A Garganta da Serpente
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trecho do Capítulo 4 do livro "Dhamaríades Flora - a menina-árvore e outros contos"

(Cristina Faga)

"...Então Flora estava atada à árvore, com cordas grossas e apertadas, e depois do chá que os índios lhe deram, ela adormeceu.

Adormeceu esperando que sua ação benéfica causasse um grande impacto na sociedade, que despertasse a consciência das entidades para as questões sobre a preservação da natureza e atingisse as mentes e os corações das pessoas, desde as mais simples até as mais sofisticadas. Adormeceu desejando que as grandes indústrias acabassem com toda e qualquer extração ilegal de árvores pois, uma vez satisfeitas com o lucro já obtido, voltariam seus objetivos para a manutenção e preservação do "ouro verde", do mogno, da Floresta Amazônica, de todas as outras florestas. Adormeceu sonhando que seu pequeno gesto seria reconhecido como um sinal de que o ser humano teria que mudar, teria que se tornar mais humano, mais generoso, e mais preocupado com o bem-estar e saúde de seus semelhantes, das plantas, das árvores, dos animais, dos oceanos, das estrelas e de toda a Criação.

No seu sonho fantástico, Flora sentia-se aquecida pelas ideias reconfortantes, recheadas de esperança e promessas de boas coisas. E um sentimento amoroso, doce e nobre misturou-se a uma sensação morna e macia que tomou seu corpo como o abraço de um amante. Sentiu como se as cordas grossas que a ligavam à árvore centenária se transformassem em braços e pernas acolhedoras, calorosas, e a envolvessem como num abraço firme e pleno de amor.

Sim, ela sentia o tronco espesso, áspero e rústico da árvore entrar na sua carne, penetrar-lhe suavemente. A um só tempo, uma dor e um imenso prazer. A dor profunda da ameaça de destruição e o prazer da mais íntima união.

Ouviu o choro da árvore. Compadeceu-se e juntou suas lágrimas às da árvore, em clamor pela vida. Gritavam forte e alto pela sobrevivência, pela permanência, pela existência. As lágrimas da árvore se misturavam ao sangue que vertia de cada célula, de cada desejo de redenção. As lágrimas, o sangue, o brado pela salvação das espécies.

Um sufocamento. Flora prendia o choro, prendia o fôlego, não conseguia mais respirar. Os braços quentes e grossos sentia agora deslizarem e apertarem ainda mais seu corpo frágil ao tronco do mogno. Sua carne era uma só carne com o tronco da árvore. Misturadas, entrelaçadas, destinadas uma à outra, sufocadas, abafadas. Flora não respirava. Entregava-se a uma simbiose perfeita, ao grau máximo de excitação que essa junção, essa fusão, essa comunhão podia proporcionar a alguém. Sentiu o prazer orgástico poderoso, prolongado. Ela e a árvore eram uma só carne e um só espírito. Flora expirou.

Pelo estado dos ossos, os índios concluíram que só podia ter sido a sucuri do mato, prima da sucuri do lago, irmã má do Boitatá, que mora nas profundezas das florestas e que sai matando sem misericórdia qualquer um, seja bom, seja mau..."

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