A Garganta da Serpente

Cristina Jardim

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Desencontro

(Cristina Jardim)

Sob a chuva fina, Eduardo chegou ao edifício da prefeitura. Consultou o relógio para ter certeza de que já poderia entrar. Meia hora de atraso deveria ser suficiente, não queria encontrá-la na porta. Entrou no edifício e perguntou ao recepcionista onde ficava o auditório.

- Siga pelo corredor à direita. Há uma pessoa na entrada para entregar o material da palestra. - informou o rapaz.

Uma pessoa na entrada! Isso não soou bem. Poderia ser ela? Caminhou devagar para o auditório tentando identificar a pessoa à entrada. Alívio ao ver que não era ela. Dirigiu-se à moça, recebeu uma pasta com o material para a palestra.

- Já começou? - perguntou.

- Há meia hora - disse a moça - sempre começam na hora marcada.

Ele sabia disso e ficou mais tranquilo, ela não o veria ainda.

Entrou e sentou-se na penúltima fila. Haviam muitos lugares, o auditório não estava cheio. Avidamente correu os olhos pelo lugar procurando. Um sorriso formou-se em seus lábios ao identificar, sentada à mesa na frente de todos, Leila. Ela olhava para o colega que fazia a apresentação, não o vira.

Sentiu que ruborizava, o coração acelerado. Tê-la diante de seus olhos, ao vivo, real, era algo com que há muito sonhava. Lembrou-se de quantas vezes ela havia previsto esse encontro e de como sempre se sentia, de certa forma, amedrontado com a ideia. Agora tudo era real, principalmente seu nervosismo.

Não ouvia ou via o que acontecia ao seu redor. Olhos fixos nela, pensava em quanto tempo se conheciam. Sempre sentia uma coisa boa no coração quando pensava nela. Era um sentimento forte e gostoso, mas que não conseguia explicar. Algo que nunca havia sentido por ninguém, uma amizade forte, como nunca pensou pudesse haver.

Com ela podia falar de seus projetos de eletrônica, seus instrumentos, suas músicas, suas coleções. Era inacreditável o quanto tinham em comum. Gostavam das mesmas músicas, filmes, até mesmo desenhos animados. Conversavam sobre tudo, ou sobre nada. Podiam até ficar em silêncio ao telefone sem que isso fosse constrangedor para nenhum deles. Uma vez ela lhe disse: "se a gente estivesse junto, ao vivo, ficaria horas só escutando o outro respirar". E era isso mesmo. Eles não precisavam de palavras para dizer o que sentiam. Ela sempre sabia o que ele sentia e pensava antes que ele dissesse qualquer coisa.

Leila o incentivava em tudo. Nos momentos em que se sentia perdido e que parecia que tudo daria errado, ela o apoiava, animava, sempre dizendo que ele conseguiria, não importava o que quisesse fazer. Era a pessoa mais forte que conhecia, sua melhor amiga. Quase não acreditava ser esta a primeira vez que a via pessoalmente.



Quando a palestra terminou, Eduardo saiu apressado para não correr o risco de ser visto. Colocou-se atrás de uma coluna no hall de entrada e ficou observando todos saírem. Leila foi uma das últimas a sair, acompanhada de dois homens. Um deles era o que fez a apresentação.

Ela vestia um conjunto de blaser e calça vermelho, sapatos de salto, os negros cabelos amarrados em um rabo de cavalo, uma pasta preta na mão direita. Uma típica executiva, pensou Eduardo. Os homens que a acompanhavam usavam ternos escuros e também carregavam pastas.

Eduardo os seguiu com os olhos, fascinado pela presença de Leila. Ela era muito mais alta do que ele havia imaginado. Ela disse que eles eram do mesmo tamanho, mas ali parecia bem mais alta. Não eram os sapatos, era o porte, a maneira de andar, a cabeça altiva. Um largo sorriso iluminava o rosto claro e quase sem maquiagem. Os olhos brilhantes e alegres. Ela era incrível, muito mais do que ele havia sonhado. Tentou ouvir a conversa, mas estava longe.

