- Venha aqui, ouça!
Quando falou assim a voz que o chamava, estava de pé, à porta
de sua casinha, empunhando a bandeirola, que conservava enrolada no pauzinho
que desempenhava as funções de haste.
Era tal a configuração do terreno que não parecia possível
que pudesse ter dúvida sobre a procedência da minha voz. Contudo
o homem, longe de erguer os olhos para o lugar em que me achava, à borda
da trincheira, precisamente sobre a sua cabeça, deu meia volta e olhou
em direção à vila.
- Venha aqui, ouça!
Só então deixou de esquadrinhar a linha. Girou de novo sobre os
calcanhares e deitando a cabeça para trás distinguiu-me por cima
do seu observatório.
- Há algum caminho que me permita descer até aí para travarmos
conversação um pouco mais de perto?
Houve uma pausa, então. O homem examinava-me com profunda atenção.
Por fim, apontou-me com a bandeirola um ponto situado a duzentas ou trezentas
toesas à esquerda.
- Está tudo bem! Muito bem! - exclamei.
E dirigi-me ao lugar indicado. Lá, depois de muito olhar em torno de
mim, descobri um estreito caminho, toscamente talhado em ziguezague e comecei
a segui-lo.
A trincheira era funda em extremo. Estava talhada a pique sobre um bloco de
pedra e, à medida que se descia, diminuía a consistência
da pedra, ao passo que a umidade aumentava proporcionalmente. Vi-me obrigado
a serpentear. Durante minhas voltas e reviravoltas não me saíam
da memória o jeito indeciso e a rara timidez que havia notado no pobre
homem quando se decidiu a indicar-me o caminho.
Concluídos os rodeios, tornei a contemplá-lo da vertente e pude
observar que permanecia na via que dera passagem ao último trem. Sua
atitude permitia afirmar que estava à minha espera.
Encostava o queixo na palma da mão esquerda, enquanto o braço
correspondente procurava apoio no direito que tinha cruzado ao peito; e era
tão singular a sua expectativa, refletia tanta ansiedade que parei por
um pouco, cheio de surpresa.
Continuei descendo até chegar ao terreiro e então pude contemplar,
à vontade, a pele morena, a barba negra e as sobrancelhas espessas da
minha estranha personagem.
Sua casinha ocupava o lugar mais solitário e triste da via férrea.
De cada um dos lados erguia-se um muro pedregoso que vertia água e impedia
o olhar de espraiar-se pela imensidade do céu, de que só se distinguia
uma faixa estreita.
E não eram mais alegres as perspectivas da estrada. De um lado via-se
o prolongamento tortuoso desse grande cárcere; de outro, ainda mais limitado,
o que atraía os olhares era uma luz de um vermelho sinistro, situada
sobre a abertura de um túnel sombrio, cuja estrutura maciça oferecia
um aspecto grosseiro e repulsivo. Os raios solares ali chegavam minguados e
amortecidos; respirava-se um cheiro de subterrâneo. Um vento fúnebre
que me gelou o sangue nas veias soprava daquela boca escura... Estremeci. Apossou-se
de mim a ideia de que já não estava no mundo dos vivos.
O interpelado permanecia fixo no mesmo lugar. Cheguei-lhe ao lado; consegui
tocar-lhe; mas perseverou indefinidamente na sua primitiva imobilidade. Enquanto
não parei, permaneceu quieto em seu lugar. Depois, retrocedeu um passo
e levantou a mão; mas não tinha deixado um só instante
de assestar nos meus olhos o olhar desvairado dos seus.
- É bem solitário este posto - disse eu. - Já lá
de cima, quando o descobri, foi o que me pareceu. Poucas visitas terá
por aqui, não é verdade? mas nem por isso elas lhe serão
desagradáveis... Pelo menos, é o que me parece! Sou um sujeito
cuja vida decorre entre horizontes bem limitados. Por fim consegui alcançar
a liberdade e minha curiosidade arrasta-me, apaixonadamente, ao exame cuidadoso
das grandes construções ferroviárias. Tais investigações,
inteiramente novas para mim, satisfarão minha ignorância com a
maior precisão.
