Santa audácia! Bizarra índole de antigo cavaleiro, que abriga
no peito a generosidade com que os heróis dos Lobeiras, Cervantes, Barros
e Morais se lançavam às aventurosas lides, no intento de corrigir a
vícios e endireitar as tortuosidades da humana maldade!
Não desanimou Calisto Elói, tão desabridamente rebatido
por D. Catarina Sarmento.
Averiguou quem fosse o galã daquela cega dama, e facilmente lhe nomearam.
Era um gentil moço, useiro e vezeiro de semelhantes baldas, enfatuado
dela, e respondendo por si com sabre ou florete, quando gente intrometida em
vidas alheias lhe falava à mão.
O informador do orgado explanou difusamente as qualidades do sujeito, relatando
as vítimas, e os acutilados na defesa delas.
Ocorreu à memória de Calisto aquela apostólica e heróica
intrepidez de Fr. Bartolomeu dos Mártires, quando foi a defrontar-se
com um criminoso e façanhudo balio, que prometia engolir o arcebispo
de Braga, e o colégio dos cardeais com o próprio papa, se necessário
fosse! Grande coisa é ter lido os bons clássicos, se desejamos
saber a língua portuguesa, e criar alentos para atacar velhacos!
Aí vai o esforçado Calisto Elói de Silos em demanda de
D. Bruno de Mascarenhas. Um escudeiro anuncia ao fidalgo um ratazana.
- Quem é um ratazana? - pergunta D. Bruno.
- É um sujeitório - diz o criado - vestido ratonamente, e não
diz o nome, porque V. Ex.a o não conhece.
- Que quer ele?
- Falar com V. Ex.a.
- Vai perguntar-lhe quem é, donde vem, e que quer.
Interrogou o criado com mau semblante o morgado.
Calisto escreveu numa página rasgada da carteira, e perguntou ao criado
se sabia ler. Disse que não o interrogado.
- Pois entrega esse papel a S. Ex.a.
D. Bruno leu, meditou algum espaço, e perguntou:
- Sabes se em casa do desembargador Sarmento há algum criado chamado
Custódio?
- Não, senhor, não havia até ontem; só se entrou
hoje.
- Esse homem que aí está dá ares de criado? - Não,
senhor: é assim um jarreta vestido à antiga, com uma gravata que
parece um colete.
- Manda o entrar para aqui.
D. Bruno releu a linha escrita a lápis, e disse entre si:
- Que Custódio é este!?
Nisto, assomou Calisto Elói.
Bruno de Mascarenhas adiantou-se a recebê-lo, e disse-lhe maravilhado:
- Eu já tive a honra de cumprimentar a V. Ex.a no escritório da
Nacão. V. Ex.a é o Sr. Calisto Elói de Barbuda.
- Sou, e agora me recordo que já tive o prazer de o encontrar...
- Mas V. Ex.a neste bilhete diz que é Custódio! - tornou Bruno.
- Custódio, que é sinônimo de anjo-da-guarda, ou anjo-custódio
da Ex.ma Sr.º D. Catarina Sarmento.
Abriu o moço a boca, e disse:
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se...
Eu não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
Calisto sentou-se, estendeu o braço direito com a mão aberta,
e atalhou o enleio de Bruno dizendo solenemente:
- Vou falar.
E, após curta pausa, relanceou discretamente os olhos à porta,
como quem receia ser ouvido.
- Pode V. Ex.a falar, que eu fecho a porta - disse o confuso Mascarenhas.
- O Sr. Bruno de Mascarenhas - prosseguiu o morgado - é solteiro. Cedo
ou tarde há de ser casado, porque é varão de preclaríssima
linhagem, e duas forças invencíveis hão de compeli-lo a
propagar-se: o sentimento congênito da espécie, e a glória,
que vanglória não é, da persecução da raça.
(Este exórdio abrupto envencilhou os espíritos de D. Bruno, os
quais eram pouco entendidos em estilo garrafal.)
