Silenciosamente o cravo arrependeu-se de ceder aos meus apelos por clemência
e voltou ferir as entranhas do meu ser, ressoar suas infinitas agruras e manifestar
suas inconstantes ideias acerca de Isadora. Tentava impressionar, persuadir,
fazer relembrar o disparate do sublime sentimento digno de apreço, de
estima, de consideração, a coisa imaginada, a ideia com
a qual me orgulhava antes mesmo, na esperança de ver realizada. Rubi
como teus lábios jamais foram vistos. Esmeraldas como teus olhos ainda
não se teve notícias.
No mundo todo nem o trigal mais rico e maduro chega aos pés do jardim
dos teus cabelos. Neve límpida como tua tez apessegada ainda não
se formou, falta-lhe o cristalino do teu sorriso desfilando perfilados mármores
perfeitos. Mas o cravo maldito retorquia, procurava fazer lembrar que Isadora
está tão perto quanto o sol da lua, apesar de infinitamente maior
o sentimento que nos une. Ao cravo não importa, não tem coração.
Cabe-lhe, no teatro de comédias que somos nós humanos, o papel
de algoz, de mensageiro agourento de lembranças amargas.
Deleite, doçura, suavidade. Perder-me entre tuas coxas firmes e roliças,
deslumbrado ainda pelo perfume do teu pueril jardim particular. Se me atacas
o músculo principal em meu peito e aflige-me incansável tensão
em meus nervos que direi de minha consciência? Pouco importa se em vigília
constante não resisto e ajoelho-me humilhado aos teus pés. Vibro
intimamente com a emanação generosamente agradável ao olfato
que exalam nossos corpos entrelaçados, extenuados pelo prazeroso embate
sem vencidos nem vencedores e que expõe nossos agravos e motivos de veneração,
fascinação. Desde a primeira vez, e foram muitas, somos ébrios
arrastados para o que nos afigura belo, digno, grandioso. Debochamos do tempo
perdido e nos deliciamos com as lágrimas de raiva choradas pelos que
se agarram ainda aos pensamentos dominantes que já não seguimos
com interesse ou paixão, esquecemos, ousamos.
Viramos a pesada página desse milenar volume de ambição
e cobiça que a humanidade escreveu com sangue e sacrifício e iniciamos
um novo. Inédito, livre de qualquer recordação de coisa
efêmera e que pouca impressão deixou nas pequenas almas. Imprimimos
com nossos fluídos de estreia uma nova história, só
de beleza e prosperidade. Encontramos o ponto aonde rebenta uma nascente, uma
fonte natural perene, cristalina como teu sorriso, Isadora, caudalosa como o
rio do teu prazer, júbilo, emoção. Se te faltava a alegria
e sobrava a melancolia, agora tens em mim grande afeição, imensa
amizade, uma verdadeira ligação espiritual e carnal. Acabou-se
o abatimento, a consternação, a mágoa.
Sei que compactuas comigo, Isadora. Sinto enquanto estremeces ofegante em meus
cálidos braços, sedenta de ardentes abraços, incansável.
Ansiosa por novos prazeres que não te são mais proibidos agora.
Invejo teu corpo ainda nos primeiros tempos de existência, benfazejo,
percebo e conheço a teus verdadeiros sentimentos, sei que anseias por
abranger com a inteligência o que te povoa o peito comprimido, prestes
a explodir. Compreender tuas sensações psíquicas, o pesar,
a mágoa, o desgosto, é fácil, mas custoso.
Entender a intuitiva percepção da realidade que te cerca, apreciar
as qualidades, os méritos do que chamas paixão, quem é
capaz? Eu não sou! Nem a mim compreendo inteiramente, unicamente desfruto
e orgulho-me mesmo consciente de não ser merecedor. Mas que importa?
A concepção clara de uma realidade já me basta e não
almejo deter toda ela. A mim somente importa você, Isadora, todo o resto
poderia não existir. Atrevo-me a desafiar o fustigante silêncio
do cravo em minha lapela e expor fielmente a minha verdade. Nada existe além
de Isadora, flutuam em torno dela insignificantes.
O cravo repete sua infame ladainha contando com escárnio os múltiplos
de nossas idades, um, dois, três. Exijo silêncio replicando exponenciais
e fatoriais dos orgasmos que nos bastam, apesar de só interessem a nós
e a mais ninguém. Abro essa exceção ao cravo para calar-lhe
a voz áspera e estridente, esganiçada, subjugando-o e mostrando-lhe
seu devido lugar.
Malcriado retruca que nosso amor estará amanhã o acompanhando
na fétida lixeira, esquecido, descartado. Prazerosamente desfruto da
minha hora de sorrir com escárnio e perco-me na linha do pensamento e
relego a fútil contenda com o cravo, pois Isadora vem entrando, flutuando
sobre o tapete vermelho da catedral, entre as rosas vermelhas como seus lábios,
linda, exuberante em seu vestido de noiva. Sorridente aproxima-se lentamente
no fulgor dos seus treze anos acalentar meus quarenta de solidão e desespero.