Disse-lhe aproximadamente essas palavras. Estou longe de reproduzi-las com absoluta
fidelidade. Nunca fui muito forte na arte de entabular conversações
e nessa ocasião, menos do que nunca, pois o interpelado tinha certa expressão
pouco tranquilizadora, que me infundia medo.
Voltou-se, para registrar, com exagerada solicitude o lugar em que permanecia
fixa a luz vermelha que só alumiava as proximidades do túnel,
como se fizesse pouco caso dos outros objetos naquelas ermas paragens.
Por fim, dirigiu-me novamente o olhar.
- Está também a seu cargo a vigilância e cuidado desse sinal?
- perguntei-lhe.
Respondeu, em voz calma:
- O quê?! Pois não sabia?
Era tão insistente a fixidez do seu olhar e tão intensa a sombra
que lhe escurecia o rosto, que me cruzou pela mente uma suspeita singular.
Devia considerar como a um homem aquele ser que estava diante de mim? Não
seria um fantasma? Mais tarde pensei que devia sentir-me contagiado pelo seu
aspecto. Coube-me então a vez de retroceder um passo. Isso provocou no
desgraçado os sinais mais inequívocos de terror. Eu lhe metia
medo. Esta descoberta pôs fim às minhas suspeitas extravagantes.
- O senhor me olha - disse-lhe com um sorriso forçado - como se eu lhe
fizesse medo.
- Parece-me que já o vi antes.
- Onde?
Indicou com a vista a luz vermelha.
- Ali? - perguntei-lhe.
- Sim - respondeu num gesto mudo de assentimento e sem tirar de mim os olhos
ansiosos.
- Mas, bom homem, que é que eu poderia ir fazer ali? Ainda que isso fosse
possível, creia que isso nunca me ocorreu e que nunca, em toda minha
vida, pus os pés naquele lugar. Posso jurá-lo - disse; - estou
bem certo disso e posso jurá-lo.
Por fim, pareceu que estas palavras tinham desfeito o gelo entre nós.
Daí em diante, respondeu com desembaraço às minhas perguntas.
Fez-me entrar na sua casinha, onde tinha um fogão, uma estante para o
registro do serviço, um livro em que se estampava determinadas observações
e um aparelho telegráfico composto de um mostrador com setas indicadoras
e uma campainha de chamada.
O digno e excelente homem ter-me-ia merecido o conceito de empregado competentíssimo
nas suas funções se não tivesse suspendido por duas vezes
suas respostas, empalidecendo, para olhar para a campainha (que, no entanto,
permanecia muda, nesses momentos), e não tivesse aberto a porta de sua
vivenda (fechada unicamente para evitar a insalubre umidade) desejoso de olhar
de fora a chama vermelha da entrada do túnel.
De ambas as vezes acompanhou o seu regresso para junto do fogão com aquele
gesto inexplicável que lhe havia observado, sem poder defini-lo, quando
nos olhamos a distância, eu, das minhas alturas, ele, das suas profundidades.
- Alegro-me de acreditar - disse-lhe, ao levantar-me para partir - que encontrei
aqui um homem satisfeito com a sua sorte.
Era intenção minha induzi-lo a fazer-me qualquer comunicação.
- Sim, realmente, foi assim em outros tempos - respondeu - mas agora - acrescentou
com essa voz apagada que havia empregado antes - estou inquieto, senhor: a inquietação
me devora.
Teria querido, talvez retirar as suas palavras, mas já era impossível.
Estavam irremediavelmente pronunciadas.
Aproveitei-me delas imediatamente.
- Por quê? Qual a causa da sua inquietação?
- É muito difícil explicá-la, cavalheiro; custa-me indizivelmente
falar deste assunto. Se o senhor tornar a visitar-me, tentarei expandir-me.
- Acredito! Desejo vivamente voltar. Quando quer que eu apareça?
- Abandono este posto muito cedo, mas às dez horas da noite estarei de
volta.
- Virei amanhã às onze.
Agradeceu-me e acompanhou-me até à porta.
- Porei à vista a minha luz branca - disse-me surdamente, conforme o
seu costume - até que o senhor acerte com o caminho. Quando o encontrar,
não grite, e ao regressar, quando se encontre no ressalto da trincheira,
não o faça também.
