Felipe estava sentado na cama quando ouviu o barulho da campainha. Estava de
mau-humor, pensou em não atender, mas levantou-se envolto ao lençol
e abriu a porta. Júlia sorria, pediu para entrar. Percebeu que não
era bem-vinda, mas persistiu na sua falta de bom-senso.
Sentaram-se, um ao lado do outro, no sofá da sala. Os dois mudos. Felipe
queria gritar. Júlia queria chorar. Eram irmãos, não tinham
nada para falar, nem perguntar como vai. Ouvia-se o rádio ligado no quarto,
ouvia-se a música. Aquela música algo inspirava, ambos levantaram-se,
quase ao mesmo tempo.
Não, não desligue o rádio. Deixe que toque.
- Eu sei, lhe dá prazer.
O que mais poderia me dar?
- Nós nos destruímos.
- Continuamos vivos, não?
- Você chama isso de vida? Trancados em nossas casas!?
- Estou aqui com você.
- Vou desligar.
- Não!
- A sua frieza supera qualquer sentimento.
- Não sou fria, sou humana.
- Nem por isso devemos cometer erros.
- Você chama aquilo de erro?
- Então não foi?! Foi o quê? Um bem à humanidade? Um
simples momento de loucura? Sim! deveríamos estar loucos.
- Não! Pare com isso! Esta ironia nada ajudará...
- Ajudar? Quem disse que precisamos de ajuda?
- Devemos suportar a música, devemos suportar a vida.
- Então se arrependeu?
- Não.
- Olha, não temos nada a falar um com o outro.
- Temos sim. Fizemos juntos.
- Prometi que não falaria mais contigo e você prometeu não
aparecer.
- Somos irmãos. Eu andei pensando...
- Pensando em quê? Quem sabe queria fazer de novo? !
- Não!
- Não grite.
- Nós nos precisamos. Sabemos demais.
- Esta foi a superioridade que nos restou?
- Não pense assim, eu vim pra dizer que...
Os olhos de Júlia não aguentavam mais e suas lágrimas
caíram impedindo-a de falar. Felipe acendeu um cigarro. A música
havia parado a resolveu desligar o rádio. Agora restava o silêncio,
cortado pelos soluços de Júlia. Felipe quis abraçá-la
e dizer que estava ali, mas não podia. Como daria paz à sua irmã?
Como conseguiria paz para si mesmo? Júlia parou de chorar.
- Vim pra lhe dizer que estou com medo.
- Medo? Como assim?
- Tenho medo, Felipe.
- Ninguém descobrirá. Fique calma.
- Não é isso. Tenho medo, mas não posso falar de quê.
- Por quê?
- Você não entenderia... me expulsaria daqui. Acho que estou ficando
louca.
-É disso que tem medo?
- Estou louca sim. Tenho medo porque quero... Sinto vontade, entende?
- Não ouso entender sua vontade. É melhor parar. Não quero
ouvir o que tem a dizer.
- Então você sabe? Você já entendeu.
- Não podemos! ! !
- O quê? Eu ouvi. Você disse "não podemos" ? sim,
você disse. Então você também...
-É melhor você ir.
- Deixa eu dormir aqui contigo, por favor.
- Não. Saia agora.
- Eu vendi tudo, estou só com o carro. Penso em vendê-lo também.
Estou sem lugar..
- Procura um hotel.
- ... Eu vendi para podermos ficar juntos.
- Se ficarmos juntos acontecerá de novo, não posso permitir...
- Já estamos na lama e viveremos sempre com a lama em nossa memória.
- Passaram quantos meses?
- Cinco.
- Faz isso tudo que não nos vemos?
-É.
- Eu deixo você ficar. Mas não toquemos naquele assunto, mesmo sabendo
que pensamos nele o tempo inteiro.
- Só ficaremos fortes assim, juntos.
- Nunca seremos fortes.
- Amanhã, se você quiser, eu vou embora. Hoje eu realmente preciso
de você.
- Vou fazer urn café.
