A Garganta da Serpente
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O senhor presidente

(Cairbar Garcia Rodrigues)

Os seios repousados no parapeito da janela. Juliana olhava a rua por onde passaria o senhor presidente. Presidente do quê ou de quê ela não sabia.Ou melhor, sabia, mas não queria saber. Via as crianças das escolas com bandeirinhas verde-amarelas, perfiladas. Professores e policiais se confundiam com a multidão que delirava, que chegava a uma espécie de orgasmo coletivo só por imaginar que logo desembarcaria no aeroporto a autoridade máxima da nação e desceria a avenida em carro aberto até o centro da cidade, onde seria recebida pelos homens de bem da vida política e social.

Juliana estava com fome. Era jovem, ainda não totalmente formada. Estava em fase de fome de tudo, de pão, de amor, de vida, de sonhos. Seus olhos redondos e negros brilhavam pelo sol quente da manhã de janeiro.

Logo se ouviu o estardalhaço das sirenes dos carros da polícia, escolta grande, carrancuda, acelerada, puxando a caravana oficial onde, num carro preto, ao lado de um acompanhante se via a cara sem cara do senhor presidente.

O carro passou depressa. O senhor presidente, velho e sério, com cara de carrasco nazista. era conduzido a mais de quarenta por hora. A avenida estreitava-se e os cavalos do pelotão da cavalaria esbarravam na multidão, pisando os pés de algumas pessoas menos cuidadosas, gente que não sabia que o poder tinha pressa... talvez medo. Porque todo poder que não emana do povo é sempre uma chaga pronta a supurar a qualquer momento.

Juliana começou a calcular algumas coisas: as pessoas chegaram na avenida com o sol mal nascendo. Já passava das onze horas. As crianças tinham sede. As professoras mais idosas, diabéticas e hipertensas passavam mal, chegando algumas a desmaiar de calor, de ficar de pé tanto tempo. A passagem do senhor presidente não demorou cinco minutos. O senhor presidente nem sequer olhou para a multidão; ela é que tinha que olhar para ele, afinal era o mandatário máximo e fora eleito por um colégio eleitoral formado pelos planejadores do golpe, todos homens de bem.

Depois do gozo antecipado, a frustração de perceberem que não haviam gozado coisa nenhuma, que o ato fora patético e incompleto. Afinal para que servia um presidente que não ria, que não olhava ninguém, que parecia o senhor da vida e das pessoas?

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