A Garganta da Serpente
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Aviso prévio

(Célia Demézio)

"Tenho alma de artista, e tremores nas mãos"
(Bijuterias - João Bosco e Aldir Blanco)

"Fraqueza ou força: repara bem, é a força. Não sabes aonde vais nem por que vais, mas entra em toda a parte, aberto a tudo. Não te matarão mais do que se já fosses cadáver".
(Uma Estadia no Inferno - Arthur Rimbaud)

Enquanto enxugava o suor do rosto, a tevê desligada, silenciosa, me fazia companhia e pela tela cinza, apagada e suja com marcas de dedos, havia uma sombra; pessoa magra e totalmente descuidada, desfalecida no sofá. Me levantei penosamente em busca do remédio. Deixei cair no chão o travesseiro e o lençol que tinha tantos furos, feitos por brasas de cigarros, que mais parecia uma peneira. Haviam cortado a luz e agora, com uma vela acesa na mão, eu tateava no escuro, pisando no prato com restos de feijão, batendo o joelho na mesinha de centro, derrubando a luminária, inutilizável em épocas de crise. Consegui chegar até o banheiro, deparei com um vidro a minha frente, era o espelho. E naquele escuro, meu rosto iluminado por aquele toco de luz, parecia de um fantasma das trevas. Um clima noir no banheiro.

Sombras, seres estranhos sempre presentes. Olheiras profundas, acnes e pele oleosa. Um espelho, que era a porta do armário, pendurado em cima daquela pequena pia, tão suja, com resto de ranho de nariz. Andava meio gripada ultimamente. Busquei a caixinha de remédio. Primeiro esbarrei na escova de dente, até achar o que procurava. Era ele, senti entre os dedos o pequeno frasco, e podia ouvir as seis últimas cápsulas lá dentro. Tomei uma delas, a seco mesmo, a água também havia sido cortada. De olhos bem fechados senti aquele pequeno objeto descendo pela minha garganta. Fiz um movimento com a língua, salivando o máximo possível, empurrando a cápsula para dentro do meu corpo, escorregando pela minha faringe, sofridamente, indo se dissolver em meu sangue, pelo simples, puro e desesperador objetivo de eliminar a minha dor.

Amanheceu, e a luz do sol foi entrando aos poucos pela janela da sala. Pude ver o estrago bem mais nitidamente. Os grãos de feijão espalhados pelo tapete, o cinzeiro embocado no chão, bitucas e cinzas de cigarros. Era a típica imagem de fim de festa. Que festa? Ultimamente a vida me parece um constante delírio, sem nenhum momento, trégua. Tinha que descolar mais algumas velas. Estava sem um tostão, não havia luz nem em casa e nem no final do túnel. Resolvi peregrinar pelas ruas, na casa dos amigos que já não atendiam meus telefonemas, não respondiam meus e-mails, e que me cumprimentavam de sorrisos amarelos. Mas eles diziam que estavam bem, que eram privilegiados, estavam todos felizes. Porque nunca conseguiam me deixar feliz, então? Fui atrás de alguma felicidade, perdida por aí, bater de porta em porta. Como diz o velho ditado, de ponta em ponta, as coisas despontam. Ah! Ah! Ah! Aiii!!! Tá doendo!!!!

Nada limpei, deixei tudo nas mãos do próprio diabo.

Tenho que tomar cuidado... O princípio de realidade tem que estar constantemente em alerta, senão, fudeu!

Fui gerente de vendas numa loja de calçados de um shopping, durante dez anos, até ser despedida. Contenção de despesas, disseram aos cochichos, entre os corredores e porões da loja. Dez anos em pé, e no final perdi o emprego e ganhei uma sinusite. A vida é um inferno a cada dia que passa, e os bons conselhos, os climas de otimismos eufóricos são apenas propagandas fascistas, para aliviar as mentes frustradas. Que ninguém nos ouça, mas tudo já era!

Estava economizando um dinheirinho para a velhice. Preciso detalhar bem as coisas, para que ninguém confunda seu cu com sua bunda, entendeu? A situação estava totalmente fora de controle, não me culpem, não me achem louca, apenas tem horas que tudo vira um inferno, só isso!

O ponto de ônibus estava cheio e me encostava à marquise. Observava as pessoas naquela manhã, e todas elas me pareciam também muito doentes.