Enquanto Felipe fazia cafe, Júlia tirou da bolsa um CD, música clássica,
e colocou no aparelho da sala. Os dois ficaram novamente mudos. Pensavam diluindo-se
no passado. Tinham feito tudo a com prazer, porém o prazer acabara. Restaram-se
em diagonais desequilibradas, vivendo de migalhas do passado, aquele que já
fora melhor e aquele que os transformara em festa acabada.
Sem dúvida não havia o mais ou o menos equilibrado entre os dois.
Estavam ambos desmoronados, no entanto cada um sendo levado por caminhos diferentes.
Adormeceram abraçados no tapete da sala. Apesar de um instigar o passado
do outro, de um instigar a fome do outro, o abismo e os etcs. Apenas eles se compreendiam,
ou mesmo que não fosse compreensão, que fosse alívio, se
é que existia alívio para suas dores, então que fosse cumplicidade.
Pela primeira vez tiveram uma noite tranquila, depois de cinco tortuosos
meses.
Júlia acordou tom um tiro. Levantou-se violentamente, desesperada. Abriu
a porta do quarto do irmão encontrando-o morto. Gritou! Gritou alto até
enrouquecer a voz. Calou-se, sentada no chão embaçado de sangue.
Após alguns minutos, levantou-se e pegou um bilhete que estava em cima
da cama. Com letras trêmulas o bilhete dizia: "Nada é preciso
dizer. Beijos, Felipe". Foi até a sala, tirou um lenço da bolsa,
voltou ao quarto a pegou a arma caída no chão. Havia mais uma bala,
uma única bala poderia dar fim à sua história, também.
Foi até o banheiro e jogou a arma na privada. Recompôs o corpo com
firmeza, pegou a chave do carro a saiu.
Agora tudo girava. O ar contorcia, vomitava. O sopro do ar que entrava pela janela.
O sopro da morte. Júlia gritou, suas mãos trêmulas mal conseguiam
segurar o volante. Estava aflita. Estava possuída. 80 km/h, 85, 90, 95,
100, o descontrole absoluto, 120, 140. A autoestrada vazia. O "zum"
do vento pela janela. O ar, o céu agonia. A face congelada. Júlia...
o carro, angústia.
- Felipe está morto. Estou viva! Estou viva! Estou... o carro está!
O céu está morto!
Quando viu já era tarde demais. Ouviu o barulho. Acabava de atropelar alguém.
Não queria parar. Não podia parar! Poria fim a tudo. Qualquer um
que aparecesse teria fim. Qualquer um no caminho encontraria o fim. Foi rápido
demais, o tiro, alguém que atravessava. Tudo rápido demais. Tudo
que é rapido tem o hálito da morte. Júlia parou.
Saiu do carro. Acendeu um cigarro. Estava sombrio o dia. Será que morreu?
Voltaria pra ver? Acabara de atropelar alguém. O irmão sim estava
morto. Ela estava viva. Viva, aflita, quase morta. Não podia ser tão
rápida, tão acelerada. Todo sentido não tinha mais direção.
Tinha uma, a morte. E tinha a morte sem a supremacia de outrora. Sentiu a morte
como saída. Foi a saída de Felipe. Ele parecia tão calmo.
Ele parecia querer vida? Não, teve medo. Medo de sentir novamente, o prazer...
o prazer que ambos tiveram. O prazer trouxe o caos. Trouxe tudo, menos vida. A
busca insaciável da realização... o prazer. O cigarro estava
no fim, sutil fumaça, doce prazer. A palavra se repetia. Haveria prazer
no ato da morte? Felipe teve medo de querer matar novamente. Ela teve vontade.
Ele matou novamente. Ela não sabia se o cara estava morto. O último
prazer ele teve, ela não.
Faziam aniversário no mesmo dia, mas não eram gêmeos. Ela
era três anos mais velha. Ele morreu com 26. Quando, há dez anos,
fizeram aniversário, decidiram ir em busca de todo prazer. Estavam decididos
a aceitá-lo da maneira que fosse, o prazer.
