A Garganta da Serpente
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Dona

(Carlos Neotti)

Seis horas! O pequeno despertador espalhou seu grito estridente pelo pequeno quarto arrancando Dona e quem mais estivesse por perto dos braços cálidos e aconchegantes de Morfeu. A cortina velha e ensebada quase não escondia a poluída claridade cinza de um dia nublado de agosto e a cama velha rangeu um gemido triste por perder a boa companhia da noite. A senhora cinquentona espreguiçou se jocosamente, erguendo o pesado corpo vagarosamente, estendeu os braços para alcançar e desligar o relógio desejando não ter que levantar. Sentando na cama, apanhou mecanicamente a carteira e o isqueiro na gaveta do criado mudo e deu uma longa baforada ainda na penumbra.

- Último cigarro!

Pensou alto enquanto melancolicamente lembrava da advertência da jovem médica no dia anterior enquanto levantava-se a contragosto, procurando com as pontas dos pés capturar os chinelos que teimavam em escorregar ainda mais para debaixo da cama, tentando equilibrar a cinza do cigarro, evitando que caísse e sujasse a camisola ou a cama..

- A senhora pode escolher. Parar de fumar ou parar de fumar. Essas suas dores no peito e seus exames demonstram uma chance muito grande de enfarto. Seu peso está bem acima do normal por causa da alimentação errada e da vida sedentária que a senhora leva. Um enfisema pulmonar - prosseguira ela - está em franca expansão e existe a possibilidade de desenvolver uma cirrose por causa do abuso do álcool. Não existem meios de reversão do quadro, podemos apenas estagná-lo iniciando um tratamento muito sério, demorado e dolorido. Largue imediatamente de fumar! Decretou, por último, de forma bastante enérgica a antes simpática doutora, vista agora como portadora de mau agouro.

Desistiu dos chinelos e foi descalça mesmo ao banheiro pensando "Quem aquela pirralha pensa que é? Deve ter saído ontem das fraldas e agora vem dizer o que posso ou não posso fazer... Arrotar regras".

Seis e meia, banho tomado, desceu para tomar café e comprar cigarro na padaria como todos os dias nos últimos dez anos, encontrando a mesma atendente de sempre, com o mesmo sorriso de todos os dias, perguntando e respondendo as mesmas coisas.

- Bom dia Dona! Vai querer o de sempre?

- Obvio! Senão não viria aqui. Pensaria, mas só responderia com um sorriso enquanto se enfiava no seu cantinho, calada e sorumbática, procurando o cinzeiro como sempre. Passaria despercebida como o vaso de planta mal cuidado no canto, estaria misturada ao ambiente como o cheiro da fritura, de café e leite fervido, do pãozinho e dos salgados sendo assados. Ficaria diluída na paisagem decadente da padaria de subúrbio personificando um paradoxo, presente e ausente ao mesmo tempo como um número de série numa nota de dinheiro, estaria ali, mas ninguém daria a menor importância.

Sete horas, entrar na fila do ônibus e tentar chegar até às nove horas no trabalho seria o próximo desafio. O serviço na contabilidade da joalheria estava atrasado devido às constantes saídas para os últimos exames e a patroa já estava bronqueando com isso, como se Dona fosse a culpada por estar doente, como se estivesse fazendo corpo mole, enrolando. Em outros tempos teria mandado a vaca passear, mas agora, com essa idade, com essa saúde debilitada nem pensar. Uma rápida passada na banca pra ver as manchetes dos jornais, costume adquirido com o falecido marido, um motorista de táxi que quase não parava em casa e com quem não teve filhos. Depois a interminável fila do demorado coletivo que viria muito mais que lotado.

- Último cigarro! Prometeu para si mesma, jogando a carteira nova comprada na padaria no lixo. Quase em frente à banca uma cigana esbarrou propositalmente nela.

- Que sorte a sua! Sabia que hoje pela manhã ia encontrar alguém que precisa muito de uma ajuda, de uma luz, um consolo. Deixa eu ver sua mão! Dona não deu conversa, mas a cigana insistiu.

- Não demora nem custa nada. Estou só querendo ajudar. Deus me deu um dom de ajudar as pessoas e eu sinto que a senhora está muito carregada e precisa de ajuda. Deixa eu ver seu futuro!!! Mesmo a contragosto e querendo dar um fim naquilo Dona estendeu a mão e assim que a cigana apanhou-a deu um salto para trás, pálida, assustada, trêmula.

- É melhor eu ir andando.. Deixei meu bebê sozinho... A senhora deve estar com muita pressa também! Outra hora a gente vê isso com mais calma... Eu vou na sua casa... Boto as cartas... E foi se afastando rapidamente, olhando assustada para trás de vez em quando enquanto falava. O ônibus chegou nesse instante fazendo muito barulho, trazendo fumaça e poeira consigo.

O velho coletivo lotado, janelas fechadas por causa do frio, a constante guerra para conseguir um lugar com um mínimo de conforto, livre que fosse pelo menos do bafo na nuca e das investidas dos engraçadinhos de plantão que não respeitam nem senhoras como ela.

