Eu tento não absorver as imagens que vejo. Mas elas são instantâneas
e é por isso que temo. A instantaniedade é o ponto final de um
parágrafo de uma história que não quer terminar, quem dera
fosse simples reticências. Eu temo prosseguir com as imagens que surgem
dentro.
Algumas pessoas estão acostumadas em enxergar a morte cara-a-cara, frente
à visão e, às vezes, ao olfato, quando a morte não
está tão longe. Mas o cheiro de gente morta, que invade quem está
perto, excita o suor. O suor tem cheiro, às vezes de exclamação,
às vezes de ponto final, às vezes tem cheiro de excitação.
Excitação, de alteração, de agitação,
um estímulo que apesar de não ser sexual é ainda carnal.
E prossegue o cheiro da morte transformado em cheiro de suor sempre chegando
em novas narinas. Nas narinas de quem não está acostumado.
Eu via a morte pela televisão e sentia-me confortável porque vinha
com cheiro de energia elétrica. O meu temor começa daí.
O primeiro passo é sempre difícil de lembrar, não porque
a gente era criança e porque depois a gente se esquece do que já
aconteceu. É difícil porque normalmente é incentivado e
quando a gente percebe está andando; o aperfeiçoamento, é
claro, vem da nossa parte. O primeiro passo, para o que eu chamarei de caos,
é incitado e vem espontaneamente e espontaneamente tece uma cadeia de
horrores. Pois bem, o primeiro passo, já que não me lembro exatamente
quando ocorreu, foi dado pela televisão. Ofertado por ela gratuitamente
(?) .
A gente sempre pensa que é bom, mas há um momento em que somos
levados pelo temor. Temor do quê? ... E é perseguido pelo temor.
Eu posso ter ido longe demais, espontaneamente eu cheguei em um lugar, o lugar
do medo. Foi assim que começou: com as imagens.
A minha vida sempre fora normal, como a sociedade chama. Estudei, me formei.
Comprei uma casa e estive noivo por dez anos. Não queria casar.
Um dia estava em frente de casa e tive medo. Um estopim, um medo. Vi uma turma
de jovens se aproximando. Estava com 30 anos. A turma sequer havia reparado
em mim, apenas passavam pela rua. Tive medo. A partir daí esporadicamente
eu passei a temer coisas que eu não temia. Andar a pé durante
a noite, parar de carro no sinal, ser parado por blitz, dar informações
às pessoas na rua, olhar para os lados. O esporádico tornou-se
periódico; o periódico, sucessivo.
O medo é um câncer, a sua mente pára.
Descobri mais tarde, lendo numa revista, que muitas pessoas começam a
temer não porque lhe aconteceram alguma coisa, mas pelo excesso de violência
que passa nos telejornais. As imagens dominando o comportamento psicológico,
provocando no comportamento a excitação do medo. Eu não
contara pra ninguém.
Procurei um psicólogo. O meu diagnóstico dizia que eu estava em
vias da síndrome do pânico. O meu diagnóstico dizia que
era devido a alguma culpa. Culpa... culpa... culpa... culpa...
Culpa de quê? Culpa de quê? Berrei. Não sou culpado por nada.
Sou vítima das imagens. Saí. Prometi voltar. Eu deveria ter voltado,
deveria...
São as imagens ou é a culpa? Tirei férias e passei duas
semanas em um hotel fazenda. Sozinho. Precisava estar só, precisava descobrir.
Então comecei a lembrar das vezes em que tive raiva, do momento que a
memória desengaveta as lembranças até a infância;
e das vezes que falei mal de alguém; e das vezes que traí a namorada;
das vezes que traí um amigo; das vezes que tive preconceito; e pior,
das vezes que fui injusto. Mas tive uma resposta, a mais simples, aquela que
oferece gentilmente redenção: Eu sou humano.
Uma frase vem tão espontânea quanto o é bocejar. Não
me contentei, apesar do alívio. Eu queria descobrir essa culpa sem puxar
pro meu lado a inocência. A inocência desvirtuosa de ser igual a
todos.
Nessas duas semanas pouco descobri. Mas, sentindo-me culpado por não
ter cometido nenhum crime penal, eu tive alívio de temer menos. Me culpei
e ponto final.
Engraçado como as pessoas percebem que os olhos ficam arregalados...
As narinas, a gente percebe a sua movimentação, o seu tato. A
gente percebe também que algumas pessoas têm medo de olhos arregalados.
Parei de ver televisão e procurei evitar qualquer assunto violento. Não
procurei por religiões nem por qualquer outra coisa que estivesse ligada
à luz. Eu só queria parar. Eu nunca imaginei que então,
de mim, de dentro, novas imagens surgiriam. Nunca me foi possível avaliar
qual das imagens era a pior, a que vinha de fora ou a que surgia de algum neurônio
do meu cérebro. O mais engraçado é que os olhos arregalados,
as pessoas notam, mas as imagens de dentro não provocam o mesmo, elas
percorrem por vias cerebrais que acabam na boca e talvez nos dentes... nunca
na voz.
