A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O mestre dos ventos

(Bruno Ropf)

Aparentemente a aula de fonética havia começado...

O professor, homem de meia idade, corpulento e dono de possante voz, iniciava a exposição sobre o papel das vogais e consoantes.

Seria mais uma daquelas enfadonhas aulas e a turma

se esforçava para ouvir todos aqueles comentários técnicos estéreis, descrevendo cada parte do aparelho fonador.

Havia cartazes explicando o funcionamento da língua, da úvula, do palato, dos lábios, quando os fonemas eram pronunciados.

Nada daquilo parecia fazer o menor sentido: vogais, semivogais, consoantes bilabiais, fricativas, vibrantes, laterais e daí em diante. Para a maioria, no primeiro ano do segundo grau, as preocupações eram bem outras. Os rapazes pensavam nas meninas e elas neles, o tempo todo. Além disso os esportes, farras e vadiagem eram, é claro, muito mais importantes.

- Mas... a aula - apenas aparentemente - começara.

O talentoso mestre aborrecera de propósito os ouvidos e olhos da jovem assistência.

Após uns bons quinze minutos de considerações insípidas, a poderosa voz do educador grandalhão inundou a sala com pura filosofia e vibrante poesia. Falava como Moisés pleno da visão que tivera no alto do Sinai, exprobrando os hebreus descrentes.

- Vogais, meus caros, são sons livres. Livres como gritos de profunda mágoa e dor. São livres como os pensamentos e as aves...

- Consoantes são sons que se esforçam para impedir a liberdade das vogais. São, todavia, necessários, pois os pássaros necessitam de galhos para pousar e ninhos onde possam abrigar-se. Da disputa entre vogais e consoantes surge, portanto, a fala.

- Quando o ar se põe em movimento, encontra passagem entre as montanhas, levanta a poeira do chão, infla as velas dos barcos, extingue ou aviva chamas desprotegidas.

- Apenas as vogais nascem livres, os outros sons lhes têm profunda inveja. Tentam em vão libertar-se, porém só conseguem acompanhá-las, segui-las bem de perto e - se elas permitirem - soar com elas, consonar...

- Por isso são CONSOANTES!

Àquela altura pairava o mais solene e monástico silêncio...

A respiração era lenta, suave, ninguém ousava mover um músculo. Os olhos e ouvidos a princípio apáticos e impacientes, foram sendo, aos poucos, dominados pela força e beleza daquele discurso magistral.

Após breve pausa, suficiente para avaliar o impacto da lição, o professor concluiu, com brilho e serenidade: " As folhas enchem de ff as vogais do vento ". ( Mário Quintana )

- FFFFFÚÚÚÚÚÚÚÚÚFFFÚÚÚÚÚÚFFFFFFFFFÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚ...

Emitiu um longo sopro através das mãos, colocadas em forma de concha, à frente da boca. Repetiu ainda uma vez: FFFFFFFÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚFFFÚÚÚÚFFÚÚÚÚ.

- Entenderam ?

A aula permaneceria para sempre.

O mestre dos ventos sabia mesmo ensinar.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br