"Tomar posição é um ato destrutivo."
Alberto Lins Caldas
Foi como uma marionete que, de repente, cortou os fios de conduta que a moviam.
Numa manhã de céu claro, a cidade movimentada, ele decidiu não
mais reagir à realidade que o cercava. Talvez um sonho, uma brusca mudança
de percepção, ou mesmo algo patológico o deixou naquele
profundo estado de prostração. Pouco se importou em saber por
que, não refletiu acerca disso, apenas deixou-se cair no pátio
do quintal. E lá ficou jogado, mole e disforme, entregue a um novo destino.
Pois estava resolvido a renunciar às exigências da realidade, aniquilar
tudo que o construiu até ali e gerar uma nova realidade, só sua.
E iniciou ali a sua jornada em busca da autonomia mental.
Primeiro ele buscou desfazer-se da consciência superficial das coisas.
Não se ocupou dos objetos que estavam em seu campo de visão, foi
dissolvendo tudo: a caixa de sabão sobre o tanque, a vassoura encostada
na parede, a mangueira umedecida, o carro na garagem, o calendário na
parede, a janela da cozinha, a torneira que pingava... Não fechou os
olhos, e todos os objetos foram perdendo a importância, o sentido que
tinham até então. Não demorou a obter a cegueira voluntária.
Depois ficou a ouvir a passagem do ar que suas narinas instintivamente sugavam,
mas logo se cansou disso, e voltou seus pensamentos ás batidas de seu
coração. Ritmado e vigoroso, aquele eco lhe trazia a lembrança
de um livro de anatomia, as resenhas da ciência que nele fora construído.
Não queria lembranças da realidade que agora dissolvia, estava
decidido a romper com tudo que sua mente impusera como real, tudo que não
havia sido escolhido por ele mesmo. Logo, seu coração também
foi dissolvido, o sangue evaporado, a artérias ressecadas.
Lá ficou por dias, sem que ninguém se desse conta dele. E mesmo
ele não se dava conta do tempo. O tempo era coisa que não mais
cultuava, pertencia á antiga realidade no qual não mais acreditava
e que agora dissolvia.
Lentamente, e com persistência, foi abatendo a sede, a fome, a ânsia
por se mover. Mas não se moveu. Enfrentou as chuvas, o sol inclemente,
o instinto de gritar, de pedir por alguém. A princípio era uma
agonia sem fim, mas quebrou em si a necessidade de um substrato. Depois passou
a tomar gosto pela sua solidão. Era nela que pretendia erguer os alicerces
da nova mente. Conseguindo amortecer as necessidades do corpo, controlando os
instintos mais superficiais, passou a se preparar então para as renúncias
da mente.
Um imperativo, uma voz viciada, reclamava que ele se levantasse. Essa voz gritava,
ecoava em seus ouvidos internos (pois que já tinha dissolvido a audição
exterior). Mas lutou bravamente, e buscou algo dentro dele que desse suporte.
Daí lembrou-se das coisas que a antiga realidade lhe exigia para existir.
Lembrou-se que, se levantasse, se abrisse os olhos, se agisse, teria de ir trabalhar,
de seguir o fluxo da realidade estabelecida. O trabalho, o trânsito,
o processo produtivo, eram coisas da realidade anterior, que ele tanto repugnava.
Então manteve-se ali.
Contemplou o vazio de sua vida até ali: que todos os seus sonhos não
havia sido construído por ele mesmo; que seu corpo vestia o que não
era de seu gosto; que as palavras que dizia era uma gramática de protocolo;
que a arte que representava era de estilo pré-estabelecido; que sua educação
nada mais era do que adestramento para o processo produtivo do capital.
Não. Não queria mais os fios que o conduziam naquela velha estrutura
de realidade. Ele tinha um objetivo: obter a autonomia da mente. Já não
era mais uma marionete, o boneco mamulengo que fazia o povo sorrir, pagar para
vê-lo, comer pipocas, festejar e comentar. Atentou contra a sua mobilidade
programada. Queria ver a sua própria inutilidade e os rostos decepcionados
da plateia.
Então pensou: Pra que? E aquele pra que? foi o propulsor de sua
inércia. Foi o que o deixou permanecer inerte ao chão, refletindo
o interesse das coisas, percebendo que sua ação no mundo era apenas
função. Que vivia, comia, se relacionava, amava, para atender
expectativas alheias a ele, para o programa da tribo. O paraíso havia
sido construído nele, sem que alguma única vez lhe perguntasse
se era de seu consentimento.
