A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Isadora e o Cravo

(Carlos Neotti)

Silenciosamente o cravo arrependeu-se de ceder aos meus apelos por clemência e voltou ferir as entranhas do meu ser, ressoar suas infinitas agruras e manifestar suas inconstantes ideias acerca de Isadora. Tentava impressionar, persuadir, fazer relembrar o disparate do sublime sentimento digno de apreço, de estima, de consideração, a coisa imaginada, a ideia com a qual me orgulhava antes mesmo, na esperança de ver realizada. Rubi como teus lábios jamais foram vistos. Esmeraldas como teus olhos ainda não se teve notícias.

No mundo todo nem o trigal mais rico e maduro chega aos pés do jardim dos teus cabelos. Neve límpida como tua tez apessegada ainda não se formou, falta-lhe o cristalino do teu sorriso desfilando perfilados mármores perfeitos. Mas o cravo maldito retorquia, procurava fazer lembrar que Isadora está tão perto quanto o sol da lua, apesar de infinitamente maior o sentimento que nos une. Ao cravo não importa, não tem coração. Cabe-lhe, no teatro de comédias que somos nós humanos, o papel de algoz, de mensageiro agourento de lembranças amargas.

Deleite, doçura, suavidade. Perder-me entre tuas coxas firmes e roliças, deslumbrado ainda pelo perfume do teu pueril jardim particular. Se me atacas o músculo principal em meu peito e aflige-me incansável tensão em meus nervos que direi de minha consciência? Pouco importa se em vigília constante não resisto e ajoelho-me humilhado aos teus pés. Vibro intimamente com a emanação generosamente agradável ao olfato que exalam nossos corpos entrelaçados, extenuados pelo prazeroso embate sem vencidos nem vencedores e que expõe nossos agravos e motivos de veneração, fascinação. Desde a primeira vez, e foram muitas, somos ébrios arrastados para o que nos afigura belo, digno, grandioso. Debochamos do tempo perdido e nos deliciamos com as lágrimas de raiva choradas pelos que se agarram ainda aos pensamentos dominantes que já não seguimos com interesse ou paixão, esquecemos, ousamos.

Viramos a pesada página desse milenar volume de ambição e cobiça que a humanidade escreveu com sangue e sacrifício e iniciamos um novo. Inédito, livre de qualquer recordação de coisa efêmera e que pouca impressão deixou nas pequenas almas. Imprimimos com nossos fluídos de estreia uma nova história, só de beleza e prosperidade. Encontramos o ponto aonde rebenta uma nascente, uma fonte natural perene, cristalina como teu sorriso, Isadora, caudalosa como o rio do teu prazer, júbilo, emoção. Se te faltava a alegria e sobrava a melancolia, agora tens em mim grande afeição, imensa amizade, uma verdadeira ligação espiritual e carnal. Acabou-se o abatimento, a consternação, a mágoa.

Sei que compactuas comigo, Isadora. Sinto enquanto estremeces ofegante em meus cálidos braços, sedenta de ardentes abraços, incansável. Ansiosa por novos prazeres que não te são mais proibidos agora. Invejo teu corpo ainda nos primeiros tempos de existência, benfazejo, percebo e conheço a teus verdadeiros sentimentos, sei que anseias por abranger com a inteligência o que te povoa o peito comprimido, prestes a explodir. Compreender tuas sensações psíquicas, o pesar, a mágoa, o desgosto, é fácil, mas custoso.

Entender a intuitiva percepção da realidade que te cerca, apreciar as qualidades, os méritos do que chamas paixão, quem é capaz? Eu não sou! Nem a mim compreendo inteiramente, unicamente desfruto e orgulho-me mesmo consciente de não ser merecedor. Mas que importa? A concepção clara de uma realidade já me basta e não almejo deter toda ela. A mim somente importa você, Isadora, todo o resto poderia não existir. Atrevo-me a desafiar o fustigante silêncio do cravo em minha lapela e expor fielmente a minha verdade. Nada existe além de Isadora, flutuam em torno dela insignificantes.

O cravo repete sua infame ladainha contando com escárnio os múltiplos de nossas idades, um, dois, três. Exijo silêncio replicando exponenciais e fatoriais dos orgasmos que nos bastam, apesar de só interessem a nós e a mais ninguém. Abro essa exceção ao cravo para calar-lhe a voz áspera e estridente, esganiçada, subjugando-o e mostrando-lhe seu devido lugar.

Malcriado retruca que nosso amor estará amanhã o acompanhando na fétida lixeira, esquecido, descartado. Prazerosamente desfruto da minha hora de sorrir com escárnio e perco-me na linha do pensamento e relego a fútil contenda com o cravo, pois Isadora vem entrando, flutuando sobre o tapete vermelho da catedral, entre as rosas vermelhas como seus lábios, linda, exuberante em seu vestido de noiva. Sorridente aproxima-se lentamente no fulgor dos seus treze anos acalentar meus quarenta de solidão e desespero.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br