No departamento de vendas, da editora por onde passara, o pessoal escrevia
textos, cada vez piores, não lhes convinha interpretar sussurros ou recorrer
a dicionários. Esta falta de cuidado, fazia com que, o seu trabalho pessoal
fosse solicitado, com mais frequência pelos autores sem braços.
A luminária verde permanecia simples na escrivaninha acesa. Meditativamente
arrumada, a desordem recendia de fumo o breu e os incensos acentuavam o cheio
de mofo, que no piso úmido assentava móveis antigos. A lâmpada
esfarelada encerrava no semicírculo do sono, olhos estreitos.
Inescrupulosamente o sono lhe preparava a cama, antes que houvesse do tempo,
o necessário para se desvencilhar dos penúltimos capítulos,
que tomavam de seus óculos, o que já não tinham, depois
de terem lido horas a fio, sem descanso.
Anastácia passava noites insone, percorrendo páginas infindáveis,
dos manuscritos que lhe eram endereçados. O início da era difícil
precipitava a escalada diária de uma jornada tênue, resolvera escrever
para ganhar a vida, preparava e revisava textos para publicação.
Ainda que a casa discreta fosse pequena, assegurava o compromisso de manter
o sigilo entre os pretensos escritores e seus fantasmas criativos. A penumbra
incestuosa lhe penetrava surdamente os ouvidos atentos, e para além dos
túmulos, debruçada, esmiuçava vozes passageiras.
Se ausentava por dias até, ajoelhada em dissertações, ensaiando
a trajetória inconsútil de passos descalços em sua varanda,
os espíritos permeavam o monólogo entrecortado por frases e travessões.
- Porque tu pensas ser fácil adentrar pelas têmporas frágeis
destes vacilantes neurônios honorários, e ainda te manter acordada
Anastácia, neste meu trabalho fúnebre de calabouço, e que
mal dá para pagar teu aluguel...
- Oh, companheira - respondia Anastácia - Não pretendia despertar
seus preâmbulos antes do amanhecer, mas no crepúsculo, talvez por
esmero, as ideias a mim pareçam mais claras - e antes de esboçar
um breve adeus, era de súbito interrompida.
- Nada me impede, descarada de ser tua amiga, o que me aborrece é esta
tua mania de jogar conversa fora com estas palavrinhas desempregadas, sempre
a procurar nas entrelinhas, alguma serventia. E antes de se despedir, perscrutava
o gélido aval de sua interlocutora e se ia por frestas.
Enfim, transpassados pela tinta sempre fresca das canetas, via descer por escadas
reluzentes, frases soltas. Desabotoadas de um tempo que já não
existia, os indizíveis sermões da idade média permaneciam
escondidos no líquen das ideias mortas. E anedotas atordoadas
tilintavam eternas, na esperança de se verem livres do papel, de prestar
a alguém um serviço ignóbil, destravar dos manifestos épicos
a picardia do talento.