Se os trovões eram fortes, ensurdecedores, a chuva que caía era
ainda pior. Um novo dilúvio? Talvez. Pelo menos naquele bairro da cidade
onde morava.
Ele saiu à porta. Gostava de ver a fúria dos temporais. Ninguém
passava pela rua, mas viu uma jovem de moto vindo lentamente pela avenida. Não
usava capacete nem capa. Vestia uma calça jeans e uma camiseta branca,
fina, que, de tão molhada, grudava-se-lhe aos seios sem.sutiã,
cujos bicos pareciam dedos indicadores apontando o prazer.
Deu-lhe um sinal para que parasse. Parou.
- Entre. Espere passar essa chuva. Você é maluca, menina!
Olhou assustada para o grande cachorro da casa.
- É bravo? Não morde?
- Com você não é bravo nem morde. Entre logo. Pode ficar
doente com essa chuva fria.
Pediu-lhe que tomasse um banho quente. Deu-lhe um roupão que ela vestiu
e pôs suas roupas na secadora.
- Come alguma coisa?
Era bonita a menina. Dezenove anos, rosto e braços um pouco sardentos.
- Bebo um vinho, se tiver. Doce, viu?
- Pode ser conhaque?
- Não é muito forte?
- Não, se não exagerar.
Trouxe uma garrafa, dois copos e alguns petiscos.
Sentou-se ao lado dela. Olhou-a nos olhos e ela nos dele.
Nenhum dos dois disse ou perguntou qualquer coisa. Não era preciso.
Passaram a noite se amando. A chuva caindo, o mel jorrando, as bocas salivando,
a chuva... que chovesse até o final da vida.
Vinte e um anos depois daquela noite, quando ambos já se sabiam, quando
já haviam tido todos os gozos e problemas de dois jovens apaixonados,
numa tarde-noite chuvosa como a primeira, ele lhe disse.
- Vivemos uma vida. Gostaria que se fosse.
- Está bem. Eu vou. Dê-me aquela roupa com a qual cheguei e um
conhaque daqueles
- Aquelas roupas?
- Sim. Sabia que um dia iria embora e minha pretensão é sair da
mesma maneira que cheguei. Por isso só as usei até comprar outras
dois dias depois.
Logo ele lhe trouxe as roupas e o conhaque. Ela vestiu-se, sentaram-se lado-a-lado.
Olharam-se demoradamente, Os olhos brilhavam..
Ela apanhou as chaves da moto, que já não era a mesma e, depois
de percorrer a casa com os olhos, chorar ao acariciar um outro cachorro (o primeiro
morrera de velhice), saiu pela avenida sob uma chuva forte com travões.
Ele ficou à porta, olhando as raras pessoas que passavam de moto. Não
viu ninguém que pudesse chamar para entrar e ficar pelo menos mais vinte
e um anos.