Eduardo os viu sair da prefeitura e tomar um taxi. Vão para o hotel, pensou, daqui a pouco eu a encontro.



Leila entrou no quarto, trancou a porta e encostou-se nela para manter-se de pé. Fechou os olhos e respirou fundo. Precisava ordenar os sentimentos. Finalmente iria conhecer Eduardo pessoalmente. Por mais que tenha desejado esse encontro não podia deixar de se sentir nervosa por ver aquela pessoa que tanto estimava e admirava.

Ele sempre evitou o encontro, dizia não ser bonito, não ter nada de interessante. Claro que não era verdade, e mesmo que fosse, não importava a ela. Ele tinha sido seu abrigo e sua força durante períodos muito difíceis. Lembrou-se da dor pela perda do marido que só com ele conseguiu dividir. As noites de insônia ao seu lado. O ombro sempre disponível, não importava a hora. Eduardo em nenhum momento se recusou a estar com ela e consolá-la. A força dele a tinha sustentado, nele sentiu-se abrigada e protegida até conseguir se refazer. Não havia nada que não pudesse compartilhar com ele, provavelmente era a pessoa mais íntima que tinha. E, no entanto, nunca haviam se encontrado pessoalmente, o que não impedia que aqueles abraços virtuais parecessem mais reais que quaisquer outros recebidos. Como seria abraçá-lo de verdade?



Eduardo parou em frente ao hotel e admirou as janelas iluminadas, em um daqueles quartos ela se preparava para encontrá-lo. A ideia o deixou envaidecido e mais nervoso ainda. Não conseguiria encontrá-la, tinha certeza disto. Não poderia sentar-se com ela, olhá-la nos olhos, conversar. Não tinha forças para isso.

Atravessou a rua e foi para o café onde haviam combinado de se encontrar. Era um lugar pequeno decorado de maneira a parecer um café antigo, pequenas mesas de madeira escura para duas pessoas, cortinas rendadas nas janelas, azulejos antigos nas paredes, um ar de nostalgia, tudo do jeito que ela gostava. O lugar cheirava a café fresco, lembrou-se de que ela gostava muito de café.

Procurou uma mesa num canto atrás de uma coluna e de um vaso de plantas, dificilmente alguém conseguiria identificá-lo ali. Esperaria até que ela estivesse sentada antes de se apresentar. Teria coragem de se apresentar? Ainda não sabia.

Pegou o cardápio que o garçom lhe entregava, teria de pedir algo enquanto esperava, mas não tinha fome. Pediu uma água mineral e um café que não tomaria, não gostava de café. Notou que o cardápio era grande, daria um bom "esconderijo" quando ela entrasse.

O que faria? O que diria? Como diria? Ele não era bom em dizer as coisas. Escrevia muito melhor do que falava. E se começasse a gaguejar e não encontrasse as palavras? Daria tudo errado.

Lembrou-se, então, da primeira vez que ligou para ela. Naquela época eles se comunicavam por mensagens de texto para o celular, via internet. Ela já havia ligado para ele várias vezes, mas ele nunca tinha tido coragem de atender. Um dia teve de fazer um trabalho de campo e não pôde avisá-la. Ela mandou várias mensagens e ele não tinha como dizer que estava recebendo, nem como responder. Passou vários minutos olhando para o número do telefone dela até ter coragem de ligar. Nunca se esqueceu do nervosismo, o mesmo de agora. No final tudo deu certo. Ouviu pela primeira vez aquela voz infantil e serena que tanto conhecia e apreciava. Um voz doce que o fazia sentir-se querido.

O garçom trouxe a água e o serviu, fez menção de levar o cardápio, mas Eduardo não permitiu, precisaria dele em breve. Molhou os lábios, sem vontade de beber, sentia o estômago embrulhado. Olhou o relógio, a qualquer momento ela chegaria, pontual.

