A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O bolso

(Borboleta)

Por instantes, imagino como seria
maravilhoso arrancar do corpo lenços
vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a
noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para
o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris.
Um arco-íris que cobrisse a terra de um extremo a outro.

Murilo Rubião

Nem bem a visão de Palmira escorrera de minhas pupilas e meus braços já se fizeram resolutos a não poupá-la de meus afagos. Todavia, conquanto o corpo instasse-me a tomá-la de imediato, a sombra de outra presença impedia-me o lançar mãos à obra. Mesmo assim, os desejos moveram-me: a angustia assentando-me a contemplar, em surdina, os movimentos do casal, e a esperança imprimindo-me a possibilidade de um dia desfrutar os sabores da donzela. Embebido por semelhante anseio, não hesitei em negligenciar meus afazeres na taberna Minhota - encerrando-lhe as portas mais cedo que de costume -, no cotidiano intuito de observar a procissão religiosa dos enamorados.

Ele chegava ao anoitecer, quando os últimos fiapos de claridade desfiavam na escuridão, pausadamente contornava a esquina e estacionava o chevrolet prateado diante a casa da moça - a qual, por aquelas alturas, urgia desesperada, conforme evidenciava suas múltiplas incursões à janela. Depois, era esperar o ecoar da buzina e lá despontava ela, resplandecente, a rebolar seus precisos passos e a envolver a noite com sua formosura. Apresentava-se sempre sorridente, entrelaçava-lhe o pescoço com os braços, oferecia-lhe os lábios, erguia a perna direita até a altura das desenhadas curvas e, finalmente, repousava os dedos nos bolsos do rapaz. Por alguns instantes, petrificavam-se sob os vastos galhos do cajuzeiro, inertes, unidos em uma única sombra, momentaneamente ausentes da vida. Em seguida, a presença cristalizada do amor rompia-se e cedia lugar às gargalhadas e à volúpia de Palmira, a contemplar com olhos esbugalhados o conteúdo que as mãos haviam subtraído do traje do amante. Enfim, um último beijo, antes de adentrarem ao veículo e desaparecerem na escuridão... antes de abandonarem-me tombado aos doridos da alameda deserta.

Por infindas noites observei a mesma cerimônia que, entrementes a pouca idade do casal, parecia-me cumprir desígnios milenares, ulteriores à suas próprias existências; como se naqueles jovens corações assentasse a responsabilidade pela consecução de ritos primordiais, desde sempre presentes no mundo. Contudo, entremeio àquele ritual, um procedimento em particular levava-me cócegas à curiosidade; algo que minha posição, desprivilegiada pela distância, não me permitia totalmente delinear: tratava-se do regozijo esboçado por Palmira em vasculhar os bolsos do rapaz. Ao que pude constatar, muito a contentava semelhante prática, como me evidenciava a transfiguração de seu semblante e a espécie de luz natural que irradiava de seu olhar; sem contar as vezes em que se punha a ensaiar pequenos saltos de alegria e agudos gritos de satisfação, sempre seguidos por um prolongado ósculo de contentamento no ente adorado. Apesar de toda beleza da cena, na verdade, muito me invejava tal procedimento, assim como me angustiava não saber qual o teor do contentamento contido naqueles bolsos. Por mais que me esforçasse, definitivamente, acreditava que nunca me seria possível descobrir os segredos ocultos na algibeira do rapaz, consequentemente, nunca poderia encontrar o cerne da satisfação de Palmira.

Mesmo assim, não desanimei. Quando desconfiei, após algumas noites de suspensão entre os encontros, que os elos do par haviam se rompido, imediatamente, corri ao alfaiate. Encomendei-lhe, não sem certa surpresa de sua parte, uma dúzia de trajes, com grandes bolsos espalhados por toda indumentária. Assim feito, enfim, lancei-me rumo ao intento primeiro. A princípio, tentava cercar Palmira pela redondeza, tomava-lhe a frente na calçada, obstruía-lhe o caminho e exibia-lhe meus grandes bolsos. No entanto, a moça não parecia se dar conta de meus dotados apetrechos, visto que, ao invés de quedar boquiaberta e avançar mãos rumo a eles - conforme eu ambicionava -, tratava ela de desviar-se de minha pessoa e continuar, determinada e cabisbaixa, seu solitário trajeto.

