De manhã, "CORREIO 8549", identificava o ônibus lotado,
tanta gente que vai e vem e cada qual com seu destino, suas necessidade e seus
compromissos, antes de entrar, atrazo a condução para dar tempo
a todos que pretendem cumprir seus horários. Subindo as escadas, o motorista
ainda sonolento acelera o carro e partimos, numa quarta feira chuvosa, de silhueta
triste, onde os olhares daqueles que aguardam completar seu percurso se perdem
em meio a água e a fumaça produzida pelo grande número
de carros parados em um novo, porém não surpreendente engarrafamento,
o sinônimo de chuva em São Paulo.
"R$ 2,30" acima da cabeça do cobrador, era a identificação
do valor da passagem, atravessei com os pés molhados para a parte de
traz do ônibus seguido por alguns. Não há mais acentos vazios,
em pé pode-se ver como lentamente os automóveis deslizam no asfalto
enquanto as motos parecem somente uma lembrança, a chuva escorrendo pela
janela e nem um raio de sol, nenhum sequer para amenizar o semblante desesperador
dos passageiros cansados, sonolentos e apressados, contradição
adicionada aos valores brasileiros, principalmente os paulistanos.
Uma hora e meia de viagem. "Porque ainda estamos parados?", repercutia
dentro do veículo vindo em especial de uma senhora sentada do lado oposto
ao cobrador, inconformada com a lentidão daquele trânsito que não
parecia ceder espaço para locomoção. Descem os primeiros
passageiros - ainda bem distantes de seus destinos mas já totalmente
fora de seus prazos, afinal, em um dia comum, esta viagem duraria no máximo
cinquenta minutos - deixando vagos alguns acentos logo ocupados por aqueles
que ainda ansiavam cumprir seus objetivos. Celulares tocam e cobranças
diversas são feitas àqueles que ficaram presos no tempo, presos
nas ruas, presos no caminho; assim como as cobranças, as respostas eram
inúmeras, muitas eram falsas, não se sabe para encobrir a culpa
de quem, "empresta o seu celular...", uma voz já gasta pela
idade precisa falar com alguém e laços dentre os poucos que sobraram
naquele ônibus começam a se estreitar.
Duas Horas e meia de viagem. O casulo em que cada passageiro se trancava rompe
lentamente com a ajuda daqueles já libertos, mais vozes e cada vez mais
altas começam a discutir todo tipo de assunto, desde o planejamento das
ruas de São Paulo até a matéria do Fantástico do
Último domingo, pessoas vão se afeiçoando umas às
outras e criando algumas relações. A senhora inconformada já
nem se recordava de que estava a caminho de algum lugar e preferiu, junta a
uma companheira de idade próxima, ou até superior, fazer uma ginástica
de terceira idade, imitando alguns animais e se pendurando no apoio superior
do ônibus para alongar os músculos franzinos, algumas relações
de maior nível já dialogavam sobre assuntos de interesse próprio:
"...onde você trabalha tem vaga?? Nossa, estou desesperado pois não
trabalho a três meses e o que está me sustentando é o seguro
desemprego, tenho uma mulher e um filho para criar...". Vários outros
desabafos, diálogos, gargalhadas e conversas fiadas eram deixadas ao
léu por todos aqueles companheiros de viagem, olhei para a garota sentada
ao meu lado que já descontraída sorria, de repente um beijo, é,
um beijo, a boca molhada demonstrava medo e desejo e o momento incomum, porém
propício só aumentava os limites da fantasia daquela viagem.
O envolvimento e algazarra não paravam de aumentar e era possível
notar um certo brilho de contentamento dentro daquela condução
mesmo em meio a tanta gente irritada e atrazada. O farol; era ele que nos atrazava
e o alcançamos, depois dele um acelerado andar continua a levar os restantes
para seu destino. Três horas e meia. Dou o sinal, desço do ônibus
e o vejo ir, distante me lembro do beijo, olho pra frente e não sou mais
levado por um condutor, levanto a cabeça e sigo em frente para mais uma
quarta feira de trabalho.