Sim, e eu temia essas imagens mais do que temia o que estava ao meu redor. Eu
temi, porque desconhecia essa capacidade espontânea de, de repente, fazer
parte de uma brincadeira, de um jogo de imagens mortais. Eu temi porque a realidade
estava em duas, e não se pode dizer que eram duas paralelas, ou se eram,
havia uma terceira, transversal às duas: a que dá passagem do
concreto para o imaginário e do imaginário para o concreto. Mas
a imaginação é um todo onde há uma parte em que
se imagina o que existe, o que já se viu; outra que se imagina o que
se quer imaginar; outra que surge sem a gente querer; além de outras
que, graças a Deus, eu ainda desconheço.
Quando eu decidi me culpar achei que acabaria com meu pânico. Realmente
houve uma regressão. Dentro dessa seta voltada ao regresso, eu não
sabia que havia um estopim, outro. Só assim posso chamar, um estopim
de pensamentos imaginários. As pessoas, eu as imaginava na mesma situação
que eu, morrendo de medo. As pessoas, eu imaginava morrendo, morrendo. Aquelas
que me irritavam e aquelas, principalmente aquelas, que me dariam medo. Dos
meus olhos arregalados eu percebi veneno e percebia força. Algumas pessoas
sentiram medo, não de mim, dos meus olhos. E foi a aceitação
da culpa que me fez culpado, a culpa imaginária de poder pensar no que
não se pode. Crime capital: tiro, faca, forca, qualquer tijolo, qualquer
poste caindo na cabeça de quem passasse pela rua... e quem estava em
casa sempre podia ser alvo de uma bala perdida.
Hoje eu descubro que a minha culpa maior não era essa. A minha culpa
era a de ter compactuado com o sistema. A violência que eu via por uma
tela de 25 polegadas entrou e proporcionou a agonia do medo. Essa agonia era
uma faca cortando minhas ideias banais e burguesas de querer ter tudo
o que eu pudesse ter. A violência me incomodou porque não era ficção
e porque eu estava confortável com a vida que tinha. Essa violência
me pediu provas e me deu chances de um dia poder parar na vida e dizer o que
todos sempre dizem: Eu sou humano. Mas não pra dizer com língua
não, pra dizer com cada nervo, e cada glóbulo vermelho, e cada
glóbulo branco e cada vogal que nunca existiu. Você acaba compactuando
com o sistema, espontaneamente.
A violência foi um ponto de interrogação misturado com britadeira.
O cômico está em seguir uma vida normal e criticar os desequilibrados,
mas cada um tem um motivo social para ser assim. Só que nenhuma desculpa
ou nenhuma culpa colocada em qualquer coisa faz retirar da cabeça a agonia,
o medo: as imagens! E uma vez que, espontaneamente, você deixa as imagens
tomarem vida a ponto de respirar e de querer, querer mais do que simplesmente
estar muna caixa chamada imaginação, você simplesmente começa
a fazer parte de um mundo completamente diferente daquele que é normal.
Todas as coisas impossíveis ou que seriam impossíveis, se misturam.
Você acorda de manhã e percebe que nunca houve equilíbrio.
Há culpa em ter julgado o desequilibrado, também. Julgar o que
acontece ou o que acabou de acontecer não é ser histórico.
A história, eu aprendi quando estava no colegial, serve para que não
se cometa os mesmos erros do passado.
Do pânico que eu sentia das pessoas, passei para o pânico de me
descobrir humano. Fui longe demais? Fui, podem dizer, mas fui até onde
a maioria não foi. Não, sou injusto com essa frase, pois a maioria
pode ter ido, pois esse tipo de coisa só é demonstrada pela ficção
e pela tv, que esse tipo de coisa a maioria não mostra, pois sempre está
sorrindo. Disto eu sei, pois achava que fazia parte dessa maioria e nunca ninguém
ousou sonhar que por dentro eu era uma balança em processo de putrefação.
Desde criança eu sempre me preocupei com o cheiro, sempre gostei de cheirar.
O toque no olfato sempre me proporcionou uma inundação de pensamentos.
Eu fui atrás do cheiro da morte.
Eu não queria mais o cheiro da energia elétrica, do lar-doce-lar,
eu queria pelo menos o cheiro daquele suor, foi o máximo que consegui
chegar; antes... Eu tive vontade de ir até lá, onde estavam os
mortos, onde alguém pudesse estar morto, onde há morte. Mas não
pude, porque afinal de contas eu era normal, ainda social, ainda pagava minhas
contas em dia. Eu imaginava o cheiro da morte e imaginava que a casualidade,
talvez, me proporcionasse esse cheiro, pelo menos não seria culpado de
estar onde está a morte.
Se eu pudesse definir a cor da minha pele, eu a definiria cinza. Um cinza pálido
parecido com febre amarela.
Descobrir o que se há em cada ponto que desenha aqueles neurônios
lambuzados e espremidos em pânico, foi o pior. Descobri que atrás
do pânico está uma culpa e extraindo a culpa desvelei a vontade
do cruel.
Então não há cura para o pânico, mas um estremecimento
físico de vontade e medo, ao mesmo tempo, agora e a cada passo dado dentro
da minha própria casa. Algo que a princípio mantive controle.
