A Garganta da Serpente
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Matias Brandão encontra Lauren Bacall

(Carlos Bruni)

"Maluco", diziam uns. "Neurótico" atestavam outros".

Palavras pesadas. Nunca, contudo, ditas diretamente a Matias, sempre visto com condescendência pelos colegas de escritório, diante de sua adoração por Lauren Bacall, estrela de cinema dos anos quarenta e da qual, décadas depois, ainda se via um ou outro filme na TV.

Uma fantasia obsessiva o fazia sonhar com sua estrela predileta a ponto de conhecer-lhe a filmografia, de cabo a rabo. Citava "Key Largo" e "À beira do abismo", descrevendo todas suas cenas como se tivesse assistido no dia anterior.

Deliciava-se ao falar sobre "Como agarrar um milionário" onde, em suas palavras, Betty estava linda de morrer.

Tratava-a pelo verdadeiro nome. Quem mais, julgava, tinha o direito de fazê-lo?

Tinha uma ponta de inveja ao referir-se a Humphrey Bogart, que contracenara com sua amada em "Uma aventura na Martinica", e em muitas noites sonhou com a cena onde ela aparecia dizendo a Boggie que "se precisasse de alguma coisa, bastaria assobiar".

Essa era a vida do solteirão, sorumbático e para muitos, lunático, Matias Brandão, até o dia em que Lauren Bacall apareceu à sua frente.

Viu-a ao sair do elevador no mesmo pavimento em que ele trabalhava, vindo em sua direção. Paralisado, sentiu a brisa e o perfume de sua passagem, indiferente, rumo a outra sala do prédio.

O Destino brincava com ele. A nova colega era o retrato fiel de sua deusa ao início da carreira. O mesmo jeito de andar, mecha de cabelos caindo pela testa - marca registrada da atriz - e aparentando os mesmos dezoito anos de La Bacall quando de seu primeiro filme.

Matias viu sua vida entrar em parafuso. Não conseguiu mais se organizar em seu trabalho e as horas passaram a ser marcadas por longos devaneios, comprometendo seus afazeres. Entretanto, nem por isso comentou com quem quer que fosse, o motivo de seu destrambelho. Não queria que ninguém interferisse em um assunto que era só seu. E dela.

Chegou mesmo a cogitar em convidá-la para fazer-lhe uma visita e mostrar-lhe sua coleção de revistas sobre a atriz mas, num lampejo de sensatez, concluiu ser improvável ela pensar em outra coisa que não fosse numa cantada vulgar.

E ela o ignorava quase que totalmente, mesmo quando recebia um cumprimento ou um documento que ele lhe passava.

Todavia, Matias via no sorriso formal um aceno de promessas que iriam se realizar.

Essas promessas começaram a desmoronar num final de tarde, ao vê-la à porta da rua encontrando-se com um jovem, com quem trocou um curto mas revelador beijo.

Ambos se afastaram e Matias ficou olhando-os com um sentimento de frustração crescendo dentro de si, misturado com uma raiva que jamais sentira.

Naquela noite, em seu apartamento, o ódio explodiu:

- Então é assim, sua ordinária? Depois de todos esses anos de adoração, de veneração, você me trai despudoradamente?

Do alto de seus retratos dependurados por toda a sala, "The Look" espiava-o em silêncio. Ele continuou a chorar:

- Por que fez isso comigo? Eu sempre a amei, adorei, e agora me deixa assim, sem mais nem menos? Não tem esse direito. Não vou deixar.

Os retratos foram arrancados de seus altares e pisoteados. As revistas, feitas em pedaços. A fúria de Matias não teve limites:

- Entendeu, sua vagabunda? Não vou deixar.

Passou uma noite de cão, olhando desolado para aqueles restos de um amor desfeito. Pela manhã foi para o escritório, mais calado do que nunca, carregando no bolso um trinta-e-dois que sempre tivera no fundo de uma gaveta. Seu dia de trabalho foi o de um encarcerado em prisão perpétua; não falou com ninguém, mal saiu de sua mesa, mas com uma decisão em mente.

Na hora da saída, antecipou-se a todos e caminhou rapidamente pela rua, no caminho por onde os dois jovens, sabia, passariam. Ocultou-se junto aos tapumes de uma obra e viu-os aproximarem-se despreocupados, rindo e conversando.

Matias tirou a arma do bolso e apontou-a na direção de ambos, que nada perceberam do ocorria poucos metros à frente.

Pelos olhos de Matias Brandão, foram Lauren e Bogart que passaram e desceram a rua.

Lentamente, o braço moveu-se desviando o revólver para um novo alvo.

Naquela noite, um dos canais de TV exibiu o filme "O fã". Nele, Lauren Ba-call fazia o papel de uma atriz famosa perseguida por um admirador fanático, cuja obsessão beirava a loucura.

Por uma dessas incoerências do Destino, Matias Brandão jamais assistira a esse filme.

  • Publicado em: 16/05/2003
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