Para Maura o Natal era sempre o mesmo, triste e solitário, desde que
perdera seus pais amados e o homem da sua vida. Solitude. Bonita palavra. Combinava
com ela, com sua dor e seu aparvalhamento. Não sabia como enquadrar seus
filhos em sua existência. Vivos eles estavam. Só que não
mais faziam parte do seu presente. Afastaram-se aos poucos, vivendo suas respectivas
vidas, tão diferentes da íntima relação que ela
mantivera com seus pais. O filho, ainda solteiro, foi transferido para Israel
onde constituiu família. Na situação atual de beligerância
ficava difícil para ela visitá-los e vice-versa. A filha mais
velha era solteira e independente. Atuando como modelo internacional vivia cercada
por uma corte de amigos e namorados. Mal tinha tempo para lhe telefonar.
Na mesa posta para a ceia havia salgadinhos variados, as indefectíveis
rabanadas e até o pavê de coco, especialidade da sua mãe.
Curioso, apesar de amar a iguaria, Maura sempre teve medo de prepará-la
sozinha. Provavelmente por falta de confiança. Temia arruinar o seu doce
predileto. Fazia-o agora pela primeira vez. Não teve coragem de encomendar
o peru defumado, rotina preservada por seu pai até seus últimos
dias. Era demais para sua dor. Superava seus limites. - Todos temos limites,
suspirava. Maura sabia que estava prestes a exceder o seu. Olhou os inúmeros
porta-retratos, espalhados pela casa, exibindo fotos da sua família.
Seus pais revelados nas diferentes etapas das suas vidas, sempre belos e felizes.
Inúmeras fotografias dela jovem, linda e sensual. Outras tantas ao lado
do marido, seu grande amor, nas incontáveis viagens feitas. Retratos
em profusão das crianças, seus queridos anjinhos. Alguns, em série,
os acompanhando desde a adolescência até a fase atual.
- E agora, por quê me deixam tão sozinha?
Maura sempre foi mãezona, carinhosa ao extremo, muitas vezes encobrindo
as faltas dos filhos para o marido não descobrir. Era tão severo!
Vai ver este foi o erro. Limites. As crianças precisam conhecer limites
e não ganhar tudo de mão beijada. Talvez, quem sabe, não
lhe dessem hoje maior valor?
Olhou-se no espelho. Não estava mal. Procurou arrumar-se da melhor maneira
possível, não queria passar vergonha quando a achassem. A seringa
estava ao lado. Bastava ajustar a fita de borracha, que lhe garrotearia o braço,
puncionar a veia e empurrar o ar. Acabava-se tudo. Morte branca. Morte limpa.
Morte digna de uma noite de Natal. Pensou em escrever uma carta explicando que
não tolerava mais a vida. Ninguém tinha culpa. Só ela,
por ter nascido sob a égide da felicidade que subitamente lhe voltou as costas, abandonando-a assim desse jeito.
Levantou-se para fechar as janelas, não queria estragar a festa dos
vizinhos. Viu os aposentos iluminados de dezenas de apartamentos, as árvores
de Natal enfeitadas e luminosas (a sua estava bem guardada), as pessoas alegres
e bem vestidas conversando felizes. Ficou um tempo enorme na janela, quando
foi surpreendida pela súbita sonolência. Provável efeito
do espumante.
- Quer saber duma coisa? Pensou. Estou cansada demais para cometer suicídio.
Só preciso de uma boa cama para descansar. Minha mente precisa de repouso.
Passadas as festas voltarei à terapia. É isso! Besteira este negócio
de querer matar-me, ainda mais em pleno Natal. Falava consigo mesma, rindo baixinho,
superando a depressão. Incontinênti desprezava na lixeira a seringa
e o garrote.
Trocou a roupa de festa pela camisola acetinada, cor de cereja, que só
havia usado duas vezes para o marido. Ele gostava. Apreciava-lhe o corpo e nunca
permitiu que se sentisse velha. Ao contrário, a rejuvenescia. Deitou-se.
Nem teve tempo de fazer as orações tal o cansaço.
Foi encontrada morta pela faxineira, dois dias depois. Segundo a autópsia
sofrera um enfarte fulminante. Morrera dormindo, em plena noite de Natal.
(10/12/02)