- Um passinho, por favor. Pede o trocador.

- Dá licença. Arrisca alguém no mar de semblantes desfigurados, sem emoção. Sentar, nem pensar. A rala educação da atual juventude não inclui ceder lugar a quem quer que seja. Não mais se ensinam boas maneiras aos jovens. Ninguém mais tem tempo para perder com essas futilidades, pois existem coisas muito mais importantes e urgentes, como sobreviver em meio ao caos urbano, por exemplo. Correr atrás do suado dinheirinho minguado, pai, mãe, jovem, criança, velho e torcer para passar incólume por mais um dia e chegar em casa inteiro. Alguns conseguem. "O mundo é dos jovens, dos espertos." Ouve-se aqui, "É cada um por si e seja o que Deus quiser!" Escuta-se lá. "Os outros que se fodam!" Grita alguém acolá. Estranhou estar pensando em termos assim, mas era o que via, sentia e desaprovava. Como os palavrões, mas esses já estavam tão corriqueiros que as pessoas já nem se importam mais. Vira palavra comum, banal, sem sentido próprio. Lembrou das discussões entre os entregadores e o pessoal da expedição e ficou horrorizada com o nível de linguagem a que estava acostumada, e obrigada, a conviver diariamente. Bem diferente do círculo refinado de amigos de quando o falecido pai coronel estava na ativa e sua casa vivia cheia de gente fina, viajada e honesta. Dava gosto conviver com pessoas saudáveis assim. Depois de reformado, o pai foi perdendo contato com o mundo, se isolando no sobrado e acabou morrendo sozinho. Nem a esposa dele, madrasta de Dona, suportou cuidar de um velho que era consumido vivo, dia após dia, pelo câncer. Depois de um terrível acesso do doente terminal, numa noite infernal, conheceu o limite e resolveu morar com a única filha em Maceió. Só Dona teve coragem de continuar ali, firme ao lado do pai moribundo, dedicada como sempre foi, até o ultimo suspiro do oficial que ficara irreconhecível, mas isso já fora há muito tempo.

O motorista do ônibus levou uma fechada de um Chevette velho e pisou forte nos freios para evitar a colisão iniciando uma série interminável de impropérios generalizados. A guinada causou revolta nos passageiros e Dona teve uma imediata atualização grátis no seu repertório de palavrões e xingamentos e ficou contente que seu ponto estava próximo. Depois a espera pela segunda condução, melhor, menos cheia e mais limpa que a primeira dava a impressão de estar entrando em outra cidade. Não imaginava como era possível coexistirem realidades tão distantes e conflitantes separadas fisicamente por poucos quilômetros, mas socialmente por intransponível abismo.

Quatro quadras. A distância que separava o ponto da joalheria era diariamente, inclusive aos sábados, percorrido rapidamente. Mas não naquele dia. A vontade de acender um cigarro e sentir a fumaça descer rasgando a garganta, matando a ansiedade, transmitindo todo o prazer que o veneno era capaz de gerar ao organismo, martelava na cabeça e parecia tomar forma. Imaginava que no passo seguinte, como num passe de mágica, o imenso anseio tomaria forma física e se transformaria num cigarro enfeitiçado, do bem, que só matasse a vontade, desse prazer e não fizesse mal algum. Como fazer sexo seguro sem se preocupar com doença ou gravidez. Não havia meios para isso acontecer? Como a tecnologia, que coloca o homem na lua, não consegue uma vacina contra essas doenças do fumo? Já descobriram remédios para tanta coisa, então por que com o cigarro não era a mesma coisa? Por que ninguém nunca pensa em algo assim? Quando se deu conta, estava remexendo na bolsa a procura de pelo menos uma bituca esquecida, um cigarro quebrado que fosse. Não achou nada. Pior que essa frustração era a de estar sendo totalmente dominada pelo vício e não encontrar forças pra resistir. Ainda mais que "todos" naquela rua estavam fumando. Não era justo! Entrou pela porta entreaberta e foi direto para a sala do café, sem responder ao cumprimento do segurança. Lembrou os conselhos da médica e dos muitos cursos feitos para abandonar o vicio "Evite o mais que puder o cafezinho". Mas não era cafezinho. Era café da manhã! Agrado que a loja mantinha desde que o dono ainda morava nos fundos e consertava relógios. O costume de seguir depois para o que fora um dia a lavanderia e hoje era depósito e detonar dois cigarros para iniciar bem o expediente, exigiu uma força sobre humana para ser subjugado e a manhã estava apenas começando. Bem que os colegas estranharam a inquietude daquela senhora, que primava pela docilidade e discrição em tudo que fazia, sendo pouco notada. Muitas vezes somente seu aspecto idêntico a de uma boneca de porcelana, toda certinha, toda arrumadinha chamava a atenção.

Dez horas. Os colegas de trabalho não podiam imaginar a batalha que estava sendo travada pela meiga senhora que ocupava a mesa dos fundos, ao lado da porta que dava para o arquivo morto. Se, por fora o semblante suave daquela delicada criatura transbordava tranquilidade, intimamente o caos e a confusão de emoções contraditórias duelavam incansavelmente.