Pra que ele se levantaria, iria trabalhar e atender as expectativas de
seus superiores? Pra que ele recitaria versos que agradariam somente
os que podiam pagar para ouvi-lo? Pra que ele haveria de carimbar papéis
que autorizavam as instituições a tomarem decisões por
ele? Pra que ele renderia homenagens a heróis que combatiam os
inimigos que não eram seus? E dentro daquele imperativo de pra quês,
ele foi dissolvendo as gravatas, os formulários, o casamento, o sistema
de crenças, o salário, os poemas, as mercadorias, as ideologias,
as linguagens...
Todas as expectativas a seu respeito deveriam ser esquecidas, desprogramadas.
Sentiu um imenso prazer nisso, um gosto de vingança contra a realidade
estabelecida. Então não se moveu, ali permaneceu corroendo
a história, carcomendo os sistemas, digerindo as civilizações,
devorando nomes e vomitando os pronomes.
Viu que podia se livrar de tudo que a velha mente impunha como realidade. Foi
dissolvendo tudo sem buscar qualquer coisa que substituísse o que destruía.
Queria a pureza para obter profundeza. Queria um fim escuro, um vácuo
de pensamentos, partir do novo nada e reconstruir a sua própria gênese.
E assim foi transcendendo ás necessidades do corpo, as armadilhas da
mente e a ilusões dos sentidos.
Quando enfim percebeu que finalmente assassinou a velha mente, se viu então
livre, tão leve de si mesmo. De começo tomou gosto pela sua liberdade,
se viu dentro de um cone disforme, a rir do que deixou de existir. Mas não
podia se mover, nenhum músculo respondeu á possível nova
mente. E havia uma coisa que ainda permanecia, que não podia livrar-se
dela: a sua consciência.
Quando teve esse relâmpago de certeza, um impulso o tomou de assalto.
Conseguiu reabrir os olhos. Sentiu um leve fisgar em algum músculo no
qual seu cérebro não mais reconhecia a localização.
Como ele havia apagado a função da mente, ele não mais
podia se mover. Mas a consciência continuava lá, viva, límpida,
lúcida.
Passou a contemplar o seu próprio horror. Queria gritar, se mover, mas
ele já havia negado ao peso da matéria há muito tempo (no
tempo de seu imaginário). E não conseguia reconstruir um corpo
que o fizesse reagir. Percebeu que era uma bolha de carne inerte, fétida,
esquecida por ele mesmo no fundo do quintal. E por causa de seu desespero, os
objetos da realidade voltaram a assombrá-lo: a torneira não mais
pingava, a vassoura havia sido derrubada pelo vento, a janela da cozinha estava
empoeirada, a caixa de sabão desbotada, a mangueira ressecada, o carro
e a garagem eram coisas distantes... E o calendário! Ele permanecia na
parede, com as cores vivas! Mas os dias fragmentados eram de uma lógica
estranha, o ano era um caractere incoerente a sua memória. Quanto tempo
fazia que ele havia dissolvido aquela noção de tempo? Milhares
de gritos desesperados, carregados de medos ancestrais, passaram o atormentar.
Enfim, cansado do combate interno, da projeção infernal que o
assolava, ele decidiu enfrentar o seu horror. A solidão, seu próprio
e voluntário esquecimento, eram coisas que ele havia desejado e conquistado.
E isso era uma resposta! Pensou que talvez o estado em que se encontravam os
objetos era uma construção de sua mente ainda impregnada da realidade
anterior. Sim, era a sua nova mente imperando, dando ordem ás
coisas. Sentiu nisso uma vitória. O triunfo de sua batalha contra a realidade
anterior. Será que havia obtido a autonomia da mente? Gozou com essa
possibilidade, tal perspectiva lhe confortou e ele voltou a seu estado de hibernação
mental. Ora, se o tempo da antiga realidade houvesse passado da forma em que
se apresentava naqueles objetos, ele já teria morrido. A inanição
da carne não suportaria tal tempo. E sua consciência lá
permanecia, fragmentada, camuflada, mas esclarecida!
E mal finalizou este pensamento, os sentidos deram um sinal de vida: sentiu
a brisa tocar sua pele. Lutou para não reabrir os olhos, queria apenas
sentir o frescor passar em suas vértebras, uma nostalgia dos tempos da
matéria... Mas o olfato lhe traiu, e trouxe o cheiro de carne apodrecida!