Pálidas, desanimadas, olhares autistas, ombros curvados. Talvez tivessem febre, pois parecia que o dia ardia mais do que de costume, e o trânsito sempre desesperador, cacofônico, alucinado, nervoso. Era uma segunda-feira gorda, quase estourando. Quando o ônibus chegou, estava distraída, olhando as nuvens no céu. Uma reação catatônica, uma ausência, a morte chegando mais perto a cada dia que passa. Me sentei à janela, e continuei a olhar o céu, e em cada lombada havia o perigo do deslocamento da retina, e de urinar nas calças.

A loja onde eu trabalhava vivia cheia de gente. Ela oferecia todas as facilidades para o consumo, cartões de crédito, cheque pré-datado, brindes, sorteios, ofertas relâmpagos, em suma, uma mentira repetida mil vezes acaba sendo tomada como verdade, e qualquer otário solta grana para qualquer novidade que aparece na sua frente, e suas almas são o verdadeiro e grande lucro do negócio.

Comecei como balconista, depois caixa, depois gerente de vendas, e depois mais nada aconteceu.

Há oito anos atrás frequentava a Assembleia de Deus procurando Jesus por tudo quanto era buraco, pois diziam que ele aliviaria todas as minhas dores.

Achei Jesus nos olhos flamejantes do Pastor Antônio, e por dois anos suas palavras me fizeram crer que algo iria me salvar. Lá encontrei a resignação, abracei a filosofia estóica de corpo e alma, e assim, as dores aumentaram.

Aleluia!!

Uma cirurgia marcada no SUS, sem leito vago para internação.

Jesus, a alegria dos homens. Alegria é vaidade? Será? O homem mais popular do mundo, depois do Michel Jackson.

Então, medito. E minha mente se dirige as sábias e trovoantes palavras do Pastor Antônio, que sempre dizia que os infiéis não teriam o reino dos céus.

Choro, nada mais resta. Somos apenas uma alma penada.

As dores vinham mais fortes, mas eu me comportava como nada houvesse acontecido. Tão sem graça, eu sorria para os fregueses, que me apontavam pedindo ajuda para poderem calçar seus sapatos novos e apertados.

Num dia, aparentemente tão monótono como os outros, Herculano Quintanilha entrou na loja. A notícia se espalhou por todos os departamentos. Andou pelos corredores, desceu as escadas rolantes, atravessou as vitrines.

O grande escritor, magnetoterapeuta e vidente Herculano Quintanilha. Lançara vários best-sellers de autoajuda, esoterismo, e contos inspirados na era medieval. Sucesso garantido! Inclusive na Europa e Estados Unidos. Já profetizara o Fim Mundo daqui a vinte anos. Agora ele estava prevendo a morte de Caetano Veloso, declaração feita na V Conferência Internacional Para Além do Ano 2000. Este não viveria mais do que dois anos. A revista Ídolos e Ícones publicara como matéria de capa, e a notícia já se anunciara em todos outdoors nas grandes avenidas do Planeta. O cantor, diziam, estaria fazendo um check-up em Londres.

Então, surpreendentemente, Herculano Quintanilha entrara no departamento de calçados. Estava acompanhado por dois seguranças, que pareciam gêmeos, clones, imagens holográficas duplicadas, código binário, qualquer coisa, menos o que se pode dizer, na verdadeira acepção da palavra, seres humanos.

Cada um com dois metros de altura, ternos de gabardine preta e óculos escuros. Olhavam nervosos por todos os lados, afastando a duros empurrões os curiosos, invejosos e possíveis perigosos sequestradores de Herculano Quintanilha. Havia também sua fiel secretária Consuelo. Anotava e agendava todos os compromissos e encontros com pessoas, apenas aquelas de máxima importância, os que têm a força da grana que ergue e destrói coisas belas, como empresários, produtores, jornalistas, editores, ou apenas os bons donos de hotéis Resort da vida. O restante ela marcava em papeizinhos para jogar fora na lixeira mais próxima, meros fãs deslumbrados. Herculano Quintanilha é um homem encantador, diziam. Eu nunca tinha o visto, mas o Pastor Antônio já havia me alertado que aquele homem era um bruxo! Um servo do diabo! Um encantador de serpentes! Cuidado com ele, irmã! Porém Herculano Quintanilha entrou como que guiado por algum extinto, um cão farejador em busca de almas perdidas, pois estava de olhos revirados, erguia o braço esquerdo e sacudia suas pulseiras de ouro, como que detectando algo misterioso, muito além da imaginação. Procurei não encará-lo, apenas ouvia os gritinhos histéricos da multidão de pessoas com suas sacolas de compras que se aglomeravam na porta da loja. Parecia que o mundo inteiro estava possuído. De repente senti um calafrio. Algo me impulsionou a olhar aquele rosto, de olho revirado, seu cavanhaque grisalho, sua roupa bordô brilhante, suas correntes de medalhões com pedras ametistas. Tentei resistir, mas meus olhos cruzaram com a ponta do seu nariz, não houve jeito. Estava possuída também. Todos estamos no final de tudo, possuídos. Seus olhos ficaram fixos, mirando em mim, e não piscavam. Cochichou pelo canto da boca algo para Consuelo que começou a anotar a mensagem do seu mestre em seu notebook. Ela também muito me olhou.

