A Garganta da Serpente
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Objeto real; imagem virtual

(Clara Carolina Souza Santos)

Na sala, nada mais que um espelho. Nada a contemplar, a mirar os olhos com desprezo, nada que sequer lembrasse o brilho da última alma que ali estivesse. Parede, parede, parede; Espelho. Ele, com sua imponência e profundidade, não aceitava presença que não fosse refletida por seu brilho. As pegadas não deixavam a impressão dos lugares que conheceram e, quando deixavam, logo eram ofuscadas por toda auto - suficiência e altivez do Espelho.

Por mais que nada passasse imperceptível aos olhos do Espelho, a melancolia de manter-se só parte do tempo criava entrave em sua visão; só se enchia de contentamento quando um ser se aproximava, mas pouco sabia aquela vaidade que abria a porta que o estado de torpor que tomava conta do Espelho era por ver sua beleza refletida no brilho dos olhos de quem se admirava.

A agonia em apressar os passos de quem se aproximava para poder ver-se refletido era tamanha, que ludibriava os olhos daquele ego escravo da vaidade, enchendo-o dos mais belos traços, suscitando naquele ignaro animal certezas e belezas nunca antes percebidas sequer pelo melhor fotógrafo. Naqueles passos de aproximação, o repugnante ser que se enchia de orgulho ao se ver tão bem refletido passava a perder a noção do tempo e espaço enxergando somente e tão somente os contornos magnificamente desenhados pela luz refletida. Duas vaidades que se alimentam do brilho por cada uma produzida, miram-se com tamanho desprezo e repugnância que é preferível não enxergar ao Espelho a ter que ver esta falha na alma, ofuscando o brilho e magnificência da aura que se esboçou nos breves segundos de aproximação.

Enfim, próximos e tão distantes quanto o chão do céu. O único entrelaçamento de vontades era o de ver-se nos olhos de quem se admirava nos seus sofisticados engenhos de luz e sombra.

Tal vontade transforma-se rapidamente em vício e, ao menor vislumbre de descontentamento do ser refletido, logo cria uma luz e uma sombra para amenizar o defeito. Precisava que o ser se sentisse Deus, para que este não lhe privasse o direito de nutrir sua vaidade, cada vez mais insaciável. Para não perder a chance de ver-se criava uma ou outra imperfeição, para que o insignificante gastasse mais alguns minutos com seus olhos em frente ao Espelho; criando, assim, uma relação de interdependência.

Conseguia neutralizar pensamentos insistentes da mente de quem emprestava seus olhos para que o Espelho pudesse se admirar e, por vários minutos, tornava-se alvo da mais alta atenção.

Ao virar-se, um estalo. Na sala, nada mais que um espelho. Nada a contemplar, a mirar os olhos com desprezo. Parede, parede, parede; Espelho.

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