Um turbilhão de lógicas desencontradas, a avalanche de seu novo
caos mental, a impregnação da memória querendo se reconstruir...
Tudo parecia querer se materializar, lhe remover do chão. Mas um músculo
sequer ousava responder á sua angústia. Um novo desespero tomou
conta dele. O cheiro pútrido poderia vir do terreno baldio do vizinho,
do cesto de lixo que abandonado ao tempo? Ou era aquele o cheiro de seu próprio
corpo entrando em estado de decomposição?
Os olhos se abriram. Uma afiada luminosidade quase lhe cegou Foi acostumando
a vista... Mas não podia ver seu próprio corpo! Apenas os objetos
que nada denunciavam o seu estado. Se arrependeu pelo fato de não ter
pensado nisso antes, não ter programado sua queda num ângulo o
qual pudesse ver seu próprio corpo. E o calendário lá na
parede, indecifrável... Parecia gozar com seu estado de horror e dúvida.
Sabendo que não poderia esbravejar contra aquela posição
vulgar, de que nada adiantava agitar os braços, rastejar, ele quase se
entregou á resignação. Quis chorar, mas não ousou
lamentar um destino que ele mesmo havia escolhido. Então sorriu por dentro.
Acima de tudo, acima do corpo inerte e duvidamente apodrecido, estava a sua
jornada em busca da autonomia mental! E com sua nova mente podia forjar
a sua própria realidade. Foi aí que ele pensou: Não seria
o cheiro um resquício de realidade? Uma ilusão da nova
mente ainda viciada nas configurações anteriores? Pois se
morria, porque então sua consciência persistia?
Numa gargalhada insana ele desprezou qualquer possibilidade de morte à
luz da realidade no qual repugnou. Riu dos deuses da antiga estrutura, que o
poderiam denunciar: Que ele havia morrido e agora era um espírito vagando
pelos umbrais, já que não havia sido obediente e nem servido humildemente
a algum senhor. E cada golfada de riso, cada gole de fôlego, lhe revigorou,
e começou a reconstruir nele um novo corpo. Os pulmões respiraram
um novo ar de alturas, as costelas se ergueram felizes com o novo vigor. Então
ele conseguiu rastejar até o jardim. De lá, poderia ter um novo
ângulo de visão. Podia ver, do portão, que o dia ainda estava
claro, a cidade movimentada. Então desejou um desafio, o seu primeiro
desejo desde a conquista da nova mente: sair dali e ver como reagiria
a antiga realidade diante dele, agora que podia se mover sem os fios de conduta.
Aquela poção de carne embutida ainda de alguma consciência
se expandiu. Foi uma luta dolorosa, as juntas doíam, os ossos estalavam,
a mente se remontava, os sentidos o combatiam, a carne parecia se rasgar. Sentiu
o sangue descongelar, o intestino se desdobrar, o cérebro pulsar, o estômago
ressecado a gritar... Uma dor, uma imensa dor que o libertava.
Mas enfim...O Mamulengo se ergueu!
A princípio ele não tinha ainda controle sobre seus próprios
movimentos. Mas mesmo assim, trôpego, desgastado pela inanição,
ele alcançou os limites do portão. Antes de romper o fecho, com
sua mão hesitante, com sua mente ressentida, com sua garganta silenciada
pelo desprezo, ele jurou não mais caminhar pelas ruas que lhe foram traçadas.
E feito um vírus, ainda inofensivo, ele atravessou as ruas de uma geografia
paralela.
Caminhou. Cambaleante caminhou. Roto, sujo, descarnado, sem memória,
sem registro, sem história, sem crença, ele perambulou pelas vias
da cidade. Num lapso de instante, pode contemplar sua figura descrente num vidro
de alguma loja qualquer. Era uma caricatura óssea do que antes chamavam
de homem. De toda forma, qualquer homem que ali estivesse refletido seria menos
importante do que a mercadoria que naquela vitrine estava exposta.
Depois roubou algum lençol de algum varal. Com ele se encobriu, não
por vergonha, mas para se proteger de olhares acostumados á higiene e
ás regras de boa conduta. Escondeu seu sexo, não por puritanismo,
mas para preservar seu dom ao prazer. Camuflou seu rosto, não por desgosto,
mas para fortalecer sua falta de identidade. Calçou seus pés,
não por vaidade, mas por necessidade...