As maneiras e o som da sua voz pareciam-me aumentar o aspecto glacial daquele
lugar. Limitei-me a responder-lhe:
- Muito bem.
- Não se esqueça - continuou. - Quando vier amanhã à
noite, não há necessidade de fazer barulho. Permita-me uma pergunta,
para terminar. Por que gritou esta noite: "Venha aqui, ouça!".
- Garanto-lhe que não sei. Mas, realmente, disse algo parecido com isso.
- Algo parecido, não, foi isso que disse. Conheço perfeitamente
esse modo de chamar.
- Oh! não digo que não. Fiz assim simplesmente porque o avistava
aqui no fundo.
- Só por esse motivo?
- Que outro poderia ser?
- Não lhe pareceu que alguém lhe ditava essas palavras: que obedecia,
de certo modo, a uma influência sobrenatural?
- Não.
Deu-me boa noite e foi-me alumiando o caminho com a lanterna. Continuei andando
ao longo da via férrea, fora dos trilhos, sob o peso de uma impressão
desagradável. Parecia que tinha um comboio ao meu encalço... Achei
finalmente o caminho. Foi-me fácil a subida e acabei por chegar à
minha hospedaria, sem nenhum embaraço.
Veio a noite seguinte. Fiel à minha entrevista, punha o pé no
primeiro degrau da encosta em ziguezague, ao bater das onze, que se ouvia ao
longe.
O homem se achava ao pé da trincheira, espreitando a minha chegada com
o seu farol branco ao alto.
- Não murmurei meia palavra - disse, ao chegar junto dele. - Posso falar
agora?
- Sem dúvida, cavalheiro!
- Pois então boa noite. Venha de lá um aperto de mão.
- Boa noite, senhor. Aí vai.
Depois do cumprimento, dirigimo-nos, caminhando um ao lado do outro, para a
casinhola. Entramos e sentamo-nos junto ao fogo.
- Não vou permitir que se incomode, cavalheiro (começou a dizer,
inclinando-se e com voz imperceptível como um suspiro) perguntando-me
novamente o motivo do meu desassossego. Ontem à tarde confundi-o com
outra pessoa. Era esse o motivo da minha inquietação.
- Aborrece-o esse engano?
- Não é que o senhor me perturbe. O outro é que...
- Quem é esse outro?
- Não sei.
- Parece-se comigo?
- Também não sei. Nunca lhe vi o rosto. Esconde-o com o braço
esquerdo, enquanto move rapidamente o direito, assim; veja.
Reparei na sua pantomima muda. Era uma série de gestos descompostos,
que queria exprimir, de um modo veemente, convulsivo e apenas com um braço,
esta frase: "Pelo amor de Deus! Saia do caminho!"
- Numa noite de luar - acrescentou o homem eu estava aqui, no lugar em que o
senhor está agora, quando ouvi uma voz gritando: - Olhe cá, ouça!
- Corri para fora. O outro estava de pé, junto ao sinal vermelho, gesticulando
como lhe mostrei ainda agora. Estava rouco à força de gritar:
Olhe, cuidado, cuidado! Não se calava nem por um segundo. Repetia sem
descanso: Olhe, cuidado, cuidado! - agarrei o farol e corri para o homem, perguntando-lhe:
- Que aconteceu? É um aviso ou um acidente? Em que lugar? - Parei a dez
passos da entrada do túnel; fiquei tão perto dele que percebi,
assombrado, que o desconhecido escondia o rosto com o braço esquerdo.
Segui direito para ele, estendi a mão para descobrir-lhe o rosto; mas
de repente, antes que o conseguisse, desapareceu.
- Pelo túnel? - perguntei.
- Não senhor. Percorri-o em toda a sua extensão de quinhentos
metros; parei; levantei o farol em todas as direções; vi perfeitamente
os números das cotas do nível e as indicações quilométricas
escritas na parede. A umidade deslizava como azeite ao longo das pedras e gotejava
pela abóbada; mas, nem sombra de ser humano! Voltei, então, sobre
meus passos, mais rapidamente que na ida, porque me inspiravam horror mortal
esses lugares. Depois de ter revistado minuciosamente os arredores da luz vermelha,
sem abandonar um minuto o meu farol regulamentar, subi até o sinal. Nada!
