Existe em mim um critério do alucinação perdido entre
aspas. Ter em mãos um caneta é ter em mãos uma faca, com
a vantagem de poder transformá-la do que eu quiser, de poder tê-la
como eu quiser, qualquer formato, qualquer motivo.
Por que uma faca? Simples, por ser o objeto que mais me atrai. Por ser, a fica,
o instrumento que torna possível a concretização das minhas
imagens. Mas, impossível de ter a faca em mãos, eu descobri que
a caneta provoca prazer similar.
Lá fora as pessoas continuam cometendo erros, eu posso estar trancado
entre quatro paredes. Os erros persistem? Não posso discernir sobre isso...
no entanto fisicamente nada posso fazer de oral, estou impraticável.
Debruçar nas sensações físicas, talvez só
pelo papel, mas não posso distinguir se já é o ato de escrever
que me provoca imagens e sensações de prazer ou se são
estas que me provocam a escrita. Há ulna mistura de sensações
físicas a mentais, prazeres que não passam da cela da prisão.
Quando cheguei aqui estava em um estado de total indiferença, uma indiferença
mórbida, é claro. Colocaram-me na frente de um psicólogo
a não pude falar nada, não que eu não conseguisse, mas
porque falando eu desistiria de mim pra entrar num processo de cura (pontos
de interrogação). Por que eu deveria me curar? Não, nunca
acreditei que o ser humano pudesse ser curado por fatores externos direcionados
especialmente para ele. A seta é oposta a cíclica, nada se cura,
tudo é pura repetição.
Pelo fato de ser graduado recebi cela especial. Passei ainda alguns meses nesse
estado de indiferença, aquele espaço vazio que fica ao lado do
verso de uma poesia, onde não há pontos finais. Talvez eu a veja
assim por nunca ter compreendido esse espaço, sei que ele não
expressa o vazio; e, sem pontuação, o que mais poderia expressar
senão a indiferença? Mas se não for, alguma coisa então
ele diz que não percebo, que não escuto.
Ouço comentários ferinos por parte das pessoas que vivem aqui.
Eu prefiro ficar calado. Muitas vezes sinto como se estivesse numa clínica
de repouso, nada mais. Lá fora, o caos. Aqui dentro, eu. Dentro de mim,
o caos também. Percebo que não é a influência das
grades a nem vestígios do passado que revela o caos constante. É
minha própria natureza. Eu sou humano a isso é óbvio, mas
ninguém vê, pois do alto somos todos indubitavelmente pontos finais,
fechados, herméticos, formando retas. Do alto ninguém me vê.
Tenho essa sorte de não ser visto por estar numa caixinha de surpresa.
Lembro-me de quando estudava a diziam alguns que só a dúvida é
capaz de desenvolver o raciocínio crítico e analítico a
era capaz de incitar novas descobertas. Ao mesmo tempo acredito que sem as duvidas
seríamos muito mais felizes, estaríamos em paz a ainda seríamos
índios, a ate canibais, faríamos parte de leis a sistemas não
oficiais, mas continuaríamos humanos a ainda assim seriamos puros, mesmo
se arrasássemos uma tribo vizinha.
Não olho para o sol quando ele brilha, pois o sol é pior que uma
faca a nunca pode ser tirado do lugar. O sol que ainda é bom tomar-se?á
cruel. É assim que começa em todos, quando deixamos que a proteção
se destrua por falta de amor próprio ou já por ter usufruído
a gozado tudo o que possa existir.
As pessoas buscam o novo pela não repetição. Aqui há
repetição. Todos os dias parecem iguais, mas basta que eu vire
a cadeira de cabeça para baixo para que tudo se tome diferente e, por
isso, não posso dizer que é ruim estar aqui. Faz tempo que não
me olho no espelho a tenho medo de não me reconhecer. É o único
medo que terei ao sair daqui.
O psicólogo voltou mais vezes. Ele tinha paciência, talvez porque
comigo ele tinha um espaço para pensar na vida ou em qualquer coisa,
ou talvez me analisasse pelo meu silêncio, ou quem sabe fosse daqueles
psicólogos que conseguem nos analisar pela expressão corporal.
Não, ele não era desses, ele era iniciante a acendia um cigarro
a olhava para as grades.
