Muitas vezes recomendaram-lhe não abrir aquela porta nem olhar ou intrometer-se lá dentro. Muitas vezes havia resistido à tentação.
Mas agora parecia-lhe o momento ideal. Ninguém em volta, todos muito longe.
(Há quanto tempo não havia esperado por essa ocasião, onde
tudo confluísse a seu favor?). Apenas ele ali. Ele e o objeto proibido.
Estava parado frente à porta, lutando contra as últimas indecisões.
O coração fazia-se ouvir à distância, as pupilas dilatavam-se
ao limite; estava até mesmo excitado. Era um só prazer.
Colocou suavemente a mão trêmula sobre a maçaneta. A porta
estava aberta. Estranho. Algo tão valioso assim deveria estar protegido,
muito bem protegido...Deixou atrás de si os últimos raios de luz.
A escuridão dificultava o movimento, obrigando-o a tatear as paredes até achar um interruptor. A lâmpada era vermelha, o que o pôs
mais assustado e curioso ainda. Mas ali havia tão somente papéis.
Procurou então alguma coisa a mais, porque esperava alguma coisa a mais.(Porque
papéis são a antítese da vida). E achou. No canto da sala,
atrás de tapumes e cortinas, encontrou máscaras em redomas de
vidro. Eram máscaras de pessoas, perfeitas em tudo, olhos, narizes, bocas,
em cada detalhe ordinário de um rosto humano. A que serviriam? Até mesmo a textura era igual à da pele das pessoas vivas. E por que estavam dentro de campânulas com
líquido? Olhou os papéis. Tinha certeza de que acharia uma resposta
satisfatória neles.
Não precisou procurar muito. Logo na primeira pilha havia uma folha
onde estava escrito"...Atingida certa idade, como as crisálidas
que se transformam em borboletas, os homens transformam-se em monstros. Para
maiores detalhes técnicos, ver página 3.100". Não
quis acreditar. Não podia acreditar. Leu outra vez. Não, seus
olhos não o haviam enganado. Era realmente verdade, e explicava as máscaras
nas campânulas.
Chorou. Como nunca havia chorado antes, nem como quando apanhava dos braços
fortes do pai, um monstro também. Furioso, quebrou todos os invólucros,
que espalharam o líquido, atirando as máscaras ao chão.
Quis ter certeza de que aquilo seria destruído, e de que ninguém
nunca mais enganaria a ninguém. Que a verdade acerca da vida fosse mostrada
a todos os adolescentes e crianças, sem uma máscara que camuflasse
a verdadeira e monstruosa face do Homem.
Ateou fogo em tudo e fugiu. As pessoas, isto é, os monstros, estariam
ali em minutos. Chorou de novo. Como aquilo poderia ser verdade? "Eu também
vou me transformar em monstro"?
Sua cabeça cansada, seus olhos molhados e o coração pesado
a essa altura, repousaram no tronco de um árvore na floresta onde arranjara
abrigo. Dormiu, e por estranho que possa parecer, teve um lindo sonho, alienando-o
do pesadelo da vida. Acordou com o sol da manhã no rosto e o som do latido
de cães nos ouvidos. Certamente estavam à sua procura. "Não,
não me pegarão, jamais"! "Jamais hei de me tornar um
monstro"! Sacou o cinto da calça e enforcou-se. Os monstros e os
cães chegaram logo a seguir, mas não conseguiram evitar a sua
morte. Desceram-no da árvore e o revistaram: nada de valor. Então,
o que comandava o grupo disse em voz alta: "Tirem suas roupas e deixem seu corpo
aos abutres; e, é claro, não esqueçam da sua máscara,
com certeza iremos utilizá-la novamente".