Desci de novo e fui telegrafar. Fi-lo por duas vezes. - Alarme. Que está
acontecendo? - E de ambas as vezes me transmitiram a resposta costumeira: -
Sem novidade.
Enquanto o guarda-chaves falava, parecia-me que um dedo gelado me percorria
lentamente a espinha. Resisti quanto pude a essa sensação, esforçando-me
por dar a entender ao infeliz que semelhante aparição fora o resultado
de uma ilusão de ótica e que aquele grito imaginário podia
bem ter sido causado pelo ruído do ar ao chicotear os fios do telégrafo
ou ao chocar-se com as altas paredes, arrancando ao silêncio da noite
as suas notas lúgubres de harpa eólia.
Deixou-me acabar, movendo a cabeça, mas sem dar sinais de impaciência.
Depois, ao cabo de alguns instantes, observou-me que conhecia perfeitamente
o ruído dos fios vibrados pelo impulso do vento. Ninguém era como
ele tão capaz de distingui-lo, pois tinha passado ali, sozinho, em vigília,
muitas, muitíssimas intermináveis noites de inverno.
Disse-me, além disso, que não tinha acabado ainda sua narração.
Pedi-lhe que me perdoasse a interrupção; e ele, então apoiando
suavemente a mão no meu braço esquerdo, prosseguiu lentamente:
- Seis horas depois da aparição ocorreu um desastre memorável
na via; e, ao cabo de outras duas, retiraram os mortos e feridos do túnel,
depositando-os no mesmo lugar em que tinha visto o fantasma.
Estremeci, da cabeça aos pés. Contudo, consegui dominar-me.
- Certamente - disse-lhe - não há dúvida de que houve uma
coincidência notável, capaz de impressionar profundamente a sua
imaginação. Mas é igualmente exato, que muito frequentemente
ocorrem casos parecidos.
Observou-me novamente que ainda não terminara.
- O que lhe contei - prosseguiu pondo-me outra vez a mão no braço
e dirigindo-me por cima do ombro um olhar insistente - ocorreu há um
ano já. Seis ou sete meses depois, quando não havia voltado a
mim ainda da minha surpresa, nem me achava reposto da passada emoção,
uma madrugada, ao amanhecer, achando-me no interior da minha barraca, olhando
para a luz vermelha, tornei a ver o espectro.
Guardou silêncio por um pouco e cravou em mim o seu olhar.
- Vamos a ver, ocorreu algum outro acidente depois dessa ressurreição?
Tocou-me várias vezes com a ponta dos dedos, movendo sempre a cabeça
com uma lentidão de espectro que me gelava o sangue nas veias.
- Naquele mesmo dia, cavalheiro - continuou - à passagem de um trem que
saía do túnel, observei num compartimento movimentos descompostos
de mãos, de cabeças... numa palavra, uma agitação
extraordinária. Dei sinal de parada; o maquinista deu imediatamente contravapor
e apertou os freios; o trem, contudo, andou ainda cem ou cento e cinquenta
metros. Deitei a correr e ouvi, efetivamente, gemidos e lamentos desesperados.
Uma linda mulher tinha sido assassinada num vagão. Trouxeram-na ao meu
posto e deixaram-na aqui onde conversamos agora.
Involuntariamente, puxei minha cadeira para trás e não tirei dele
os olhos.
- Cavalheiro, esta é a pura verdade. Conto-lhe o acontecimento com toda
a precisão.
Já não conseguia falar nem pensar. Fora, o vento e os fios do
telégrafo ajuntavam ao horror da narração o acompanhamento
de sua voz lastimosa e prolongada. E o homem concluiu:
- Julgue o senhor se posso ter ânimo sereno; há uma semana reapareceu
a visão e, de então para cá, não deixou de apresentar-se
diante dos meus olhos, de quando em quando.
- Na luz vermelha?
- Sim, no sinal de perigo.
- E o que faz ali?
- Mais veementemente ainda, se é possível, repete os gestos de
angústia, como que dizendo: Pelo amor de Deus, saia do caminho.
- Já conhece agora - acrescentou - a causa do meu desassossego. Não
tenho trégua nem descanso. O desconhecido me chama por vários
minutos consecutivos, empregando sempre o seu grito desesperado: Ouça
cá, cuidado! - Agita o braço e dá alarma com a campainha...
