Em que lugares havia estado na mocidade?, repetiu ele quando lhe formulei
a pergunta. Santo Deus!!, havia estado em todas as partes! E que profissões
exercera? Quase todas as que se pode ser!
Se havia visto muitas coisas? Certamente. Eu mesmo diria isso, posso assegurar,
se soubesse de um vigésimo do que lhe acontecera na vida. Tanto que seria
muito mais fácil para ele falar do que não vira do que aquilo
que vira. Muito mais fácil.
Qual a coisa mais curiosa que havia visto? Bem! Não sabia ao certo. Naquele
instante não poderia avaliá-lo... talvez um unicórnio...
que encontrara uma vez numa feira. Mas, se eu imaginasse um jovem cavalheiro
de oito anos incompletos fugindo com uma bela senhorinha de sete - não
seria isso um bom começo para uma história? Claro que sim. Eis
que ele próprio havia visto essa história, com os olhos que Deus
lhe dera, e inclusive limpara os sapatos com que eles haviam fugido, pequenos
sapatos nos quais sua mão nem cabia.
O pai de Harry Júnior vivia na casa dos Elmses, em Shooter's Hill, a
seis ou sete milhas de Lunnon. Era um homem espirituoso, bem apessoado, que
caminhava de cabeça erguida e tinha o que se pode chamar de eclético.
Escrevia versos, montava, corria, jogava críquete, dançava, representava,
tudo fazendo satisfatoriamente. Sentia-se muito orgulhoso de Harry Júnior,
seu único filho, mas não o levava a se perder com mimos em excesso.
Era um cavalheiro de gosto e vontade próprios, o que logo se notava.
Assim, embora fosse um bom companheiro para aquele excelente menino, e gostasse
de vê-lo entretido na leitura de contos de fadas, e nunca se cansasse
de ouvi-lo dizer que ele era Norval, cantarolando canções infantis,
mantinha a sua autoridade sobre o menino, um autêntico menino, e bom seria
se todas as crianças fossem assim!
Como sabia o limpador de botas de tudo isso? Porque havia sido o jardineiro
auxiliar. Naturalmente era impossível que, na qualidade de jardineiro,
indo e vindo pelo gramado, sob as janelas da casa, ceifando, varrendo, desramando,
e podando, e mais isto e aquilo, não se inteirasse dos assuntos da família.
Isso sem contar com o fato de que, numa manhã, Harry Júnior lhe
perguntou:
- Cobbs, de que modo escreveria a palavra "Norah", se te pedissem?
Ato contínuo, pôs-se a escrevê-la nas ripas da cerca, com
letra de forma.
Ele não poderia dizer que tivesse dado muita atenção às
crianças antes disso; mas era lindo vê-los, os dois pequenos, andando
de cá para lá, profundamente enamorados. E a coragem do menino!
Meu Deus, ele teria tirado o chapéu, arregaçado as mangas e avançado
para um leão, se algum aparecesse para assustar sua bem amada. Uma vez,
Harry Júnior, em companhia de Norah, deteve-se diante de Cobbs, que catava
ervas daninhas no cascalho, e disse-lhe firmemente:
- Cobbs, gosto muito de você.
- Verdade, senhor? Fico muito contente em ouvir isso.
- Gosto sim, Cobbs. Porque você acha que gosto de você, Cobbs?
- Confesso que não sei, Harry Júnior.
- Porque Norah também gosta de você, Cobbs.
- É mesmo, senhor? Isso é muito honroso.
- Honroso, Cobbs? Ser querido por Norah vale mais do que ter milhões
de puros diamantes.
- Certamente, senhor.
- Vai deixar-nos, não é assim, Cobbs? - Não gostaria de
ocupar outro cargo, Cobbs?
- Não teria objeções, se fosse um bom cargo.
- Pois bem, Cobbs - determinou Harry Júnior - será nosso jardineiro-chefe
quando nos casarmos.
Dito isso, enlaçou seu braço no de Norah, que vestia um aventalzinho
azul-celeste, e ambos se afastaram.