Vinham de uma família rica e quando seus pais morreram ficaram mais ricos
por causa dos inúmeros seguros. Investiram em restaurantes e bares. Tinham
dinheiro, este era o aspecto principal para que obtivessem todo a qualquer tipo
de prazer. Assim foi, sexo de todas as maneiras, de todas as formas, com os mais
variados tipos, dos mais variados tipos. Quando Júlia fez 24 transou com
Felipe, continuando sóbrios. Álcool, drogas, tiveram tudo. Faltava
apenas um prazer, único, e talvez para este não estivessem tão
estruturados. Pensaram que sim, afinal seria tão fácil, já
haviam feito do mais proibido, e, mesmo tendo feito tudo o que fizeram, eram tão
felizes. Afinal, o prazer havia lhes dado poder. Os demônios que extravasaram
haviam lhes dado o poder. Poder de sorrir depois da indecência, poder gargalhar
depois do imoral. Depois que as drogas passavam, poder gargalhar!
O último prazer seria o último prazer? Que fosse o último,
entraria para coleção. A coleção estaria completa.
No entanto...
Armaram tudo, o crime perfeito. Uma vítima para cada um. Ninguém
soube, ninguém desconfiou e estavam livres. Quando Júlia deu a primeira
facada, sentiu êxtase, entrou no ápice, o ápice do prazer,
continuando com as facadas até o fim, até que o corpo do cadáver,
já cadáver, morresse mais. Ao seu lado, via que o irmão sentia
a mesma coisa, sentia o mesmo ápice, sentia com sua poderosa fúria
masculina o mesmo intenso e absoluto prazer.
Júlia entrou no carro quando o segundo cigarro terminou, deu meia-volta
e seguiu em direção da casa do irmão, vagarosamente voltava...
Não, após o crime não estavam completamente livres. No outro
dia, olhando um para o outro, sentiram que o último prazer, o que deveria
trazer o imenso poder, a gargalhada mais faiscante, trouxe a culpa. Por quê?
Se perguntava. Por que justamente naquele precioso momento suas forças
traíam-lhes? Por que, ao invés do estourar gostoso de seus poros,
sentiam o peso? Chegaram ao fim e o fim não podia ser aquilo. O fim não
podia ser tão vazio e este vazio não podia ser tão pesado,
tão sórdido. Beijaram um último beijo de despedida cru. Decidiram
não se falar mais.
Ao passar pelo lugar que atropelara o indivíduo, viu uma aglomeração
de gente, a gritos revoltosos, a choros de angústia. Teriam sentido assim,
os pais das duas vítimas? Colocou uma fita pra tocar, era a música
do dia anterior, a música do dia em que completararn a coleção...
a música tocava tão lenta quanto era lenta a velocidade do carro,
quanto era lenta a atmosfera do céu, quanto estavam lentos os olhos de
Júlia.
Durante os cinco meses em que estavam separados, a força que tinham sentido
dentro de si agora destruía cada passo que davam. Os demônios agora
estavam contra eles. Por quê? Perguntavam-se. Por quê? E mesmo o desejo
de que aquilo acabasse, saísse de suas cabeças, não existia.
Haviam morrido? Não era pra ser assim. O poder da morte deveria ter sido
o maior, o último degrau, o ápice eterno da euforia. Fugiram da
culpa trancados em casa, fugiram dos olhos de todos. Somente ao ouvir aquela música
sentiam prazer, mas quando esta acabava o prazer sumia, voltando a dor, o peso.
Talvez se fizessem novamente... ambos sabiam que tinham vontade... Foi quando
Júlia procurou Felipe.
Júlia desceu do carro. Entrou em casa, foi até o quarto do irmão.
Beijou-o, agarrou-se a ele, beijou seu pescoço, sua boca infinitamente,
seus dentes, seus olhos, seus ombros, seu corpo.
Enxergaram mal, o último prazer ainda faltava para ela. A vontade de matar
novamente ele satisfez, sem temer o hálito da desgraça novamente
na cabeça. Júlia foi ao banheiro, tirou uma gilete de um velho aparelho
de barbear, com força cortaria. Fez dois rasgos no pulso direito. Deitou-se
agarrada ao irmão.
Instantes antes da morte, Júlia sorriu.