Ainda assim, a rejeição não me desiludiu; afinal, tanto sua condição quanto sua beleza faziam jus a uma eternidade de paciência. Firme nesse propósito, empenhei-me com mais afinco em ser notado. Doravante, ao aproximar-me da rapariga, além de interromper-lhe a rota, passei também a emitir roucos ruídos e a sacolejar desesperadamente todos os meus membros; por horas, depositava as mãos nos bolsos e remexia-os, esticava-os, freneticamente, na tentativa de expô-los ao desejo de Palmira. Entrementes: nada. Passava-me ela desapercebida, como se minhas algibeiras nunca houvessem existido.

Com o decorrer do tempo e com muitas incursões frustradas, a reflexão levou-me a questionar se Palmira realmente era uma bolsófila, e, em caso positivo, se o objeto de sua fascinação recaía sobre toda espécie de bolsos ou, quiçá, somente sobre algum tipo deles. Mas, para minha surpresa, a meditação revelara-me que a donzela nunca se regozijara com semelhante utensílio; de modo que, durante todo aquele tempo, estivera eu a vagar por errônea via. Afinal, se bem é verdade que a moça apreciava sobremodo a tarefa de perscrutar os bolsos de seu antigo amante, por outro lado, sua satisfação culminava com os artefatos neles encontrados; por conseguinte, seu júbilo devia-se aos últimos e a nada mais. A princípio, envergonhei-me de ter ostentado-lhe tantas vezes meus enormes, porém, vazios bolsos. Que estupidez fora a minha! Quanta insensibilidade de minha parte! Era preciso recuperar o tempo gasto e remediar a grotesca falha. Desde então, meus apaixonados bolsos nunca mais se apresentaram desprovidos de toda sorte de objetos.

Por essa época, creio eu, minha presença principiou a ser notada pela rapariga. Também não o era por menos, a todo instante dispunha-me a presenteá-la com as especiarias retiradas de meus vastos bolsos. Da vez primeira, colhi-lhe um jardim de flores, com as quais lhe ornei e aromatizei o caminho. Ao que parece, semelhante expediente muito impressionou a moça, a tal ponto que entremeio à gama de acácias, azaleias, rosas, margaridas, camélias e orquídeas, pude ver brotar o tímido sorriso de Palmira. Ocorrência, certamente, suficiente para alçar meu ânimo ao extremo do incalculável. Dado o sucesso do episódio, bastava-me avistar Palmira para de tudo retirar dos bolsos. Oferecia-lhe filhotes de cães, de gatos - os quais, embora não contassem com minha simpatia, eram peludos e macios ao toque - e até mesmo de brancos ratinhos de estimação. Em uma ocasião, saltou-me do bolso peludo coelhinho, o qual, com uma voz sumida, disse-nos chamar-se Teleco, pediu-nos um cigarro e partiu saltitante rumo ao oceano. Por horas, concedia-lhe vasta gama de doces, morangos, sorvetes e toda espécie de guloseimas propícias aos apaixonados. Certa vez, coube-me tirar-lhe uma orquestra inteira, a qual, prestamente, serenatizou-lhe as mais belas valsas e os mais alegres tangos. De outra feita, saquei-lhe uma estrelinha anã, que, por conta de não ter a moça segurado com firmeza, subiu aos céus e deixou-nos, no rastro de seus pozinhos luminosos, a marca cósmica do amor. Contudo, entremeio a todos esses presentes, Palmira apenas sorria, tímida, como fizera na vez primeira; nada mais, além daquele pétreo e mudo sorriso, ousava despontar de seus macios lábios. E assim o fora, ao menos até o dia em que me aconteceu escapar do bolso pequenino beija-flor, o qual, encantado, ao avistar a donzela, pusera-se a beijá-la por todos os poros.

Assustada, Palmira espantou-lhe com a mão e, finalmente, dirigiu-se a mim: - Desculpa, moço! Realmente são muito bonitos. Mas, nada disso me serve.