Olhou para fora e a viu atravessar a rua. Colocou-se mais para o canto, levantou o cardápio escondendo o rosto ao máximo. Leila entrou, procurou com os olhos, não o viu, sentou-se em uma mesa próxima à janela de maneira que pudesse ver quem entrasse.

O garçom trouxe o cardápio, ela o examinou com atenção e pediu um capuccino, o cheiro de café a animava. Reparou em suas mãos, roxas, como sempre acontecia quando estava nervosa. Apertava os dedos com ansiedade. Como seria? Ele gostaria dela?

Eduardo observava tudo. Uma bela cascata negra descia da cabeça de Leila até o meio das costas, teve vontade de passar as mãos por aqueles cabelos visivelmente macios. Ela levou a xícara aos lábios e sorveu o café com prazer tão explícito que ele não resistiu e acabou experimentando seu café, que nesta altura já estava frio. Horrível!

Ela era elegante, gestos delicados, falava com gentileza, sorria muito. Linda! Eduardo ficou paralisado. Como se aproximaria dela? O que poderia dizer? Não se moveu.

Leila esperou. Conferia as horas a todo instante. Ele estava um pouco atrasado.

O tempo passava. Eduardo não via como aproximar-se.

Leila começou a perder as esperanças. Ele não viria. Pegou o telefone.

Para quem ela ligaria, pensou Eduardo, e seu telefone tocou. Pegou-o rapidamente antes que mais alguém ouvisse. Atendeu, mas não conseguiu dizer nenhuma palavra.

- Você não vem, não é? - ela perguntou com tristeza, a voz engasgada.

O que ele poderia dizer? Engoliu seco, petrificado. A voz não saiu.

Ela desligou, chamou o garçom, pediu a conta.

Eduardo a viu murchar. A cabeça baixa, ombros encolhidos, nem parecia a mesma pessoa que entrara naquele café. Ele também encolheu-se, envergonhado. Sentiu o quanto a magoava, quis ir até lá, mas as pernas não o obedeciam.

Leila pagou a conta e levantou-se, esforçava-se para segurar umas lágrimas teimosas que queria sair pelos olhos afora. Saiu.

Começava a chover. Ela parou e olhou para o céu agradecida, uma boa chuva era o que precisava, lavaria suas lágrimas e com elas sua dor. Andou sem pressa entre as pessoas que corriam. Não deu importância aos carros que lhe espirravam lama. Não via nada. Sempre soube que seria assim. Conhecia-o bem, sabia que no último instante ele não teria coragem de olhá-la. Era como se, para ele, conhecê-la pessoalmente significasse a quebra do encanto que havia entre os dois. Era trazer para a realidade o mundo em que viviam, no qual podiam ficar juntos por horas sem que nenhum problema real os pudesse perturbar. Era lembrar de todas as diferenças que os separavam. Apesar da tristeza, ela o compreendia. Deixou-se vagar por muito tempo, chorando até sentir-se aliviada. Então voltou para o hotel, partiria pela manhã, tinha de arrumar as malas.



Eduardo a viu sair e deixar-se molhar. Como ele, ela gostava de andar na chuva. Envergonhou-se de sua covardia. Ela o perdoaria? Teria coragem de dizer-lhe que tinha estado ali todo o tempo? Pediu a conta ao garçom, pagou e saiu na chuva, andando devagar, pensando no que fazer.

Já era tarde quando resolveu voltar para casa. A chuva já tinha passado, mas ele ainda estava molhado. Continuava sem saber o que fazer. Uma mensagem chegou no seu celular. Uma rosa. Teve vontade de gritar de alegria. Há muito tempo ela tinha esse hábito, sempre lhe mandava uma rosa para lembrá-lo de que gostava dele, que ele era importante para ela. Rapidamente, mandou-lhe a mensagem costumeira: obrigado. Tudo estava bem, afinal. Ela o compreendia. Ela sempre o compreendia.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br