- Último cigarro! Que mal pode fazer apenas mais um?? No mesmo instante que a vontade de fumar sobressaia-se ao bom senso, este retomava a dianteira e abafava a ansiedade, para no momento seguinte ser vencido e deixar espaço para o anseio e tudo se repetia infinitamente.

- Último cigarro! Se cada vez eu pensar assim, nunca vou parar. E vou morrer!!! Várias vezes a decisão foi terminantemente tomada, mas foi repudiada logo em seguida. As poucas pessoas em volta de Dona nem podiam imaginar que por detrás daqueles razonetes, relatórios e infindáveis cálculos contábeis, uma bomba relógio estava prestes a explodir.

Meio dia. O pessoal foi se ajeitando para almoçar, guardando umas coisas e pegando outras, abrindo e fechando arquivos e gavetas. Como de costume cada qual se juntou ao seu grupo e assim como começou, toda a agitação terminou. Dona ficou sozinha na pequena sala, com seus pensamentos e emoções, a ponto de arrebentar.

- Último cigarro! O último cigarro! E depois não se fala mais nisso. Remexeu na gaveta sabendo que lá havia uma carteira esquecida, pois já a tinha visto muitas vezes durante a manhã, inclusive pegado nela.

- Último cigarro! O último cigarro! Dirigiu-se para o depósito o mais rápido que suas velhas pernas permitiram, passando como um fantasma pela cozinha que a separava do depósito, já estava com o cigarro e o isqueiro nas mãos trêmulas de ansiedade, mas não pode fazer uso deles. Um sujeito alto, forte e armado com uma reluzente pistola automática invadiu a loja aproveitando o pouco movimento, trazendo outros dois de arrasto.

A ação foi rápida e violenta e num instante o primeiro acertou o segurança com uma forte pancada enquanto o outro arrastou o gerente geral pelo colarinho para os fundos, aos empurrões, vociferando palavrões e dando pancadas com a coronha da pistola na cabeça dele. Com o vigia fora de ação os outros dois trataram de limpar as prateleiras e mostruários.

- Caralho! Não quero saber de brincadeira. Fica quieto, merdinha!

- Puta que pariu, a gente quer fazer um serviço rápido e limpo, ô, cuzão.

- A gente só quer o dinheiro, porra! Depressa!

- Não quero machucar ninguém, merda! Mas se precisar...

- Vambora, porra!!! Abre essa merda, caralho!! Mas o nervosismo impedia o gerente de agir com rapidez, o que deixava os assaltantes mais nervosos ainda, o espancamento, a perda de controle eram iminentes. Apesar de tudo, o cofre foi aberto e, da mesma maneira que surgiram, os homens foram embora. Ficou o pavor.

Dona nem pode acreditar que no meio da confusão que se instalou depois da ação dos bandidos ela ainda sentia muita vontade de fumar e agora parecia ter um argumento definitivo, a quantidade de adrenalina produzida pelo organismo e despejada na corrente sanguínea exigia nicotina. Era necessário fumar para abaixar tamanha pressão. Mesmo assim, a polícia e as outras pessoas da loja não davam chance nem folga para ela.

- Como foi, Dona, conta pra gente. Pedia um.

- Eram quantos, senhora? Como estavam vestidos? Interrogava um policial.

- A senhora seria capaz de reconhecer alguns deles, caso os visse de novo? Inquiria outro.

- A senhora não pensou em reagir ao ataque? Arriscava alguém do escritório. Mas a grande pergunta, a questão tão esperada e a mais fácil de ser respondida: "A senhora aceita um cigarro?" ninguém fazia. Não mesmo. E o resto da tarde foi aquilo, uma merda sem tamanho, perdendo só para a vontade incontrolável de fumar e de sumir dali.

Ao chegar em casa, depois do calvário da tarde e ainda tendo que aguentar gracinhas do pessoal, "E aí, Dona, vamos dividir a sua parte o dinheiro?", a gaveta da cômoda estava implorando por uma visita. Sorte alguém ainda ter alguma consideração e oferecer uma carona. Azar que o cara não fumava. "Onde já se viu uma coisa dessas? Quem eles pensam que são? Como podem desconfiar de mim?" pensava. Era inconcebível, não havia possibilidade de se cogitar uma coisa dessas nem por brincadeira. Não havia nenhuma possibilidade de ligação.

- Onde já se viu?? Palhaçada! Falou bem alto, pra exorcizar. O whisky cow-boy, outro costume herdado do marido, desceu despedaçando toda a carga de emoção do dia e trazendo um pingo de conforto. A ida até a cômoda, o remexer na carteira meio amassada, o riscar do isqueiro e a baforada longa e profunda foi automática.

- O último cigarro! Pensou e tomou mais um gole de bebida, seguida de outra baforada.

- Último cigarro!

Amanheceu morta por um enfarte fulminante. Quem a encontrou foi João Cascavel, um dos assaltantes que trazia consigo a parte que cabia a Dona, pela dica e pelo planejamento!

(Fevereiro de 2006)
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