Caro Governador,
É diante destas linhas que agora escrevo, que reflexiono meu passado
à sua estimada companhia.
Enquanto que ao Palácio trocávamos lascívia e luxúria
em inebriantes madrugadas, incontáveis garrafas de Merlot e Cabernet
apreciavam intrincadas discussões sobre as Filosofias do ser humano.
Deveras sim, fomos amantes...Não nos prazeres oriundos da carne pérfida
e degradável, mas na mente, na inteligência que aliara a fulgurante
e insaciável lira dos meus vinte outonos com sua blasfêmia sutil
e a perene sabedoria de quatro décadas bem observadas e vividas ao extremo...Que
interessante bebida nós elaboramos. E brindamos com ela cada nova ideia,
cada nova descoberta ou redescoberta, visto que revivemos velhos momentos e
desvairamos novos torpores a cada palavra...
Bons tempos...Muito aquém do precipício intelectual e afetivo
que os que nos rodeiam estão servidos...Sempre foi assim, meu caro...E,
por séculos talvez, ainda seja da mesma forma...Mas para nós,
os séculos correm em direção a uma imensidão brilhante...A
luz do conhecimento e da modernidade não nos assombra tanto quanto a
mística deprime os devassos ignorantes. O que se pode fazer? Sentamo-nos
à lareira e bebemos! E devo dizer que isso é algo que fazemos
bem!
Noutra hora estaria eu, cândida Condessa, a destilar meu infame veneno
jovial que tanto lhe encantou no momento em que concebemos nossa aliança...Porém
como todo belo anel de noivado, um dia o ouro se perde perante a ganância
e rompante é quem separa o que a Natureza uniu em declarada galhardia.
Deves perceber agora, do que se trata tanta complacência ao lembrar-lhe
o passado...posto que é o que nos restará em ternas lembranças.
Não lhe tenho rancor ou qualquer traço de repúdio por trazeres
no semblante uma política quase cínica ao tratar-me. Entendo sua
atitude diante daqueles que lhe governam os cofres... Lastimo porém,
que o tenham governado a consciência. E não nego preocupar-me com
sua sanidade diante de tanta ignorância.
Não poderia duelar com eles, meu caro. São por demais poderosos
e deveras desleais, e eu não consigo coadunar com tamanha maldade humana
sem me tornar algo que desnature o bom humor noturno...
Julgo que este é o melhor momento para minha partida. No meio do inverno,
durante o quarto crescente e sem que sua eloquência se aperceba...
Disse-me, ainda pela manhã, o meu jovem e fiel lacaio, que tão
insano são os ventos que se aproximam, que seria no mínimo imprudente
não temer por minha segurança ou simplesmente não ter medo
de que todas as minhas irrequietas alusões a um futuro promissor se tornem
infrutíferas e inviáveis durante um descuido de valores e preces.
Sábia criança, Governador...e muito perspicaz pelo visto! Deveríamos
tê-lo trazido à nossa 'alcova poética' e ter-lhe dado a
chance de beber de nossas taças...Mas fizemos o que achamos certo...e
não foi por maldade que nos isolamos em meio ao infortúnios criados
por nossas produtivas discussões.
Deixo-lhe aos braços tentadores e sempre tão cuidadosos de sua
Senhora, que muito bem exerce o papel de boa esposa veneziana: dedicada, submissa,
subserviente e estúpida como uma porta. Não a culpo por ser assim.
Afinal, criada foi para servir-lhe e muito bem cumpre esse papel.
Findo minha carta rogando-lhe as melhores safras, os maiores dotes e as mais
exasperadas ideias para suportar essa cidade de caos em que se tornou
nosso círculo. Não me desejes mal ou me crucifique por meu ato.
O faço para proteger-lhe e à mim...para que não percamos
o ardor de nossa companhia na estapafúrdia maledicência desses
romanos.
Guarde nossos livros, escritos e partituras até que encontres outro mirante...seja
em teus olhos, seja nos olhos de outra criança! Mas não permitas
que te matem o desejo de viver aos quarenta, a lira dos vinte...não se
esquecendo de que não lhe convém absorver desta a impulsividade
ou a imprudência...
Entende o que eu digo...Sub-roga a minha vontade...e eu estarei eternamente
junto à tua taça de vinho.
Cordialmente,
Condessa de Lis.
Sexta-feira, 9 de setembro de 2005.