"Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!" - Beethoven
"[...] Acreditamos todos que é impensável que o amor
de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa imponderável; achamos
que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria
nossa vida. Convencemo-nos de que Beethoven em pessoa, triste e de cabelos revoltos,
toca seu "Es muss sein!" para nosso grande amor [...] chegou a conclusão
de que a história de amor de sua vida não estava colada sobre
"Es muss sein!", mas antes sobre "Es könnte auch anders
sein": isso poderia muito bem ter acontecido de outra maneira."
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER - Milan Kundera
I
Sabrina passou longos anos viajando, conheceu pessoas, culturas, línguas.
Fotografava em sua mente todas suas impressões que expressava em telas
que nunca guardava, que não vendia. Seus quadros-retratos eram deixados
em cada quarto que abrigava seu cavalete, suas tintas e pincéis.
Quando saiu de sua pacata cidade jurou nunca mais voltar. Iria sempre a Oeste,
sempre longe. Cada vez mais longe. De suas raízes e daquele homem que
lhe prometera amor eterno.
Sabrina o conheceu numa noite em que de cima do telhado estava a olhar as estrelas.
Ele a beijou sem dizer nada e ela retribuiu. Não porque o desejasse.
Naquele instante eterno seus lábios tocavam a chispa quente que estava
dentro da boca do homem. A chispa que a disparou para um país azul. Um
país que inventou. Que sonhou cada rua, cada casa, toda sua gente e uma
mulher azul. Ela não o beijava, ela beijava o seu país natal sonhado.
A chispa na boca do rapaz foi o passaporte para o seu país.
E agora depois de tantos anos sentia-se lograda. O país azul estava
ainda mais vívido e vivo em seu sonho, mas em nenhum instante chegara
perto de suas águas; em verdade, Sabrina sabia que fora de seu sonho
tudo era vermelho, tal como os cenários de seu teatro, e o azul era apenas
uma gelatina colocada sobre os refletores para as cenas mais melancólicas.
Olhava através da janela e se sentia presa dentro do quadro que ela
própria pintara. Sentia que lá fora havia um mundo para ser conquistado.
O único lugar que ela havia rejeitado. Sua cidade pacata. Começou
a ajeitar seus poucos pertences na mala. Sabrina sempre gostou de fazer a mala.
Sentia-se como uma desbravadora que parte rumo a descobertas e aventuras, por
isso também é que tinha poucas coisas a carregar. Mas desta vez
estranhamente a atividade não a entusiasmava, era como se enterrasse
suas cores para sempre. Deixou-se escorregar até o chão e por
um instante eterno não pensou em nada. O regresso foi adiado por um instante
eterno.
II
Ao caminhar pelas ruas em que passou boa parte de sua vida, Sabrina não
se reconhecia em nenhuma pedra que pisava, em nenhum caco de vidro que cobria
muros. Ela sempre odiara vidro moído nos muros, era arte barata. Tinha
vontade de se lançar contra eles. Retalhar a boca que beijava outras
tantas. Cegar-se.
A mesma vontade a invadiu quando entrou no velho apartamento. Atirar-se pra
junto do rio minúsculo e metafísico que corria lá embaixo.
Mas ela voltou seu corpo para o interior do quarto. Sempre se acovardava diante
de vidro moído e rios metafísicos.
Pegou o velho caderno de endereços e ligou para o homem que lhe jurou
amor eterno. Sabrina não o amava, não o desejava em nenhum sentido,
aliás ela nunca sentiu amor ou desejo por homens. Seus lençóis
eram amarrotados por corpos cuja sensibilidade podia se ver nos olhos e ela
nunca encontrou sensibilidade em olhares masculinos.
Ela iria beijar aquele homem e a chispa que estava dentro da boca dele iria
dispará-la uma vez mais para o seu sonho, para o seu país azul.
Mas desta vez, ela levaria uma bússola em sua boca.
III
Ele a rodopiou no ar, apertava seu peito junto ao dele a quase sufocá-la.
Beijou-a Ela não sentiu nada, nem sinal de azul na garganta. Continuou
a beijá-lo, agora com os olhos abertos e viu com tristeza o seu rosto
débil que ia de um lado ao outro. Sentia a língua do homem correndo
pelas extremidades de sua boca como se quisesse lhe arrancar a alma. Soltou-se
dele e ofereceu um sorriso amarelo que ele interpretou como a recíproca
do amor que lhe transbordava.
Sabrina continuou a se encontrar com ele. Por puro comodismo ou estoicismo
ela dividia não só a casa, mas a cama com ele. Nunca mais teve
um rasgo de criação, ao se deitar com o homem abandonou as tintas
de vez.
