A Garganta da Serpente
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Verás que eu tinha razão

(Carlos Neotti)

Ouço vozes do lado de fora, mas não consigo distinguir o que dizem. Alguns chegaram antes de mim, demonstrando toda a solidariedade que o momento exige, ou por pura curiosidade. Outros vão chegando só agora que já posso vislumbrar a fraca luz do sol dessa linda manhã de inverno, mas vão primeiro falar com Vera minha antiga esposa e Marta minha única filha e só depois se aproximam timidamente de mim. Cafajestes! Gritaria se pudesse. Sempre soube que ambas despertavam interesse nos homens, mas não respeitar nem esse momento solene, já é desacato. Hipócritas, mesquinhos, dissimulados. Conheço cada atitude, cada sentimento que povoa o coração dessa gente mentirosa que hoje me rodeia constrangida. Já fiz a mesma coisa inúmeras vezes também.

Outros ainda nem se dignarão a vir e talvez estejam certos, só atrapalhariam. Aproveitem o dia! Pediria, se pudesse.

Evidentemente que estaria sendo injusto generalizando assim dessa forma, pois muitas pessoas virão porque realmente gostam de mim, como Isadora.

Apesar da diferença de idade é a única mulher que amei de verdade. Audaz, corajosa, decidida, puta safada! Descaradamente culta. Audaciosa, virá me dar um beijo, eu sei. Deve estar se arrumando especialmente para esse dia tão especial, por isso a demora. Espero estar alinhado o suficiente para causar boa impressão nela, apesar de saber que me ama de qualquer jeito. Mas sei que virá. Exuberante como sempre, colocando todas essas outras no chinelo, como sempre. Causando inveja, despeito, ciúmes. Principalmente em Vera. Essa sente na carne porque perdeu completamente o domínio sobre mim.

Não a culpo, vintes anos de casamento deixam profundas cicatrizes. Marta é uma delas, a mais visível. Horrenda chaga aberta de uma juventude distante que infectou nossa vida com seu pus. Danem-se elas! Danem-se todas.

Só Isadora realmente importa agora e sempre. Nem sei como pude viver tantos anos sem ela. Por certo era porque não vivia, vegetava! Encarrilhava os dias monótonos e repetitivos, insosso, desgastado, sem alma. Mas ela apareceu e trouxe o calor e a luz do seu frescor para esse velho coração corroído pela vida. Reacendeu o flácido desejo carnal com um sem número de novidades.

Ousei, ousou, ousamos nos usar. Como adolescentes esbofeteamos a cara safada da sociedade, gozamos gostosamente na cara dela. Que nosso relacionamento causou espanto, desgosto, fúria, inconformidade, tenho ciência, mas e daí?

Qual é o problema de se ter um amor da idade da sua filha, só que bem mais deleitável? Hipócritas! Os mesmos velhos babões que me acompanham nas orgias com meninas ainda mais novas que Isadora me condenam, dissimulam, fazem ar de nojo e desaprovação. Cuspiria neles, se pudesse! Eu pelo menos assumi o risco, expus meu coração e meus sentimentos sem medo de parecer ridículo.

Não me importo, estou feliz assim, ela me ama e isso é que realmente importa pra mim. Logo Isadora entrará por aquela porta, aquecerá e iluminará o ambiente muito mais que o tímido sol de inverno lá fora tenta em vão.

Enfeitará a sala muito mais que essas pobres flores de cheiro enjoativo.

Essa gente falsa que me cerca verá e se morderá de inveja dela, de mim, do nosso amor e da felicidade que nos faz vibrar.

Apareceu de repente sob o umbral da porta. Quem é essa mulher maravilhosa que está chegando? Linda, quase tanto quanto Isadora que deve estar chegando, um pouco mais baixa talvez, tem menos porte. Mesmo assim é linda!

Tem olhos penetrantes e voz suave, sua linda cabeleira negra se esparrama sobre mim quando se debruça e sopra uma frase no meu ouvido, seu perfume é delicioso, seus seios fazem uma delicada pressão sobre meu peito inerte.

- Vamos! Está na hora. Sussurra docemente. Levanto-me sem pressa, mas ansioso para acompanhá-la. As pessoas na sala nem notam, continuam com seus olhares distantes e enigmáticas expressões. Ela está na porta, a luz do sol recorta sua silhueta atraente escondida pelo delicado vestido preto. Flutua para o jardim florido, seu doce perfume me convida a segui-la.

- Espera um pouquinho mais, ela ainda não chegou. Suplico.

- Ela não virá. Está na hora, vamos. Temos ainda uma longa jornada pela frente. E foi se afastando até o jardim florido.

- Só mais um minuto. - Implorei. - Você não conhece Isadora. Sei que virá.

- Conheço a alma humana, vamos.

Sua voz transformando-se numa ordem, mas ainda assim, doce, soava como a brisa que soprava naquela manhã de inverno.

Virei ainda uma última vez para silenciosamente me despedir dos que ficavam, bem a tempo de ver a tampa da minha urna funerária ser cuidadosamente encaixada no lugar. Estava na hora.

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