É difícil assimilar coerência, pois a coerência perde
seu valor. Não preciso ser acadêmico, nem profissional, nem social.
Estou aqui a estou escrevendo a isso me basta em satisfação.
Volto às imagens sem concentração, pois fazem parte de
mim sem que estejam guardadas em gavetas mentais, estão espalhadas naquele
escuro de fechar de olhos. Não posso dizer que elas se projetam no papel,
elas mudam de linguagem, é nessa mudança que está o gozo,
mudar de linguagem... mudar de linguagem...
Após meu estado de indiferença não senti raiva, mas estava
preso, preso pelo desejo de praticar novamente o crime. Sim, sou um criminoso,
no entanto, sinto-me. Não foi o papel que escolhi, mas com esse papel
me enquadro na sociedade quando a chamam de caótica.
O desejo era um só, realizar a morte, a era um desejo humano, pois sempre
foi cético. Não quero falar de como tudo começou, quero
falar do agora, do agora que percebo que só poderia descobrir outro prazer
por ter cometido o crime. Posso, então, dizer que cometi o acerto de
não ter premeditado nada, de não ter sido maquiavélico,
de ter me oferecido puramente ao desejo naquele momento em que peguei uma faca
a saí correndo pelas escadas do prédio, não podia esperar
pelo elevador a corri ate um beco arrastando um ser humano, não me importava
o sexo, a idade ou a cor, era um ser humano a foi mais de três facadas
até que a polícia, ouvindo os gritos, chegou deparando-se com
um beco que reluzia vermelho, com um morto que reluzia imprevisto e comigo e
a faca que juntos reluzíamos satisfação.
Foi isso e foi só um.
O sol é fator externo à Terra, mas contido no mesmo sistema. Assim
aquela faca ultrapassou aos poucos minha camada, aquela que chamamos sanidade,
consciência. Pois em mim a fantasia quis tornar-se praticável.
A ponta da faca brilhava mais a mais sorria quanto mais o querer corroia minha
proteção. Todo prévio prazer era anulado pelo desejo de
se fazer real o que me habitava.
Não podendo mais praticar nenhum desejo, sofri. As grades são
inteiramente cruéis, mas verberam para a alma algo mais poderoso que
o efêmero, pois elas guardam.
Com o tempo fui descobrindo que os monstros não se tornam melhores ou
piores, não há escola de criminosos, como dizem, há o instinto.
Ficam guardados ódio, vingança, desespero, onde tudo o que não
é virtude já está no ápice e assim prossegue. Há
aqueles que se matam.
Sofri de raiva a não poderia me considerar louco. Ora, eu sempre tive
consciência de cada ato. Nunca poderei dizer; como não disse no
tribunal, que agi de puro instinto, sem pensar. Não há instinto
animal, há instinto humano que é guiado pelo desejo, o desejo
por sua vez criado a partir de nós mesmos. Se alguém fala em instinto
animal está absolutamente enganado, a palavra animal induz um bicho a
bicho é o que menos somos. Apenas não queremos aceitar nossa culpa,
a nos disfarçar com pele de leão parece mais apropriado à
salvação. Esta que nunca existiu a nunca existirá.
Agora imagino uma faca perfurando docemente a pele de algum, que pode ser qualquer
um, não quero nítido, quero assim, pêlo, pele, músculos,
ossos, órgãos vitais. E perfura, só que o som do perfurar
fica seco pelo gemido da vítima. É raiva então quando quero
matar para que se pare o gemido a se prossiga a doce risada da perfuração.
O fim parece óbvio, sangue escorrendo pelas bordas do corpo, pálpebras
fechadas sobre os olhos ainda arregalados de pavor. Deixo o corpo caído
dentro de um cinzeiro a saio confiante, gargalhante... são.
Vejo agora como as grades se abrem trazendo o cheiro de gente que já
morreu no corredor. Sim, é o corredor perfeito lugar para outro crime.
