A lua brilha numa noite em que nem os anjos conseguem dormir e pode-se ouvir
seus choros ao longe, cantos amaldiçoados, melodiosos e assustadores
nas trevas de todos os sonhos infantis de uma pequena alma triste. Uma tênue
brisa trazia palavras não muito distantes que podiam fazer as mais belas
flores de um lindo jardim murcharem:
"A imensidão do Universo não é nada
perto do ódio que sinto por você...
Te odeio...
como os demônios odeiam a luz...
como os anjos odeiam as trevas...
Espero sua morte...
como você esperou pelo momento de nascer...".
Ecoavam lembranças de angústia e sofrimento pela escuridão
da noite que parecia ser um infindo pesadelo.
Nuvens negras passavam pela velha pensão abandonada, lembrando sonhos
esquecidos, cacos de um espelho negro que refletia a tristeza do universo.
Christopher sente a fria areia da praia em seus pés: "Às
vezes meus sonhos me assustam, e eu, na linda e letárgica solidão
de meus sentimentos, sussurro palavras que vento leva como folhas secas no outono.
Por que dizer que morri se nem sequer me senti vivo? Às vezes a dor parece
sumir e não sei se é real o brilho da lua refletida num lago de
águas sujas, porque não consigo ver além de seus olhos...".
Ele anda na direção de Sophia, sua irmã, que os ventos
frios de um distante inverno trouxeram para sua vida junto com lágrimas
de saudade de um grande amor que se esvaiu na densa névoa de dor.
Sophia, só, sob a luz da lua e o forte vento de inverno, sentada na areia,
tentava sorrir, chamava aos anjos e a Deus, mas nem mesmo o Diabo ajudaria a
macilenta criatura de olhos tão negros e tristes quanto às noites
sem lua.
Christopher chega até ela que sorri e lhe dá um beijo na face.
Eles caminham em direção a pensão, velha e abandonada,
onde se refugiavam de seus sonhos e esperanças, sentiam medo e ódio,
mas sentiam-se seguros na insegurança de seus sentimentos, na dor que
a casa lhes causava.
Quadros tortos em paredes rudes e frias. Corredores sombrios, por onde ecoava
um grito agonizante que havia sussurrado palavras tristes, numa noite qualquer,
quatorze invernos antes, sob o sangue de uma lua que minguava calmamente, perdendo-se
no anil estrelado do céu. Sobre um sofá velho um crucifixo quebrado.
A casa guardava um segredo em um de seus treze quartos, não eram lembranças,
parecia mais um outro mundo, uma outra realidade, uma outra vida...
Os irmãos caminham, confusos, nos labirintos de seus pensamentos. Eles
param em frente ao quarto de número onze. Fachos de luz e gritos assustadores
vibravam no interior do quarto. Permaneceram imóveis por alguns segundos,
enquanto a razão de seus cérebros lutava contra a insanidade de
seus corações. Sophia abre a porta e os gritos cessam, mas a luz
fica mais forte e intensa, começando a pulsar. Eles parecem procurar
algo e caminham na direção de uma velha cama, envolta por uma
cegante luz branca. Sophia para, sentando num tapete empoeirado, Christopher
continua andando até sumir em meio à luz.
Um mórbido silêncio toma todo o quarto e Sophia sussurra com a
sua doce voz angelical: "A lua me disse que os demônios se transformam
em anjos quando são tocados por sua luz, e que ele se tornam malévolos
e insanos quando a cegante luz do sol toca seus corações... mas,
eu sei que mesmo a lua tem um lado negro, um lado que ninguém nunca vê...".
Sophia pensa na vida e na morte, suspira, uma lágrima lhe contorna o
rosto.
Nesse momento ela ouve o grito de seu irmão que havia sido jogado contra
uma parede. Ela levanta e corre em sua direção, ele geme de dor,
ela segura sua cabeça e fita-lhe os olhos:
- Chris, eu tenho que ir. - diz ela com um suspiro.
- Não! Não posso deixar. Você não tem culpa de nada
disso. - retruca ele.
- Mas... se eu não for, você sofrerá.
- E se você for? Não sofrerei? Se você for não poderei
mais sentir, minha alma será dominada pelo ódio. Prefiro chorar
lágrimas de sangue do que causá-las.
- Mas Chris... ela odeia mim, não a você. Não posso permitir
que ela te machuque pelo ódio que causo a ela, preciso acabar com isso...