Não muito longe dali, já sentindo o domínio sobre seu corpo,
ele provou da felicidade da nova mente. Inspirou aquele ar das alturas,
saboreou uma mágica liberdade. Como nada mais daquele mundo importava,
tudo havia perdido a finalidade, nenhum problema terreno o ocupava. Nenhuma
regra lhe exigia algum comportamento pré-estabelecido. A chuva lhe lavaria,
depois o sol lhe secaria. Amaria o céu!
Inspirou o grande vigor e pôs-se a correr, a gritar qualquer coisa sem
lógica, provando a liberdade que acabara de inventar. Expressou em seu
rosto todo o nojo que podia sentir, e moldou toda a alegria que podia sonhar.
Depois ria do horror da plateia!
Ficou assim por dias, a correr pelas ruas da cidade desconhecida. Com sua nova
mente ele destruía todas as coisas que se dispunham em seu caminho:
os sorrisos ensaiados, as notícias, os relógios das torres, os
interesses das nações, a necessidade da certeza, o valor dos contratos,
os símbolos e as bandeiras... E ria da reação pavorosa
da plateia!
Mas logo o palco se esvaziou...
Seu corpo corroído pela subnutrição se cansou. Sua mente
destruidora se viu sem munição. E ele sentiu o tal resquício
de realidade: alguma coisa que pertencia á configuração
de realidade anterior e que ainda o atormentava. Sentiu então uma fome
crucial, uma necessidade metabólica tão feroz e imediata. Repousou
em algum banco da cidade e ali se encolheu, desesperado. Tudo jorrou sobre ele:
sentiu frio, uma grande sede, uma terrível solidão. Viu-se feito
um bicho que acabara de nascer e farejava instintivamente por uma teta que o
alimentasse. Gastou tanta energia comemorando sua divindade e agora estava fraco
para lutar pela sua condição de criatura. Queria uma maneira de
iludir o estômago, mas as primeiras preocupações da nova
mente lhe exigiam uma resposta imediata, uma certa condição
de sobrevivência no qual não podia negar. Então se deu conta
de que era a primeira vez que sua nova mente teria de criar. Teve medo,
muito medo!
A dor da fome lhe impedia um raciocínio, sua nova mente queria
uma reação instintiva. Passou a se arrastar pelas ruas da cidade,
a implorar por um punhado de alimento. Os olhares eram de indiferença,
de horror, de menosprezo, de medo, de zombaria. Ouvia algumas respostas, mas
não se dava conta do valor delas. Um homem de terno parou diante dele,
de um livro grosso começou a ler versos e implorar por compaixão
e perdão. Mas ele não podia também compreender o que dizia,
e muito menos o que significava a fé que o homem tanto clamava. Viu então
que não entendia a língua dos passantes, os idiomas haviam sido
apagados junto com a realidade anterior.
Cambaleava entre as grades das casas implorando alimento numa voz inteligível
a eles. Tinham medo dele, temiam a possibilidade de uma criatura tão
miserável ser um homem. Então ele satisfez sua fome num grande
latão de lixo. Uma mulher diminuiu os passos, admirada com aquela cena
grotesca de besta faminta solta na rua. Ao ver mais de perto, gritou admirada:
"Meu Deus. Não é bicho não... é gente!"
Assim passou a viver, de lixo, de pedir, de ganhar algum pão aqui e outro
ali. Amenizava a dor do estômago, mas a dor da solidão latejava.
Um estado de depressão profunda o deixava prostrado pelos cantos escuros
dos becos. Ali ele remoia as coisas, lutava para não gerar uma realidade
tão assombrosa quanto aquela que ele desprezou. A solidão era
esmagante! Como construir uma realidade dentro do fosso da solidão? Como
moldar algo a partir do caos que dançava dentro de seu próprio
esquecimento? Como gerar algo sem ter um paradigma qualquer que pudesse lhe
dar uma noção de geometria? Viu então que, dentro daquela
dimensão, sua mente jamais caminharia separada do corpo. Teria de haver
comunhão. Nenhuma realidade agradável seria possível sem
seu desagradável oposto. E concluiu: "A coexistência é
o caminho do meio!"