Achei aquilo tudo muito estranho, sombrio, macabro. Os olhos da secretária franziam por de trás dos óculos de tartaruga, como analisando cada pelugem de meu corpo. Minhas dores foram aumentando, o lado direito do meu rosto parecia que iria explodir e me pareceu que Herculano Quintanilha ouvira minhas latejações, lia meus pensamentos. Nosso senhor! Afaste este demônio!

Nunca comprei seus livros, eu juro! Quero que meus dedos caiam agora, se estiver dizendo mentira! Ele se aproximou, olhou para o infinito, acima da altura da minha testa, ergueu as mãos e disse, em alto e bom som, como fosse O Próprio, profetizando em cima da montanha Esta mulher vai morrer até o final da semana! Todos olharam, estupefatos, como se eu fosse já um cadáver em estado de putrefação. Comecei a gritar, pedindo para que ele se afastasse sai demônio! Sai! Por um breve momento, houve um silêncio profundo, como o mundo inteiro tivesse ficado parado, inerte, total ausência de vida. Mas a multidão voltou ao seu estado histérico. Agitada, própria de sua natureza.

Herculano Quintanilha saíra de seu transe, e virou as costas para mim, juntamente com sua comitiva, como tivessem já realizado mais uma missão nesta terra. Ele acenou para seu público, soltou beijinhos e deu mais alguns autógrafos pelo caminho, e eu fiquei lá, me apoiando na estante de mocasines. Eu tremia. A estante foi abaixo, e todos os calçados caíram das prateleiras. Fazia lembrar uma cena do filme do Jerry Lewis. Ah! Ah! Ah!

Aiiii!!!

Fui dispensada, sem direito a aviso prévio. Não era bom para imagem do shopping uma propensa defunta. E as palavras de Herculano Quintanilha sempre funcionaram como verdade absoluta. Ele era um imortal, e eu já estava com um pé na cova.

O último toco de vela, roubada de uma encruzilhada. A necessidade é para além do Bem e do Mal, ouvi dizer, um dia, por aí. Está sobre um pires, em cima da estante de livros, e as ceras caiam sobre a receita da farmácia Drogamil. Está escurecendo cada vez mais. Um silêncio tão grande que posso ouvir o zumbido dos mosquitos e as fracas batidas do meu coração. As dores estão aumentando e me levanto com muito esforço. O vidrinho de remédio agora está ao lado da vela. Estou ficando muito cansada. Não há muito tempo para se perder, e nem para se ganhar. Já era. Ao me levantar piso novamente no prato com restos de feijão. Será que já é fim de semana? O Pastor Antônio está numa missão lá na África e desligara seu celular. É para não assustar aqueles pobres selvagens, disse-me antes de embarcar em seu jatinho particular. Pastor Antônio, na verdade, era um sábio. Seus olhos verdes e bondosos oram agora no meio das savanas africanas, nos desertos da Etiópia.

Está tudo bem. Nós temos o reino dos céus. É a penúltima cápsula, me viciei com esta merda industrializada! Tô perdida! Depois só Deus sabe. Ele sabe tudo, não é verdade? Você tem alguma dúvida? Me desequilibro e deixo cair a vela no chão, em cima dos rascunhos de poemas, nada concretos, nada abstratos, palavras são palavras... A última cápsula fica no vidrinho. Um clarão surge alto. Começa a fazer muito calor. Amanhã esta cápsula deveria se juntar as outras, desmanchando-se no meu sangue, na minha urina, nas minhas fezes. O clarão aumenta, e não há extintores de incêndio pela casa.

As chamas do Senhor, eu não temo. Quem queima é o demônio! Aqueles olhos de Herculano Quintanilha! A cápsula na minha língua, eu tentando engoli-la, minha boca cada vez mais seca. Todas as pessoas doentes do mundo estão ardendo em febre! Caetano ligou todos os seus refrigeradores! Mas o clarão arde, queima, derrete. Anafixalia. As inflamações nos seios perinasais agora estavam sumindo. Pareciam ficar cada vez mais distante, aquela dor estava ficando insignificante. Agora eu era toda dor, somente dor. Nada mais que dor, escavada nas minhas memórias.

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