Estava sentado, parado, apoiado na parede. O barulho das máquinas naquele
quarto era a trilha sonora sempre constante, as luzes nos aparelhos demonstravam
seus sinais vitais. Podia ver a bomba que subia e descia no ritmo cadenciado
de sua respiração, já não tinha forças para
inspirar. Na verdade, já não tinha forças para abrir seus
olhos, tudo era um pesadelo escuro de onde não podia simplesmente despertar.
Observava seu corpo estirado naquela cama de hospital. Lembrava-se apenas de
estar junto com as tropas, estavam sendo deslocados para eliminar um grupo de
rebeldes naquela guerra civil que já durava tantos anos... Pisou em falso
e tudo ficara escuro, desde então tivera apenas alguns lampejos de consciência
durante os dias (ou semanas, ou meses) em que estava ali. Os tubos na boca o
impediam de se comunicar, já não havia mãos que pudesse
mexer, os olhos já não queriam enxergar.
Continuou apoiado naquela parede branca e fria do hospital enquanto olhava para
seu corpo inerte logo à sua frente. Alguém ainda ousava chamar
aquilo de vida? Estava ainda preso a seu corpo, mas já não vivia.
Todavia, não ganhara ainda a libertação da morte.
Porém, como se finalmente suas preces tivessem sido atendidas, uma garota
de não mais do que doze anos, vestindo corpete preto e saia da mesma
cor, os grandes olhos negros refletindo uma calma imensa. Sorria ao encostar
a mão delicadamente branca em seu ombro.
- Clamaste tanto por minha presença, Mateus, estou aqui.
- Podemos ir embora logo, então?
- Ainda poderás escolher, terás tua última chance...
Nesse mesmo instante, uma equipe hospitalar entrou no quarto. Eram três
homens e duas mulheres um tanto diferentes dos médicos que estava acostumado
a ver ou das enfermeiras que vez ou outra monitoravam seus estáveis sinais
vitais, eram completos desconhecidos que invadiam seu quarto. Podia ouvir um
deles, carregando um palmtop, dizer:
- É o soldado identificação 0857442 da seção
5. Perdeu os membros superiores e inferiores, perdeu totalmente a visão
e sofreu queimaduras pelo corpo. Uma cobaia perfeita para a operação
Endo Machina para o soldado perfeito. A escolha seria passar o resto da existência
em coma, até o dia em que os aparelhos sejam requisitados para uma vida
que tenha o real potencial de ser salva.
De um carrinho, alguns pedaços de um metal que não pôde
reconhecer foram retirados. Eram parecidos com próteses e, pelo que pôde
ouvir da conversa entre aqueles homens, era de uma liga metálica ultrarresistente
que o faria correr mais rápido que um homem comum, além de resistir
a uma explosão de mina terrestre. Não haveria dinheiro a perder
naquele projeto.
Era estranho observar a pouca carne que lhe restava ser rasgada e o som dos
aparelhos que montavam suas novas pernas e braços. A garota a seu lado
observava fixamente a cena, mas para ele era desconcertante observar o uso feito
de seu próprio corpo.
- Ceifadora, por quanto tempo ainda profanarão meu corpo?
A menina apenas sorriu ao responder.
- Não sou ceifadora, cabe aos próprios humanos traçarem
seus próprios rumos. A morte é certeza, aproximá-la ou
afastá-la cabe aos viventes.
Continuou a observar a animada conversa dos cientistas, que abriam seu peito
em busca de seu coração. Já não lhe seria útil
um invólucro de carne, uma bomba controlada por energia autoalimentável
seria mais útil a um soldado perfeito do que a imperfeição
orgânica. Colocou a mão no peito ao observar: em nome de um pretenso
progresso, violavam seu corpo?
- A consciência será mantida? - Um dos cientistas perguntou.
- Restauraremos os olhos e aplicaremos um mecanismo eletrônico capaz de
regular todas as funções do corpo, assim como um cérebro
faria, ou até melhor. Será aplicada também uma inteligência
artificial programável para o perfeito cumprimento das ordens em campo
de batalha. Toda a consciência anterior será deletada, não
fará diferença a nosso soldado.
Nesse momento, Mateus apertou a mão da garota a seu lado. A perfeição
de um deus dentro da máquina era melhor do que a de um soldado que não
conseguira fazer mais do que entrar em coma dentro de um campo de batalha, sua
decisão já estava tomada. Disse calmamente enquanto observava
as ferramentas prontas para abrirem seu crânio e implantarem a nova existência
de seu corpo.
- Vamos embora, deixemos os homens e suas batalhas.
Calmamente, foram andando por um caminho de luz que se abria até desaparecerem.
A escolha feita era óbvia, afinal um espírito seria algo totalmente
inútil e dispensável a um soldado perfeito.