Ao ouvir estas palavras, interrompi-o:
- Diga-me o senhor se a campainha tocou ontem à tarde, quando me aproximava
daqui, à hora em que o senhor saiu.
- Duas vezes.
- Duas vezes? - repliquei. - Isso prova o quanto a sua imaginação
está desorientada. Eu era todo olhos e ouvidos; pois bem, tão
certo como eu estar vivo, a campainha não tocou essas duas vezes. Não,
nem tocou dessa vez nem das anteriores, está claro que toca, mas quando
se comunicam com o senhor dos postos vizinhos.
Meneou a cabeça.
- Não me engano nisso, cavalheiro - replicou. - Nunca confundi a chamada
do fantasma com a de meus companheiros. A vibração daquela é
especial, não se transmite pelos fios. Não digo que ele toque
a campainha; mas que soa, não há dúvida. Não há
nada de singular em que o senhor não a tenha ouvido. Eu, por minha parte,
ouvia-a exatamente como a ouço sempre: muito bem.
- E quando saiu para fora, viu a aparição?
- Vi.
- As duas vezes?
- As duas - afirmou, com plena convicção.
- Quer sair comigo e olhar agora?
Mordeu os lábios, mas levantou-se.
Abri a porta, detendo-me um momento no limiar. Meu interlocutor ficou a alguma
distância. Tudo permanecia no seu respectivo lugar: a luz do sinal, a
abóbada do túnel, a parte enorme impregnada de umidade... tudo
permanecia o mesmo, à luz das estrelas. - Vê qualquer coisa de
anormal? - perguntei, fixando-lhe atentamente o rosto. - Tinha os olhos muito
abertos, talvez não tanto como os meus, que ergui, ao mesmo tempo que
ele, na direção temida.
- Não - respondeu - não vejo nada.
- Bem - disse eu. - Estamos de acordo!
Entramos novamente e tomamos lugar junto ao fogo. Pensava eu em como tirar melhor
partido do bom êxito obtido, se assim podia chamar-se o resultado negativo
de nossa inspeção ocular, quando o nosso homem reatou a sua narrativa
no mesmo ponto em que a havia interrompido, convindo na afirmação
de que os fatos repetidos, objeto de nossa narrativa, não podiam seriamente
constituir base para um alarme. Foi um novo embaraço para mim.
- Isso aumenta, cavalheiro, a espantosa confusão em que me acho. Não
cesso de perguntar-me: o que quererá anunciar o fantasma?
- Não sei - disse - se compreende claramente...
- Contra que risco vou prevenir-me? - continuou dizendo com ar pensativo, cravando
o olhar ora no fogão, ora em mim. - Que perigo está ameaçando?
Onde acontecerá? Porque, sem dúvida nenhuma, está-se aproximando
da linha um perigo qualquer. Uma terceira desgraça nos ameaça...
quem poderá negá-lo, dados os precedentes dos fatos anteriores!
Assim, ao que parece, o senhor me julga meio doido! Posso, acaso, evitá-lo?
Que devo resolver? Que fazer?
Tirou o lenço e enxugou o suor da fronte.
- Se telegrafo para baixo ou para cima, ou em ambos os sentidos, que fundamento
posso alegar? acrescentou, enxugando as palmas das mãos como tinha enxugado
a fronte momentos antes. - Só criarei confusão, a mesma que experimento
eu, sem vantagem nenhuma em favor do próximo. E hão de julgar-me
louco... Veja o senhor! dar-se-ia o seguinte. Telegrama: "Perigo, atenção."
Resposta: "Que perigo? Onde?" Telegrama: "Não sei; mas
pelo amor de Deus, estejam de sobreaviso." Despedir-me-iam do emprego.
Poderia suceder outra coisa?
Causava dó a agitação do infeliz. Ao vê-lo assim
entendi que, por uma questão de caridade e por assim o exigir a segurança
do público, o que havia a fazer, em primeiro lugar, era acalmar o pobre
homem. Deixando, pois, para outra ocasião discutirmos se era real ou
ilusória essa necessidade, procurei persuadi-lo de que todo empregado
fiel e perito no cumprimento de seus deveres procede sempre corretamente e que,
tendo ele perfeita consciência de sua obrigação, devia ficar
tranquilo e sem inquietar-se pelo inexplicável das aparições.