Ao sentir todos os meus bolsos murcharem-se, entre chochos soluços, indaguei-lhe: - Ao menos me diga, o quê deveriam eles conter?

Receosa pela insistência da questão, enigmaticamente, respondeu-me Palmira: - Aquilo que, embora em si mesmo nada represente, ao mesmo tempo, possibilita tudo o mais.

O enigma de Palmira latejava-me cabeça adentro. Por mais que me esforçasse, não conseguia resolvê-lo - "aquilo que, embora em si mesmo nada represente, ao mesmo tempo, possibilita tudo o mais". Perdidos o sono, a fome e a noção do tempo, somente a charada permanecia latente; somente ela conservava-me a vida - "aquilo que nada representa, mas possibilita tudo o mais". Sentia-me acuado, prisioneiro de meu próprio pensamento - "aquilo que nada, mas tudo" -, como se tenebrosa esfinge obstruísse-me a passagem e almejasse me tomar cabeça afora. E ainda assim, o problema permanecia insolúvel. Por fim, decidi, conforme o conselho dos mais próximos - há muito preocupados com minha saúde e, por conseguinte, com o futuro da taberna Minhota -, recorrer aos sábios; destarte, obstinado em vencer a advinha, encaminhei-me rumo ao pensatório. Confesso, embora toda minha experiência como taberneiro, serem muito estranhos os de lá, em especial o ancião com quem tive oportunidade de dialogar - tinha ele os pés rachados e vermelhos de terra, o nariz achatado, os olhos esbugalhados e, além do mais, sustentava um farrapo de manto esburacado. Tal era o acento de sua feiúra que, reiteradas vezes, fui compelido a desviar-lhe o olhar, tamanho o asco suscitado por sua compleição. Realmente, pensava comigo, esse homem "possui as feições de um monstro capaz de qualquer crime". De qualquer modo, garantiu-me ser filósofo e, apesar de sua fealdade, poder sanar-me a dúvida da alma. Muito lhe fiquei agradecido, porém, pouco convencido com a explicação. Segundo mo disse, o sentido oculto nas palavras de Palmira remetia a um conhecido problema ontológico da metafísica ocidental, alguma coisa relativa à existência de um tal Não-Ser manifesto no interior de um próprio Ser Uno, o que se evidenciava por intermédio de uma suposta identidade com o Mesmo... Assustado com tamanha sandice, apartei-me prestamente daquele antro; não sem o temor de me ver contaminado por semelhantes parvoíces. Felizmente, ainda sem fôlego - por conta do trote que infligi às pernas -, constatei aliviado que a razão acompanhara o galope e não se afastara de mim.

Muitas luas passaram sem que eu houvesse obtido resposta para o problema, sem que conseguisse saber qual conteúdo Palmira desejaria encontrar em meus bolsos. Ao menos até o dia em que a sede, desesperada, interrompeu-me o caminhar pensativo e arrastou-me até uma nascente próxima. E como, naquela altura, há muito estivesse em dívida com minhas necessidades básicas, não antevi qualquer problema em me deixar levar. Bendita circunstância! Sem dúvida, foi com grande surpresa que, ao avistar-me refletido na água, vi minha silhueta cabisbaixa revelar-me a resposta. Sim, havia decifrado o enigma; matado a esfinge; assegurado a vida; e, sobretudo, o amor de Palmira. Como não pensara nisso antes? Durante todo aquele tempo e a solução encontrava-se cristalina em mim, quero dizer: eu próprio era a resposta. Deslumbrado, admiti que somente minha pessoa poderia ser o conteúdo desejado pela moça. Pois, embora eu nada significasse para Palmira, desde que ela me amasse, eu poderia ser a possibilidade de tudo o mais em sua vida; portanto, eu, exatamente eu, era, ao mesmo tempo, "tudo e nada" em sua existência. Se não posso dizer como não explodi perante o achado, posso relatar que não hesitei em realizar o desejo da moça. Prontamente, despi-me de mim mesmo e adentrei para o fundo de um de meus vastos bolsos. E, definitivamente, por aqui permanecerei, até que o sedento amor de Palmira venha-me ao encontro, até que suas claras mãos retirem-me da escuridão.

A todo o carinho que Palmira me negou.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br