O limpador de botas me assegurava que, melhor do que apreciar um quadro ou assistir
uma peça de teatro, era ver as duas crianças, com seus cabelos
louros encaracolados, seus olhos brilhantes e o caminhar ágil e firme
pelo jardim, completamente enamorados. Cobbs achava sinceramente que os passarinhos
os julgavam seus amigos e que cantavam para eles com a intenção
de agradá-los. Por vezes, ambos se sentavam sob as árvores e ali
ficavam abraçados, os rostinhos macios bem juntos, lendo histórias
como "O Príncipe e o Dragão", "Os Encantadores
Bons e Maus" e "A Linda Filha do Rei". Algumas vezes, Cobbs os
ouvira falando de seus planos de morar numa casinha na floresta, com abelhas
e vacas, para viverem só de mel e leite. Outra vez, deu com eles junto
ao tanque e ouviu Harry Júnior, que dizia:
- Minha adorável Norah, me dá um beijo e me diz que me ama com
loucura, senão vou me atirar dentro da água.
Cobb não tinha dúvida de que cumpriria o prometido, se ela não
tivesse atendido seus pedidos. Resumindo, o limpador de botas me assegurou que
tudo aquilo despertava nele próprio a sensação de também
estar enamorado, embora sem saber exatamente por quem.
- Cobbs - disse Harry Júnior ao jardineiro quando ele regava as flores
- em junho vou visitar vovó, que mora em York.
- Realmente, senhor? Espero que se divirta bastante. Eu também vou para
Yorkshire quando sair daqui.
- Vai visitar sua avó, Cobbs?
- Não, senhor. Não a tenho mais.
- Não tem mais avó, Cobbs?
- Não, senhor.
O menino ficou olhando-o regar as flores por tempo e depois lhe disse:
- Ficarei muito contente em ir, Cobbs. Norah vai também.
- Vai estar muito feliz então, senhor - acrescentou Cobbs - com sua linda
namorada ao seu lado.
- Cobbs - censurou o menino, ruborizando-se - não permito brincadeiras
desse tipo, se eu puder impedir.
- Não foi brincadeira, senhor - desculpou-se Cobb, humilde. - Não
tive essa intenção.
- Fico muito contente de que seja assim, Cobbs, porque gosto de você como
sabe. E porque vai viver conosco... Cobbs!
- Senhor.
- Que é que você acha que vovó costuma me dar quando vou
visitá-la?
- Não posso imaginar, senhor.
- Me dá uma nota de cinco libras do Banco da Inglaterra, Cobbs.
- Puxa! -exclamou Coobs - é um montão de dinheiro, Harry Júnior.
- Pode-se fazer um montão de coisas com esse dinheiro, não é
mesmo, Cobbs?
- Acho que sim, senhor.
- Cobbs, vou te contar um segredo. Em casa de Norah, zombam de nós, forçam
as risadas pelo nosso compromisso matrimonial... levam na brincadeira, Cobbs!
- Assim é, senhor - disse Cobbs - a maldade da natureza humana.
O menino, exata imagem do pai, ficou parado por um momento com o rosto iluminado
voltado para o pôr-do-sol e depois se despediu:
- Boa noite, Cobbs. Vou entrar.
Quando perguntei ao limpador de botas por que resolvera deixar, naquela época,
o serviço, ele não soube o que responder. Achava que poderia ter
continuado na casa até hoje se tivesse tido vontade. Mas era jovem naquela
época e pretendia mudar de vida. Isso era o que ele desejava - mudar.
Quando comunicou ao Sr. Walmers que ia deixar o emprego, este lhe disse:
- Cobbs, tem alguma queixa a fazer? Pergunto isso porque, se algum dos meus
empregados tem algo de que se queixar, se puder, quero lhe dar satisfações.
- Não, meu senhor - explicou Cobbs - agradeço muito, senhor, estou
melhor do que poderia estar em qualquer outro emprego. A verdade é que
vou em busca da fortuna, meu senhor.
- Oh, é isso, Cobbs? Faço votos de que a encontre.
E o limpador de botas assegurou-me - e o fez com um gesto, levando a calçadeira
à cabeça, modo de saudação apropriada ao seu ofício
- que até hoje não encontrara a dita fortuna.
Pois bem, vencido o prazo marcado, o limpador de botas deixou os Elmses, e Harry
Júnior foi para a casa da velha senhora em York; esta velha senhora teria
sido capaz de arrancar os dentes (se ainda os tivesse) para dá-los ao
menino, tal era a paixão que nutria por ele. E não é que
a criança (pois criança podemos chamá-lo com razão)
foge da casa da avó em companhia de Norah, dirigindo-se a Gretna Green,
com o propósito de se casarem!
