfante, julgando-se vitoriosa. Após o confronto final,
pegou a viola e a enfiou no saco junto com o microfone.
- Amanhã eu volto pro ponto que é meu por direito e vou cantar
pra vocês. - ameaçou e partiu.
O público olhando, Ella chorando, a viola sangrando, a voz calando. Ella
ficou ali, caída na praça, seu corpo mais exposto do que gostaria;
os olhares de todos sob ela; a piedade de todos sob sua alma partida. Até
que surgiu um 'príncipe', que naquele momento ainda era príncipe;
olhou a pequena figura caída no chão e deu a ela o seu paletó,
ajudou-a a se levantar e a se recompor, pegou o seu violão e microfone
e tudo enfim. E os dois juntos, mas não muito, ainda, passaram por Aquella
que, a essa altura, caminhava de cabeça baixa, resmungando com os ratos
que também costumavam passear pela rua. Ella e o príncipe sentaram-se
em um bar, pediram vinho. O dono do bar, que havia visto toda a formosura do
corpo e da voz de Ella, perguntou:
- Canta pra minha freguesia todo dia na hora do almoço, bem aqui dentro,
mas perto da porta pra atrair gente; te pago um salário muito bom. Quer?
Os passarinhos, do alto, podiam sobrevoar a cena da continuação
do voo de Ella rumo ao seu próprio céu.