A luz pulsava e se movia como se ganhasse vida. O quarto começa a tremer,
a luz toma a forma de uma mulher que grita diabolicamente:
- Isso, venha Sophia, é hora de pagar pelo que me fez, precisa sentir
toda a dor que seu nascimento me causou.
- Mamãe... me perdoe...
- Mamãe? - grita - primeiro me mata, agora me chama de mãe. Por
sua culpa perdi minha vida, perdi toda a bondade que tinha em meu coração,
preciso matá-la para acabar com esse ódio.
- ... eu não quis matá-la, nem poderia. Sinto muito que o papai
a tenha abandonado.
Uma triste lembrança lhe parte o coração e ela grita ainda
mais:
- Seu pai? Isso também foi culpa sua. Por sua culpa ele quis nos deixar,
mas... não pude deixar que partisse.
- O que quer dizer com isso? - pergunta Christopher espantado.
- Meu querido Chris - diz suavemente - ainda não conseguiu entender?
Eu havia lhe dito que seu pai precisava descansar... bem, ele está descansando.
Seu pai está repousando sob essa cama.
- Então você o matou? - pergunta ele.
- Sim eu o matei, assim como sua irmã me matou ao nascer.
Sophia sente uma dor, no fundo de sua alma, parecia que seus pulsos estavam
sendo cortados lentamente. Ela chora, se levanta e caminha ao encontro de sua
mãe.
- Isso, venha Sophia. Apenas seu sangue pode saciar minha sede.
- Não Sophia... - grita Christopher, que corre tentando impedi-la.
A luz brilha ainda mais forte e começa a puxar tudo para seu interior
o quarto parecia ter sido tomado por um furacão.
- Venha querida. Você não foi uma boa menina. Venha, preciso lhe
dar um castigo.
Christopher pensa em toda sua vida, um vago filme passa em sua cabeça,
pensa nas alegrias e tristezas e se lembra do sorriso de Sophia, que em qualquer
momento, qualquer dia, sorria a ele, como se a dor não existisse. Ele
chega até ela, que quase havia sido sugada pela a luz, segura sua mão,
a abraça e sorri fitando-lhe os olhos.
- Sophy, não sejas triste, nem chores por mim, porque quando eu a via
sorrir, nada podia sofrer... - o garoto e puxado pela luz, que se torna vermelha.
- Chris... - grita a garota, tentando segurar-lhe a mão.
Christopher some em meio à luz e Sophia ouve um último lamento:
- Você me faz, mais uma vez, matar alguém a quem amava, por que
me odeia tanto, Sophia?
O quarto é tomado pelo silêncio e pela escuridão, num vazio
quase sepulcral.
Sophia cai, desmaiada, quase num estado cataléptico. Todo sentimento
mau se esvai e, ninguém procura a luz do sol à meia noite. Os
anjos dormem. A noite fora tão sangrenta e doce quanto a morte de um
padre ao amanhecer.
Os raios do sol invadem o quarto por uma pequena fresta na janela, chegando
até a face da menina que dorme, como se estivesse tendo um pesadelo.
Ela acorda e chora com as lembranças da noite infernal que passara, permanece
imóvel pensando em sua efêmera existência, lembra-se das
palavras de seu irmão e tenta desenhar um sorriso no triste rosto.
Os ventos nunca param de soprar e, nas noites em que a lua míngua no
céu, o vento parece escondê-la com um manto de nuvens, da mesma
que acontecera quatro anos antes. A lua surgia e consigo trazia as lágrimas
que insistiam em cair, como o sangue de uma ferida que nunca se fechava...
Sophia já não pensava na dor ou na alegria, passava a mesma noite
fria de inverno, fitando os próprios olhos no espelho. "Quando eu
me perco em meus sonhos e ilusões... é como se eu estivesse sendo
protegida pelos demônios, enquanto os anjos me atacam como suas douradas
flechas de Amor. Eu, no entanto, não queria ser atacada nem protegida,
apenas queria poder fugir de qualquer coisa que me fizesse me sentir medo de
que minhas palavras fossem jogadas ao vento, como minha infância...".
A noite era levada pela angústia. O sol começava a brilhar enquanto
o silêncio da madrugada se esvaia no horizonte. A luz seguia calmamente,
como se não tivesse pra onde ir e, esquecida num canto do céu,
dando seu último suspiro, sumia e se perdia a lua de Sophia...