Sim, senhor: o limpador de botas estava na mesma Hospedaria do Azevim (deixara-a
várias vezes com a intenção de melhorar de vida, mas acabava
sempre voltando por uma ou outra razão) quando, numa tarde de verão,
parou um coche à porta e dele desceram as duas crianças. O cocheiro
da diligência disse ao patrão de Cobbs:
- Não compreendo bem o que pretendem estas crianças, mas as ordens
do pequeno cavalheiro foram para que os trouxesse aqui.
O pequeno cavalheiro apeou-se, estendeu a mão à sua dama para
ajudá-la a descer, deu uma gorjeta ao cocheiro e se dirigiu ao dono da
hospedaria:
- Vamos passar a noite aqui. Providencie, por favor, uma sala de estar e dois
dormitórios. E costeletas fritas e pudim de cereja para dois!
Passando o braço por Norah (que trajava o seu aventalzinho azul-celeste),
entrou na hospedaria mais aprumado do que um general.
O limpador de botas deixava a meu critério avaliar qual teria sido a
surpresa, dos presentes, ao verem as duas criaturinhas entrando - surpresa que
se tornou ainda maior quando Cobbs, que as vira sem por elas ser visto, explicou
ao hoteleiro o provável objetivo da viagem de ambos.
- Cobbs - anunciou-lhe então o patrão - se é assim, tenho
de ir a York para tranquilizar os familiares. Por enquanto, cuide de vigiá-los
e distraí-los até a minha volta. Mas antes de tomar a decisão
definitiva, Cobbs, gostaria que confirmasse com eles se a tua suposição
é verdadeira.
- Vou tratar disso imediatamente, senhor - retrucou Cobbs. Subindo ao apartamento
do andar superior, o limpador de botas encontrou Harry Júnior sentado
num enorme sofá - já enorme de origem e gigantesco quando comparado
ao menino - enxugando as lágrimas de Miss Norah, com seu lenço.
Claro que seus pezinhos não alcançavam o chão e o limpador
de botas não achava palavras para descrever quão pequenas lhe
pareceram as crianças.
- É Cobbs! É Cobbs! - exclamou Harry Júnior, correndo para
ele e agarrando-lhe a mão. Miss Norah também veio correndo, pelo
outro lado, agarrando-se à outra mão, e ambos se puseram a saltitar
de alegria.
- Eu os vi, senhor, quando desciam do coche, disse Cobbs. - Logo os reconheci,
porque não podia me enganar com a altura e aparência dos patrõezinhos.
Qual o objetivo da jornada dos senhores?... Matrimonial?
- Vamos nos casar em Gretna Green, Cobbs - relatou o menino. - Fugimos com essa
finalidade. Norah está bastante deprimida, Cobbs, mas se alegrará,
agora que temos o nosso amigo.
- Muito obrigado, senhor, e muito obrigado, senhora - disse Cobbs - pelo bom
juízo que fazem de mim. Trouxeram bagagem, senhor?
O limpador de botas me assegurou, sob sua palavra de honra, que a dama trazia
uma sombrinha, um frasco de sais, uma torrada e meia com manteiga, oito balas
de hortelã e uma escovinha de cabelo, provavelmente de boneca. O cavalheiro
trazia um rolo de barbante, um canivete, três ou quatro folhas de papel
de carta dobrada várias vezes, uma laranja e uma canequinha de Chaney
com seu monograma.
- Quais são exatamente os seus planos, senhor? - perguntou Cobbs.
- Prosseguir viagem pela manhã - respondeu o menino, cujo valor era digno
de admiração - e nos casar no mesmo dia.
- Muito bem, senhor - disse Cobbs. - E seria de seu agrado que eu os acompanhasse,
senhor?
- Oh, sim, sim, Cobbs! Sim! - exclamaram ambos, alegres a saltitar novamente.