E quando sentia uma profunda melancolia ia até o parque da cidade e
ficava a olhar o movimento das folhas, o canto dos pássaros , a água,
ao longe. Ao longe, em algum recanto da sua alma ouvia acordes azuis, mas não
respondia a esses apelos. Não tinha forças.
Começou a trabalhar na Biblioteca municipal. Em meio aos livros e as
crianças que ouviam atentas as histórias que contava, viu adormecer
suas paixões e sonhos.
IV
Num dia nublado uma tempestade aconteceu na alma de Sabrina. No fundo da biblioteca
cercada de livros, tateando-os, folheando-os, cheirando-os, uma mulher. Sabrina
reconheceu-a imediatamente. Era a mais encantadora mulher do seu país
inventado, seu país azul. A mulher azul que amou desde o primeiro sonho.
Ela era miúda, muito magra e careca, não havia nem sinal de fios
capilares em sua cabeça. Tinha os olhos enormes, muito negros. Os olhos
mais faiscantes vivos que Sabrina já vira. Parecia uma fada.
Ao perceber que era observada a mulher soltou os livros e olhou fixamente dentro
dos olhos de Sabrina. Seu olhar emanava toda a sensibilidade feminina, todo
o azul do seu país de sonhos.
Sabrina continuou a olhá-la de longe. estava rodeada de crianças
que lhe perguntavam o que aconteceria com a princesa depois. Continuou a contar
a história sem tirar os olhos da mulher que ouvia encantada sem lhe desviar
os olhos.
Quando as crianças partiram Sabrina cainhou até a mulher ao fundo
da biblioteca e beijou aqueles olhos que eram agora dois oceanos.
V
Com os olhos marejados Sabrina beijava os olhos da mulher azul que a abraçava.
Sabrina pegou em sua mão e a sentou no chão. Perguntou onde se
escondia já que nunca a tinha visto e a cidade era tão pequena.
"Sou do Norte, dum País Azul". Ela tocou os lábios de
Sabrina, com os dedos pintou de azul o rosto branco de Sabrina. Ficaram a se
olhar e a pintar seus corpos entre os livros por instantes eternos.
Depois de descobrirem juntas todos os matizes, desfaleceram uma nos braços
da outra sobre livros de Van Gogh, Salvador Dali e Reneè Magrite. A mulher
azul olhou nos olhos de Sabrina. "Podemos partir pela manhã já
que a viagem é longa, você vai amar o país azul". Sabrina
sabia disso. Há anos tentava chegar lá, mesmo quando deixou o
sonho adormecer.
"Só espero que você não desista no último instante",
disse a mulher com os olhos pregados no teto. Porque diz isso olhando pra o
teto? "É que eu sou cega. Pensei te ver no céu. Mas você
já sabia que não enxergo, porque perguntar?". Sabrina olhava
aqueles olhos que enxergavam mais que todos olhos que a viam e sentia vontade
de chorar. "Só espero que você não desista no último
instante". Essa frase ecoava feito uma bigorna na mente de Sabrina.
O relógio bateu apitou. Eram seis horas. A biblioteca iria fechar em
cinco minutos. A mulher pegou o capacete de Sabrina e entregou a ela. O homem
buzinava impaciente lá fora à espera de Sabrina. As duas saíram
juntas da biblioteca. Ficaram por instantes eternos a olhar uma para outra no
meio da rua. Sabrina se lembrou da sua covardia diante dos vidros moídos
e dos rios metafísicos que a cegavam.
O homem pediu a ela subisse logo na moto. Aquela moça o assustava, era
feia e estranha. Sabrina fez um sinal para que se calasse. Não queria
que a mulher visse sua repreensão. Mas seus olhos negavam seus movimentos.
A mulher disse baixinho "Azzurra, meu nome é Azzurra, a do País
Azul". Subiu na moto. Sabrina olhava pra suas mãos que tremiam tentando
colocar a chave no contato da moto e sentia agulhadas no púbis. Como
ela iria dirigir a moto?. Pensava que ela iria encontrar a morte na primeira
curva. Pela segunda vez no mesmo dia ela iria encontrar a morte numa curva,
mas agora sem gozo, a morte certa, eterna. Sabrina queria dizer algo, queria
pedir pra deixá-la guiar, mas não disse nada, apenas beijou-lhe
os olhos. Nesse instante eterno os olhos de Azurra lhe gritavam "Só
espero que você não desista no último instante".
Viu a mulher azul partir com sua moto. Montou na carona do homem e partiu.
Na primeira curva a moto do homem e de Sabrina bateu num muro cravejado de vidro
moído. Sabrina rolou da moto e caiu num rio metafísico. Podia
ouvir ao longe um coro de homens despertos que diziam "Tudo é sonho".