Como a casualidade não vinha nunca, o imediatismo surtia-me querer.
Novamente fui ao hotel fazenda e, não conseguindo dormir, saí
em direção de qualquer bar. Madrugada e pânico e vontade
de morrer. Pânico de terríveis pensamentos surgidos de uma traição
de você para com você mesmo e pânico das sinaleiras e das
janelas de edifícios... A esta hora alguém pode estar morrendo
e poderia ser eu, a coincidência está em não ser.
Parei num bar de esquina e lá fiquei entre bebida e medo. Minha mão
tremia cada vez que alguém se aproximava, senti ódio, senti ira.
O que me tornava assim? Mas mesmo sabendo nada adiantava, pois assim continuaria,
e todas as noites dormiria com medo do próximo dia, encarando o sol e
os olhos das pessoas e controlando cada vontade de sentir o cheiro do sangue
e carne esfolada. Ao sair do bar um rapaz me pediu carona, foi automático
o sim.
Não posso definir agora se tive mais medo do rapaz ou do que eu poderia
fazer. Estava, então, em choque e, no entanto, sentia pontas de prazer,
como se no banco detrás houvesse um diabo sorrindo. Acontece que possivelmente
eu já era esse diabo, era muita madrugada. O rapaz desceu do carro, coincidentemente
ele iria atravessar a rua. Apertei o acelerador e ouvi o barulho de ossos quebrando.
Senti, não posso negar, enorme prazer, mas a boca não sorria,
os olhos, estes gozavam. Passei mais uma vez por cima daquilo que já
era carne arregaçada em óleo de sangue, asfalto e sereno. Parei
o carro e arrastei aquela mistura de gente para um beco que coincidentemente
estava perto. Agora eu sabia qual era o cheiro da morte e sua mistura com a
noite. Pareceu uma eternidade a apreciação do olfato, vi que o
céu estava cada vez mais belo. Eu poderia ficar ali até que morresse,
poderia ficar ali sentindo deliciosamente todas as etapas da putrefação
humana.
Entrei no carro e segui para casa. Meu corpo suava e não tomei banho,
este suor eu queria guardar. Sentia, desde o princípio, um poder maior
que o Inferno e maior que os milésimos de segundos. Naquele momento eu
sabia que era verdadeiramente culpado, mas sentia-me absolutamente redimido.
Agora faltava-me apreciar o cheiro do sol em dia de festa de horror.
Fui trabalhar normalmente. Os dias seguiram e ninguém veio à minha
procura. Ninguém coincidentemente viu. Pensei que da próxima vez
não tivesse tanta sorte. Comecei a planejar, comecei a imaginar todos,
todos morrendo. Cada um que eu amava e cada um que fosse indiferente. Agora
o pânico sumia. Eu estava completo em mim. Extasiado no equilíbrio
da morte.
Minha segunda vítima não era vítima, era mais uma notícia
de televisão. Arrastei com praticidade aquela senhora, foi apenas o instante
de adormecê-la com formol. Fiquei apreciando seu sono deitada no meio
do quintal. Era um dia maravilhoso, o sol estava em seu auge quando lhe amassei
o crânio com um pedaço de pedra. Deitei ao seu lado, fechei os
olhos e saboreei mais uma vez o cheiro. A mulher estremeceu ainda por alguns
segundos. Duplamente culpado, imensamente satisfeito.
Agora vocês me olham como se eu fosse anormal. Como se nenhum de vocês
tivesse, um dia, desejado qualquer coisa mórbida. Mas percebem que quando
falo, sinto prazer. Vocês quando sentem o cheiro do terror estremecem
e logo fogem. Porque o temor pode vir da culpa, às vezes do prazer escondido,
trancado amargamente em qualquer neurônio inutilizado. Vocês fogem
desse neurônio e vivem como coitados. É irônico, não
é? Muitos rezam pedindo salvação ou fazem discurso de justiça
e moral. Por quê? Porque sei e sinto que guardam a vontade, que guardam
a risada satânica e acham que podem esquecê-la se culpando. Se assim
não fosse, por que haveriam de procurar salvação? Aliás,
não são vocês todos normais? Agora estou aqui no banco dos
réus, mas vocês não sabem, fingem não saber, e também
estão. Vocês me acusarão porque fui sincero e tive prazer
que nenhum aqui jamais ousou ter. Porque o pânico começa da covardia.
O pânico começa quando aprendemos a falar e quando embalamos no
colo toda criança inocente. Eu olho pra vocês e posso intimamente
gargalhar e relembrar que o efêmero me fez eterno. Olho pra vocês
que nunca sentiram o cheiro precioso com vontade e me pergunto quantos não
gostariam de estar no meu lugar.
Vocês deixaram que me filmassem e estou sendo imagem... Tenho saudades
do começo e sentirei falta de vocês que, com os olhos arregalados,
não perceberam ainda o cheiro do sangue que escorre vagaroso por meus
pulsos.
Vejam!
É tarde pra fugir. Até que me levem, o cheiro impregnará
cada olfato e, daqui, alguém sairá com vontade de mais.