- Bem, senhor - continuou Cobbs - me perdoem pela liberdade de dar minha opinião,
mas eu gostaria de sugerir o seguinte: sei de um pônei, senhor, que atrelado
a uma pequena carruagem, que eu tomaria emprestada, poderia levar o senhor e
senhora Harry Walmers Júnior (eu seria o cocheiro, se lhes parecesse
bem), ao fim da jornada no menor tempo possível. Não estou certo,
senhor, se o pônei vai estar em liberdade amanhã, mas mesmo que
tivéssemos que esperar até depois de amanhã, ainda valeria
a pena. Quanto às vossas pequenas despesas aqui, senhor, no caso de lhes
faltar dinheiro, não se preocupem pois sou sócio do estabelecimento
e nele tens crédito.
O limpador de botas declarou-me que - quando os viu batendo palmas, pulando
de contentes, chamando-o de o "bom Cobbs!", o "querido Cobbs!",
e, no auge da felicidade dos corações confiantes, beijando-se
na sua frente - sentiu-se o mais miserável dos canalhas por enganá-los
assim.
- Alguma coisa que desejam para já, senhor? - perguntou Cobbs, envergonhado
de si mesmo.
- Gostaríamos de alguns doces depois do jantar - declarou Harry Júnior,
cruzando os braços, avançando um pé, olhando-o de frente
- duas maçãs... e geleia. Para o jantar, preferimos torradas
e água. Mas Norah está acostumada a tomar meio cálice de
vinho de groselha de sobremesa. E eu também.
- Farei o pedido no bar, senhor - disse Cobbs, retirando-se.
Ao contar-me isso, Cobbs experimentava os mesmos sentimentos de então,
e confessou ter concordado com o hospedeiro a contragosto; de todo o coração,
desejara que existisse um lugar absurdo onde aquelas crianças pudessem
contrair um absurdo casamento e viver absurdamente felizes daí para frente.
Mas como era isso impossível, conformou-se com o plano do patrão
e este se pôs a caminho de York, meia hora depois.
O carinho que as mulheres da casa... sem exceção... todas elas....
casadas e solteiras... passaram a admirar o menino depois de saberem da sua
história, surpreendeu o limpador de botas. Teve este de desdobrar-se
para impedir que fossem ao apartamento para beijá-lo. Subiram perigosamente
até as vidraças, correndo até risco de vida, para conseguirem
vê-los através da vidraça. Formavam fila para contemplá-lo
pelo buraco da fechadura. Ficaram loucas pelo menino e pela sua coragem.
Ao anoitecer, o limpador de botas foi até o apartamento para ver como
estavam passando os fujões. O pequeno cavalheiro, sentado perto da janela,
amparava a pequena dama em seus braços. Esta, com o rosto marcado de
lágrimas, descansava, exausta e semiadormecida, com a cabeça
apoiada no ombro do companheiro.
- A Senhora Harry Walmers Júnios está fatigada, senhor? - perguntou
Cobbs.
- Está sim, Cobbs, não está acostumada a ausentar-se de
casa e acha-se deprimida novamente. Cobbs, acha que poderia arranjar uma torta
de maçã?
- Desculpe-me, senhor - disse - o senhor deseja uma...?
- Acho que uma torta de maçã de Norfolk a reanimaria, Cobbs. Ela
gosta muito.
O limpador de botas saiu em busca do revigorante solicitado. Quando o trouxe,
o cavalheiro entregou-a à dama, deu-lhe de comer na boca com uma colher
com a qual provou um pouco ele mesmo. Mas a dama estava realmente sonolenta
e deprimida.
- Que acha, senhor - perguntou Cobbs - se eu trouxer um candelabro para guiá-los
até os seus aposentos?
O cavalheiro aprovou a sugestão. A camareira antecipou-se subindo pela
grande escada, seguida da dama com seu aventalzinho azul-celeste, galantemente
escoltada pelo cavalheiro que abraçou-a à porta do quarto dela
e retirou-se para o seu, cuja porta foi cuidadosamente trancada pelo limpador
de botas.
