Fred, eu sei que esta não é a hora certa, mas vou ter que falar.
Sou seu melhor amigo, eu tenho que falar isso. Você matou a Silvinha,
cara. Matou! Sabe o que é isso? Tirou ela de mim e de você. Agora
ela não é de ninguém. Ou é, sei lá o que
vem depois. Mas ela morreu. É como aquela história que a gente
ouvia quando era menor, na casa da sua vó: veio uma fada com uma varinha
mágica e puf, a Silvinha sumiu do mundo. Ou como as colas que a gente
trocava na prova e desapareciam quando o professor olhava torto. Ele procurava,
procurava, e nada. Quando ele se virava, você me cochichava sua frase
preferida: "Um a zero pra mim".
Pra você, era tudo competição. A sua piada era mais engraçada
que a minha? Um a zero pra você. O seu Corinthians ganhava do meu Palmeiras?
Um a zero pra você. Eu até achava graça, e nunca liguei
de perder. Aliás, esse era nosso trato. Quem perdesse qualquer disputa
nunca devia reclamar nem chorar. Aí você saiu com a Sílvia
só pra me provocar, só pra mostrar que era melhor que eu em tudo.
Aí doeu, cara. Fiquei com raiva, quis te matar. Mas não chorei.
Em vez de chorar, eu queria brigar, queria sumir, sei lá. Porque aquilo
foi traição, cara. Carrinho por trás. Você sabia
o quanto eu tava a fim dela. E pra que você fez isso? Pra levar a Silvinha
no carro do seu pai e enfiar a cara dela num poste da Consolação?
Foi pra isso?
Pô, que ideia essa de pegar o Santana do velho? Quinze anos, cara. Sem
carta, sem idade. Seu pai pode ser preso, sabia? Vai ficar contente vendo o
velho na cadeia, a Sílvia no cemitério? Se liga, não é
assim que as coisas funcionam. Dar uma voltinha dentro do condomínio
vai lá, o máximo que podia acontecer era dar uma ralada no importado
de alguma baranga cegueta. Lembra aquele dia que a gente tava passando na frente
da casa da dona Júlia e o poodle dela correu na frente do carro? Você
desviou, passou por cima da calçada, tirou da moto parada ali e o cachorro
escapou por pouco. Você, achando que tinha feito uma baita manobra, disse
pro bicho: "Um a zero pra mim".
Irresponsável você sempre foi, né. Aliás, eu também,
mas muito menos. A nossa disputa na escola não era para ver quem tirava
as melhores notas, e sim pra ver quem recebia mais advertências da diretoria
e mais suspensões. Você ganhava disparado. Começava com
um a zero, eu empatava, depois você fazia três a um, seis a dois...
Até quase ser expulso, aí dava uma segurada. No outro ano, começava
tudo de novo.
Não posso discordar, você sempre foi melhor em tudo. Desde criança.
Lembra os campeonatos de botão? Eu conseguia no máximo um empate,
de vez em quando. O melhor em tudo, hein Fred! Era inclusive o mais bonito,
sempre o queridinho das meninas. Tinha tantas lá na rua que davam em
cima de você. A Roberta, a Lu, a Bete, puts, e até a Refugo, credo!
E quem você foi catar? Logo a Silvinha...
O enterro dela foi muito, muito triste. O Fábio que disse, porque eu
não quis ir. Fiquei lá em casa sozinho, pensando. Fiquei lembrando
o sorriso dela, a boca que nunca beijei. Era bom o beijo dela, Fred? Me conta.
Não sei se sofri mais no dia em que ela falou que vocês estavam
namorando ou no sábado em que ela morreu. Eu estava em casa, tentando
tirar Stairway to Heaven na guitarra. Meu pai entrou no quarto com uma cara
tão estranha que eu já adivinhava qualquer coisa. Qualquer coisa,
menos aquilo. E de manhã ela tinha me falado que você tinha comprado
um brinco pra ela. Ela colocou na orelha e me mostrou. Estava tão linda...
Você tem bom gosto, cara. Será que ela estava usando o brinco na
hora do acidente?
Ah, mas não pensa que eu tô bravo contigo não, cara. Não
mesmo. Ainda mais agora, depois de tudo isso. Eu sempre vou ser seu melhor amigo,
sempre. E nem esse seu namoro com a Sílvia separou a gente. Olha, desculpa
eu falar, não vai ficar magoado. Mas eu tinha planejado que, se vocês
casassem, eu ia ser amante dela. Se ela quisesse, lógico. Pelo menos
íamos ficar os três juntos pra sempre. Que tal?
É, mas agora ela morreu. Foi enterrada faz dez dias. Você aguentou
um pouco mais, Fred. Até achei que ia sair dessa, os médicos deram
um pouquinho de esperança. Mas ontem a esperança acabou. Seu coração
parou, uma complicação com o pulmão, sei lá. Você
ficou em coma por todo esse tempo, e várias vezes eu fui lá, tentar
conversar. Não me deixaram entrar na UTI. Por isso tô falando agora,
antes que o gordo da funerária venha fechar o caixão.
Vou sentir sua falta, cara. Saudade das nossas competições. Lembra
quando a gente discutia sobre quem ia viver mais? Eu falava que ia viver até
80, você até 100, eu aumentava pra 150, aí você terminava
a conversa dizendo que era imortal. Não era. Eu ainda estou vivo, finalmente
ganhei uma disputa. Um a zero pra mim, Fred. Mas confesso que é uma vitória
com gosto de derrota - aliás, uma derrota por dois a zero. E não
repara não, dessa vez eu tenho que chorar.