Minha tática deu melhor resultado que a oposição às
suas supersticiosas convicções. Acalmei-o. As exigências
do serviço e os incidentes próprios de tais ocasiões reclamavam-lhe
todo cuidado. Eram duas horas da madrugada. Deixei-o então, não
sem haver-me oferecido antes para ficar em sua companhia até o amanhecer,
mas ele não consentiu nisso.
No dia seguinte, estava tão linda a tarde que me apressei a sair, depois
do jantar, para aproveitar-lhe a beleza. Ia caindo o sol quando tomei o caminho
que, através dos campos, levava até à encosta que dava
acesso à via férrea. "É questão de mais uma
hora", pensei. "Em trinta minutos chegarei até ali e em outros
trinta terei regressado do meu passeio, que não terá durando grande
coisa. Conto falar com o meu guarda-chaves no momento mais propício."
Antes de terminar o meu caminho, assomei ao parapeito da trincheira e olhei
maquinalmente para o fundo, exatamente no mesmo lugar em que interpelei, pela
primeira vez, tão estranha personagem. Como descrever o sentimento de
horror que me petrificou ao observar que um ser homem ou fantasma, colocado
rente à entrada do túnel, agitava vivamente o braço direito,
enquanto com o esquerdo escondia o rosto! O indizível espanto que esta
visão me produziu durou um momento só; pois não demorei
em ver que não era ilusão nenhuma, como o dava a entender um grupo
de indivíduos, aos quais se dirigia a personagem que primeiro avistei;
esta, naturalmente, com os seus gestos, pretendia explicar-lhes o acontecido.
Ainda não se percebia o luzir vermelho do sinal. Divisava vagamente do
lado do poste uma espécie de barriquinha construída com espeques
de madeira e uma tela de lona embreada. O seu vulto não era maior que
uma cama pequena.
O rápido pressentimento de uma desgraça cruzou-me pela mente.
Corri para a vereda em ziguezague e desci por ela, com toda a precipitação
que pude.
- Que aconteceu? - perguntei.
- Um guarda-chaves, cavalheiro, que foi morto esta manhã.
- Não será o desta casinha?
- Sim, senhor.
- Aquele que eu conhecia?
- Fácil lhe será reconhecê-lo - disse o homem que respondia
às minhas perguntas.
Tirou gravemente o chapéu e levantando uma ponta da tela:
- Não está desfigurado - acrescentou.
- Deus meu! Mas como aconteceu a desgraça? Que se passou aqui? - Repeti,
indo de um lado para outro, apenas caiu o negro sudário.
- Cavalheiro, a máquina o feriu. Ninguém conhecia nem desempenhava
melhor suas obrigações; mas hoje, sabe-se lá por quê?
não soube acautelar-se. Era já dia claro; trazia ainda o farol
aceso. Um trem saía do túnel; o guarda estava ali, de costas.
Foi derrubado. É este o maquinista. Ele lhe dirá o que aconteceu,
com todos os pormenores... - Tom, dê a este cavalheiro todos os detalhes...
O maquinista, foi até a boca do túnel.
- Vou explicar-lhe como se passou, cavalheiro. Da curva que faz a via, ali dentro,
vi o guarda-chaves junto à saída como se vê um homem por
um binóculo. Não havia tempo para apertar os freios; mas não
me inquietei por isso. Tive-o sempre por homem cauteloso. Contudo, como me pareceu
que não o preocupava o silvo da locomotiva, soltei vapor... Estávamos
já em cima dele... Chamei-o com toda a força dos pulmões.
- Que foi que o senhor disse?
- Gritei: "Olha lá! Oh! Oh! Fuja, fuja! Saia da linha!"
Estremeci.
- Ah, senhor! Foi um rude transe! Não parei de chamá-lo. Ocultei
o rosto com este braço e nem um momento deixei de agitar nervosamente
o outro. Nada consegui!
Assim terminou, com essa morte trágica, tão extraordinária
aventura, cujo mistério jamais consegui decifrar.
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