Cobbs não pôde deixar de se sentir ainda mais envergonhando da
sua maldade quando, no dia seguinte, no desjejum (havia ordenado, na véspera,
leite com água, adoçado, torradas e geleia de groselha),
ambos lhe perguntaram pelo pônei. Foi verdadeiramente penoso - me confessava
isso sem embaraço - olhar para aquelas duas criaturinhas e pensar no
abominável embusteiro que ele havia se tornado. No entanto, continuou
a mentir, tão cinicamente quanto um troiano, sobre o pônei. Disse-lhes
que, infelizmente, o pônei estava tosquiado e que não seria conveniente
levá-lo ao tempo nesse estado, pois poderiam se ressentir os seus órgãos
internos. Mas o tratamento terminaria naquele mesmo dia e no dia seguinte a
pequena carruagem estaria pronta para a viagem. O limpador de botas julgava
- ao refletir sobre o caso comigo, no meu quarto - que a Senhora Harry Walmers
Júnior começava a perder o entusiasmo. Ao deitar-se, não
lhe haviam enrolado os cabelos; tão pouco parecia capaz de pentear-se
por si mesma; a irritavam os cachos caindo sobre seus olhos. Porém, nada
abatia o ânimo de Harry Júnior. Sentado diante da xícara
do desjejum, servia-se de geleia com tanta elegância quanto seu
par.
O limpador de botas estava propenso a acreditar que, terminado o desjejum, ambos
se haviam ocupado em desenhar soldadinhos... pelo menos sabia que muitos desses
desenhos foram encontrados na lareira - desenhos de soldadinhos montados. No
transcurso da manhã, Harry Júnior tocara a sineta (era realmente
surpreendente como aquele menino conservava sua postura) e perguntara com ansiedade:
- Cobbs, há algum passeio bonito pelas vizinhanças?
- Há sim, senhor - respondeu Cobbs. - Temos o Caminho do Amor.
- Ponha-se daqui para fora, Cobbs! - essa foi a expressão usada pelo
menino. - Está com zombarias.
- Peço perdão, senhor - desculpou-se Cobbs - mas o Caminho do
Amor existe de fato. É um belo passeio e eu me sentiria muito orgulhoso
de poder mostrá-lo ao senhor e à Senhora Harry Walmers Júnior.
- Norah, querida - disse Harry Júnior - isto é curioso. Devemos
realmente ir conhecer o Caminho do Amor. Põe o chapéu, minha adorada,
e Cobbs nos levarás até lá.
O limpador de botas deixava para mim o encargo de imaginar que grande vilão
ele não deveria ter se sentido quando o jovem par lhe disse, durante
a caminhada, que havia decidido pagar-lhe dois mil guinéus por um ano
como jardineiro-chefe, levando em conta a sua lealdade de amigo. O limpador
de botas desejara que a terra se houvesse aberto para enterrá-lo, tão
mesquinho se sentiu quando os olhinhos brilhantes de ambos se fixaram nele,
confiantes. Tratou de mudar o rumo da conversa, como pôde, e guiou-os
pelo Caminho do Amor até um prado à beira do rio, onde Harry Júnior
quase se afogou tentando apanhar um nenúfar para a senhora Norah; nada
temia aquele menino. Depois de algum tempo, estavam caindo de cansaço.
Tudo era tão novo e estranho para eles, que se cansavam ao extremo. Deixando-se
cair num recanto forrado de margaridas, adormeceram como crianças perdidas
no floresta, no caso, no prado.
O limpador de botas não sabia - talvez eu o soubesse, mas isso não
faz diferença - por que um homem se enternece como um tolo ao ver duas
lindas crianças dormindo em pleno dia, sonhando menos adormecidas do
que quando acordadas. Mas a verdade é que quando a gente pensa em si
próprio, na vida que se levou desde o berço e no pouco que se
vale, que se a gente não está pensando no passado está
se preocupando com o futuro, e jamais se vive o hoje; e assim por diante.
O parzinho acordou finalmente e o limpador de botas ficou certo de uma coisa:
o ânimo da Senhora Harry Wlamers Júnior vacilava. Quando Harry
Júnior lhe passou o braço pela cintura, ela pediu "que não
a aborrecesse tanto". Quando ele lhe perguntou: "Norah, a luz da minha
vida, teu Harry te aborrece?", ela respondeu:
- Sim. Quero ir para casa!
Um frango assado e um pudim de pão e manteiga ao forno reanimaram a Senhora
Walmers um pouco; mas o limpador de botas teria desejado, confessava-me em tom
de segredo, vê-la mais sensível ao chamado do amor e menos ao da
groselha. No entanto, Harry Júnior mantinha-se firme, o coração
tão apaixonado quanto antes. Ao entardecer, a Senhora Walmers sentiu-se
muito sonolenta e pôs-se a chorar. Logo depois foi se deitar, como na
véspera, e Harry Júnior fez o mesmo.