Alguém rebola ouvindo qualquer coisa anormal, está no corredor
segurando as grades e sorri para mim com volúpia. A volúpia assexuada
da eutanásia. Ela é doente porque rebola. Somos todos doentes
afinal, e quando procuramos alívio com um tiro na cabeça chamam
suicídio, eu chamo eutanásia. Só que desta vez é
um pequeno punhal dourado, comprado no Himalaia, eu amarro um pano em sua cintura,
branco com motivos de exclamação. Alguém quer morrer, alguém
morrerá. Morrerá com prazer, pois seus olhos, em vez de pavor,
irão se deparar com o suave do esquecimento total. E alguém se
entrega a antes de tudo beija o chão que pisa, não abre os braços
ao punhal, quer morrer como se fosse vítima porque é covarde.
Eu coloco com força o punhal em seu umbigo a coloco com força
maior em seu braço direito. Paro para ver seus olhos, são azuis
a estão felizes. Mais ulna vez no peito a mais uma vez como ponto final.
Não há barulho de gemido algum a eu posso ouvir sonoramente o
barulhinho da carne perfurada, posso ouvir mais, corredores fazem ecos. Eu faço
barulho, mas ninguém me ouve.
O desejo nunca é anulado pela raiva. Eu queria expor cada miligrama de
sangue a carne morta. Comecei a ler os livros que minha irmã mandava.
Era uma maneira de passar o tempo, mas o tempo que se passa por fora, sempre
fora diferente do tempo que se passa no centro dos olhos, então não
me bastava. Lendo, tive a ideia de começar a escrever. Os livros
que eu lia, que importância tinham? Maior e mais prazeroso é o
imaginário. Após dois amos dentro de uma prisão pude finalmente
pegar uma caneta na mão. Me trouxeram papéis a caneta, muitas.
Aos poucos fui descobrindo o prazer, não só de cada imagem, cada
gozo era também, como o é, uma palavra, um verbo, que seja, de
dor.
As primeiras coisas que escrevi joguei fora. Nada me valiam porque misturavam-se
com a emoção. A emoção não pode vir misturada,
deve estar vinculada a só uma emoção, o prazer; a só
um instinto físico, o de sorrir. Extrapolamento, gargalhar, gargalhar,
gargalhar. Agora eu tinha o poder e era completamente livre em meu próprio
tempo. O dia era nada, assim como a noite, a as horas... as horas só
passam do lado de fora, sem que me toquem. As horas deixam de ser aquelas linhas
circulares a passam a ser retas completamente apagadas.
Cada imagem que me fazia, que me continha, eu passei a descrever. Num instante
eu degustava deitado na cama cada gozo de facada, cada ápice de silêncio,
cada raiva de gemido. Parava a logo retomava, cena por cena, colocando no papel,
satisfazendo o desejo, absolutamente permitido por mim, de matar. Mais tarde
já não era só a descrição, mas, como mais
pulava em minha mente as imagens lascivas de sangue, pus a manipular a linguagem
das palavras. Levado ao papel percebi o quanto essas linhas arbitrárias
de vogais a consoantes me seduziam a me levavam ao ápice maior de desenvolver
outros crimes.
Restam-me agora duas horas. Eu gostaria de morrer aqui, aqui dentro de mim.
Restam-me agora essas horas, malditas, que se impõem ao homem perturbando
seu sono e seu discernimento no êxtase da irrealidade. É possível
que eu não use mais faca, mas posso entendê-la muito mais perfeitamente
do que qualquer outro. Tenho pilhas de papéis no chão, pilhas
de desejos. Estive guardado e, como já disse, estou numa caixinha de
surpresa... Duas horas para abri-la. Duas horas para que eu dê um passo
no corredor a saia andando indiferente aos berros dos presos que ficarão.
Realmente já não sei mais, mas acredito que com as grades abertas
serei jogado numa realidade abstrata, completamente tão abstrata quanto
o que se passa de rosa a azul na cabeça de cada um. Confuso? Não
acho, eu tenho a certeza que vivi a minha realidade foi, em sensação,
igual a de qualquer outro. Já não sei o quanto matar alguém
é verdadeiro, já não faz diferença. Se igualam em
gozo, os meus crimes a os que não acompanhei pelo jornal. Vivendo aqui
ou lá, matando aqui ou lá, é a mesma coisa. Os dias que
passei sem horas foram iguais aos de todos a aos dos animais, a foram iguais
raiva, ódio, desejo a cumplicidade. Vivemos num mundo abstrato, pois
nem nós sabemos se não somos imagens a fantasias de alguém
maior.