A Garganta da Serpente
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Vinte e um anos

(Cairbar Garcia Rodrigues)

Se os trovões eram fortes, ensurdecedores, a chuva que caía era ainda pior. Um novo dilúvio? Talvez. Pelo menos naquele bairro da cidade onde morava.

Ele saiu à porta. Gostava de ver a fúria dos temporais. Ninguém passava pela rua, mas viu uma jovem de moto vindo lentamente pela avenida. Não usava capacete nem capa. Vestia uma calça jeans e uma camiseta branca, fina, que, de tão molhada, grudava-se-lhe aos seios sem.sutiã, cujos bicos pareciam dedos indicadores apontando o prazer.

Deu-lhe um sinal para que parasse. Parou.

- Entre. Espere passar essa chuva. Você é maluca, menina!

Olhou assustada para o grande cachorro da casa.

- É bravo? Não morde?

- Com você não é bravo nem morde. Entre logo. Pode ficar doente com essa chuva fria.

Pediu-lhe que tomasse um banho quente. Deu-lhe um roupão que ela vestiu e pôs suas roupas na secadora.

- Come alguma coisa?

Era bonita a menina. Dezenove anos, rosto e braços um pouco sardentos.

- Bebo um vinho, se tiver. Doce, viu?

- Pode ser conhaque?

- Não é muito forte?

- Não, se não exagerar.

Trouxe uma garrafa, dois copos e alguns petiscos.

Sentou-se ao lado dela. Olhou-a nos olhos e ela nos dele.

Nenhum dos dois disse ou perguntou qualquer coisa. Não era preciso.

Passaram a noite se amando. A chuva caindo, o mel jorrando, as bocas salivando, a chuva... que chovesse até o final da vida.

Vinte e um anos depois daquela noite, quando ambos já se sabiam, quando já haviam tido todos os gozos e problemas de dois jovens apaixonados, numa tarde-noite chuvosa como a primeira, ele lhe disse.

- Vivemos uma vida. Gostaria que se fosse.

- Está bem. Eu vou. Dê-me aquela roupa com a qual cheguei e um conhaque daqueles

- Aquelas roupas?

- Sim. Sabia que um dia iria embora e minha pretensão é sair da mesma maneira que cheguei. Por isso só as usei até comprar outras dois dias depois.

Logo ele lhe trouxe as roupas e o conhaque. Ela vestiu-se, sentaram-se lado-a-lado. Olharam-se demoradamente, Os olhos brilhavam..

Ela apanhou as chaves da moto, que já não era a mesma e, depois de percorrer a casa com os olhos, chorar ao acariciar um outro cachorro (o primeiro morrera de velhice), saiu pela avenida sob uma chuva forte com travões.

Ele ficou à porta, olhando as raras pessoas que passavam de moto. Não viu ninguém que pudesse chamar para entrar e ficar pelo menos mais vinte e um anos.

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