Às onze horas da noite, voltou o hospedeiro num coche, acompanhado do
Sr. Walmers e de uma senhora idosa. O Senhor Walmers parecia ao mesmo tempo
muito alegre e preocupado e perguntou à hospedeira:
- Somos muito gratos, senhora, por haver cuidado tão bondosamente dos
nossos pequenos; nossa gratidão não tem limites. Por favor, senhora,
onde se encontra o meu filho?
A hospedeira respondeu:
- Cobbs tem tomado conta de seu adorável menino, senhor. Cobbs, leve-o
ao quarenta.
O Senhor Walmers voltou-se para Cobbs e disse:
- Ah, Cobbs, estou muito satisfeito em te ver! Já sabia que estavas aqui!
Cobbs confirmou:
- Sim, senhor. Seu criado muito obediente.
Talvez eu tivesse me surpreendido ao ouví-lo dizer isso, mas Cobbs me
assegurou que ao subir as escadas o seu coração batia como um
martelo.
- Perdoa-me, senhor, - disse ele enquanto soltava o ferrolho da porta - mas
espero que não esteja muito zangado com Harry Júnior. Harry Júnior
é um excelente menino, senhor, que vai honrá-lo e de quem ficará
orgulhoso.
O limpador de botas me deu a entender que se o pai do excelente menino não
tivesse concordado com ele, no estado de ânimo que se encontrava, seria
capaz de agredi-lo, deixando para depois as suas consequências.
Mas o Senhor Walmers limitou-se a dizer:
- Não Cobbs. Não, meu amigo, Muito obrigado!
Aberta a porta, entrou. Cobbs acompanhou-o, levando um candelabro, e viu-o chegar-se
ao leito, inclinar-se e carinhosamente beijar a face do menino adormecido. Depois,
ficou um instante a contemplá-lo, sendo impressionante a sua semelhança
com Harry Júnior (conta-se que também havia fugido com a sua esposa).
Depois sacudiu suavemente o ombro do menino:
- Harry, meu querido! Harry!
Harry Júnior ergueu-se sobressaltado e olhou-o. Olhou para Cobbs. Tal
era o sentimento de honra daquela criança, que olhou logo para Cobbs,
a ver se não lhe causara dificuldades.
- Não estou zangado, meu querido. Quero apenas que te vistas e que volte
para casa.
- Sim, papai.
Harry Júnior vestiu-se rapidamente. Quando terminou, seu peito começou
a dilatar-se, e mais se dilatou quando se postou diante do pai, que o olhava
também, silencioso.
- Por favor, eu poderia... (a fibra daquela criança dominando as lágrimas,
prestes a explodir!) por favor papai querido... posso... posso beijar Norah
antes de ir?
- Pode, sim, meu filho.
Tomou Harry Júnior pela mão, e Cobb foi adiante, com a luz; chegaram
ao outro quarto, onde a senhora idosa estava sentada à cabeceira da cama
e a pequenina Senhora Harry Walmers Júnior dormia profundamente. Lá
chegados, o pai ergueu o menino até o travesseiro e este encostou o rostinho,
por um só instante, no tépido rostinho da adormecida, atraindo-a
gentilmente para si. O espetáculo comoveu tanto as camareiras que espiavam
pela fresta da porta que uma delas exclamou:
- É uma vergonha separá-los!
Mas a camareira sempre fora, informou-me o limpador de botas, de coração
mole. Ao dizer isso não queria dizer nada de mal contra ela, pelo contrário.
E isso foi tudo, concluiu o limpador de botas. O Senhor Walmers partiu no coche,
tendo entre as suas mãos as mãos de Harry Júnior. A senhora
idosa e sua filha, que jamais chegou a ser a Senhora Harry Walmers Júnior
(casou-se com um capitão muitos anos depois e morreu na Índia),
partiram no dia seguinte. No final das contas, Cobbs apresentava-me seus dois
pontos de vista, para ver se eu concordava com eles: primeiro, não existem
muitos casais de noivos que cheguem ao casamento inocentes de toda a maldade
como aquelas duas crianças; segundo, talvez fosse uma verdadeira bênção
para muitos casais de noivos serem detidos antes de se casar e cada um voltar
para a sua casa.
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