- Façamos de conta - prosseguiu Calisto - que V. Ex.a é hoje,
como será, volvidos meses ou anos, casado com uma dama igual em sangue,
de honrada fama, acatada do conceito geral, dama enfim, na qual V. Ex.a empregou
suas complacências todas. À boa dita de esposo sucede-lhe a prosperidade
de pai. Vê V. Ex.a ao seu redor umas alegres criancinhas, que o beijam
e o furtam, com graciosas blandícias, às graves cogitações
nos negócios, e aos aborrecimentos que salteiam as existências
mais descuidadas e desprendidas. A mãe dos filhinhos de V. Ex.a é
o cofre de ouro; as crianças são as joias inestimáveis
que V. Ex.a lá encontrou e lá encerra.
A mãe é a flor, os filhos são o fruto. V. Ex.a arde de
amores deles e dela. Porque a sua família é não somente
a sua alegria doméstica, senão que lhe é fora de casa um
pregão da honestidade e honra que vai nela.
De repente, quando V. Ex.a está meditando nos júbilos da velhice,
com seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem
mácula, de repente, digo, há um amigo em lágrimas, ou um
inimigo secretamente satisfeito, que lhe diz: "Tua mulher desonra-te; essas
crianças, que tu afagas, e para quem estás multiplicando os teus
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
Pergunto eu ao Ex.mo Bruno de Mascarenhas, a sua agonia, nessa hora de atroz
revelação, como hão de expressá-la os que a não
sentiram ainda?
- Não sei... - respondeu Bruno. - Só no caso de se darem as circunstâncias
que V. Ex.a diz, é que se pode responder.
- Todavia, o seu entendimento e coração, já antes da experiência,
podem antever qual deva ser a agonia do marido desonrado pela ignomínia
de sua mulher...
- Sim...
- Até aqui a hipótese em V. Ex.a; agora o exemplo em Duarte de
Malafaia, marido de D. Catarina Sarmento. Duarte era rico, e dos mais fidalgos;
por excesso de amor casou com D. Catarina, filha de um nobilíssimo cavalheiro,
porém magistrado empobrecido pelos desconcertos da política. Duarte
entrou naquela casa, restaurou a decência antiga, e encostou ao seio as
cãs do magistrado octogenário, assegurando-lhe o sossego e contentamentos
dos anos últimos da vida.
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem
a povoar o paraíso daquela ditosa família. Brincam à volta
de sua mãe, e como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade
que ele está gozando, e lhe augura a eles.
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família
honrada e ditosa. Surge das tenebrosas agonias um homem que despedaça
às mãos os laços humanos e divinos da santa união
do velho, da filha, do genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu
éden foi o Sr. D. Bruno de Mascarenhas.
- Eu! ... - exclamou o moço com artificial espanto.
- V. Ex.a. Vejo-o admirado, não sei se da minha afoiteza, se da responsabilidade
que lhe pesa, Sr. D. Bruno!
- Mas o que houve em casa do Sarmento? - perguntou alvoroçado o fidalgo.
- O que eu antes de ontem vi foi a face do ancião lavada de lágrimas.
O que eu vi ontem à noite foi Duarte de Malafaia fitar os olhos nas criancinhas,
e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje verei em
casa do desembargador Sarmento, se V. Ex.a o não pressagia... Não
temos tempo para conjecturas; a chaga deve ser cauterizada já, para não
ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me a conjurar a nuvem negra
que vai rasgar-se em torrentes de desgraças?
D. Bruno refletiu dois segundos, como se houvesse pejo de responder, no primeiro
instante:
- Da melhor vontade. Eu desisto destas relações, para evitar desgostos
sérios à Sr.º D. Catarina.
- Fala-me um honrado português, que tem o apelido dos Mascarenhas? - perguntou
com solenidade o Barbuda.
- Juro pela honra de meus avós.
- Que vai fazer V. Ex.a? - tornou Calisto.
- Antecipo um passeio que mais tarde tencionava fazer à Europa. Parto
no paquete de amanhã para França.
- Sem dizer nem fazer saber à Sr.º D. Catarina que esteve aqui um
amigo do desembargador Sarmento.
- Nada direi, Sr. Barbuda.
- Aperto-lhe e beijo esta mão. Agradeço-lhe em nome dos cinco
filhos de Duarte Malafaia, ou dos cinco anjos que lhe chamam pai.
E saiu com os olhos marejados.
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