Aprendeu a sobreviver entre sua autonomia mental e necessidade de sobreviver
dentro daquele contexto. Criou seu próprio tempo, inventou a sua liberdade,
vivenciou o seu imaginário, saboreou sua singularidade. E adaptava tudo
aos métodos de sobrevivência terrenos. Recebeu abrigo, sopa, banho,
conduzido por mãos de desconhecidos que se indignavam com seu estado.
E devagar ele foi se adaptando, indo por caminhos paralelos junto com muitos
outros indivíduos.
Ficou anos perdido entre as sombras da cidade que não mais reconhecia.
Contornou as esquinas, e ali viu o esquecimento. Continuou a caminhar, pois
não reconhecia as fronteiras. Vagou pelos campos cercados, e ali viu
a fome. Navegou pelas ilhas, e ali viu os presídios. Rondou pelos aterros
de lixo, e ali viu os sobreviventes. E por todos os confins de mundo que andou,
ele sofreu e sorriu. Rastejou num peso que dificilmente julgou capaz de suportar,
enfrentou a sua própria miséria. Em outros instantes ele dançou
no temporal a rir das linhas imaginárias no qual os homens desenhavam
as fronteiras.
Ele viu que não era somente ele um incógnito e esquecido cidadão
daquele mundo que não era mais seu. Havia muitos como ele. Tantos que
antes foram homens, trabalhadores, pais de famílias, honestos e crentes;
que foram antes as marionetes, os bonecos mamulengos que agradavam aos que tinham
ingresso. E que tantos deles, esquecidos pelas mãos invisíveis,
ultrapassados, indivíduos obsoletos, ou mesmo dispostos a se livrarem
dos fios de conduta, vagavam por todos os recantos do mundo. Sentiu que
não estava só.
Viu também que tudo era uma ilusão da mente: o prazer, a dor,
o inicio, o fim. Que todos esses prazeres e medos eram resquícios
de realidade, impregnações de sua nova mente ainda
viciada nas configurações anteriores...
Superou todas as dores e as necessidades nele construída por ele mesmo.
Não teve medo dos novos medos da nova mente. Queria todos os medos, todos
os horrores, todas as feridas que poderia suportar a nova carne. Queria tudo
sobre ele, todas as contradições jorrando sobre ele, tão
disposto estava para o mental combate. Feito boneco livre, homem sem
face, habitante sem nação, ele cantarolava entre as trilhas das
aldeias, as ilhas dos mares e os trilhos das cidades. Via os terrenos, sabia
das moedas, testemunhava as relações, e tudo absorvia. Nada julgava,
apenas aprendia. Sem perceber, sem buscar essa finalidade, ele alcançou
a sua iluminação. Pois apesar de todos os conflitos da mente,
ele caminhou o seu caminho, aquele que julgou digno de si, escolheu seu próprio
destino.
Viveu tantas daquelas tardes de sol suave, vento indeciso, destino despreocupado.
Dançou entre os loucos, comeu com os vagabundos, tocou os tambores das
tribos dispersas. Cantou com os mambembes, comemorando não sua vitória,
mas a sua luta...
Em seus caminhos e descaminhos, ele descobriu a certeza de seu destino: a morte!
Pois a carne dos homens se desfaz, a mente se supera, as paixões se desvanecem,
as virtudes se corrompem e a finitude é inevitável. E mesmo a
madeira, matéria de que são feitos as marionetes apodrecem, quebram,
mofam, seus fios enrijecem. Tudo era transitório, o homem e suas representações...
Mas ele sorriu para os primeiros sinais de sua própria superação,
de seu próprio fim. Se tudo era transitório, por que então
sofrer por permanecer? "Aqui eu quero estar, mas não quero ficar."
E afinal de contas, ele havia obtido sua meta: havia conquistado a sua autonomia
mental, apesar dos vícios e necessidades da realidade anterior.
Ele morreu de indigência. Como morrem muitos assim todos os dias. Sem
funerais, sem registros, sem flores, sem discursos, sem benefícios, sem
rituais da tribo, nem o pesar social... Tampouco sua morte foi triste, mais
parecia uma porção de vitória sobre o horror do real. Numa
vala comum havia sido enterrado uma criatura implural: um homem que havia escolhido
a sua própria morte!
Mas também poderia ser que ele nunca tivesse morrido! Pois a morte também
poderia ser mais um resquício de realidade, uma ilusão
de sua nova mente ainda viciada nas configurações anteriores...