A Garganta da Serpente
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Solitude

(Barbara Amar)

Para Maura o Natal era sempre o mesmo, triste e solitário, desde que perdera seus pais amados e o homem da sua vida. Solitude. Bonita palavra. Combinava com ela, com sua dor e seu aparvalhamento. Não sabia como enquadrar seus filhos em sua existência. Vivos eles estavam. Só que não mais faziam parte do seu presente. Afastaram-se aos poucos, vivendo suas respectivas vidas, tão diferentes da íntima relação que ela mantivera com seus pais. O filho, ainda solteiro, foi transferido para Israel onde constituiu família. Na situação atual de beligerância ficava difícil para ela visitá-los e vice-versa. A filha mais velha era solteira e independente. Atuando como modelo internacional vivia cercada por uma corte de amigos e namorados. Mal tinha tempo para lhe telefonar.

Na mesa posta para a ceia havia salgadinhos variados, as indefectíveis rabanadas e até o pavê de coco, especialidade da sua mãe. Curioso, apesar de amar a iguaria, Maura sempre teve medo de prepará-la sozinha. Provavelmente por falta de confiança. Temia arruinar o seu doce predileto. Fazia-o agora pela primeira vez. Não teve coragem de encomendar o peru defumado, rotina preservada por seu pai até seus últimos dias. Era demais para sua dor. Superava seus limites. - Todos temos limites, suspirava. Maura sabia que estava prestes a exceder o seu. Olhou os inúmeros porta-retratos, espalhados pela casa, exibindo fotos da sua família. Seus pais revelados nas diferentes etapas das suas vidas, sempre belos e felizes. Inúmeras fotografias dela jovem, linda e sensual. Outras tantas ao lado do marido, seu grande amor, nas incontáveis viagens feitas. Retratos em profusão das crianças, seus queridos anjinhos. Alguns, em série, os acompanhando desde a adolescência até a fase atual.

- E agora, por quê me deixam tão sozinha?

Maura sempre foi mãezona, carinhosa ao extremo, muitas vezes encobrindo as faltas dos filhos para o marido não descobrir. Era tão severo! Vai ver este foi o erro. Limites. As crianças precisam conhecer limites e não ganhar tudo de mão beijada. Talvez, quem sabe, não lhe dessem hoje maior valor?

Olhou-se no espelho. Não estava mal. Procurou arrumar-se da melhor maneira possível, não queria passar vergonha quando a achassem. A seringa estava ao lado. Bastava ajustar a fita de borracha, que lhe garrotearia o braço, puncionar a veia e empurrar o ar. Acabava-se tudo. Morte branca. Morte limpa. Morte digna de uma noite de Natal. Pensou em escrever uma carta explicando que não tolerava mais a vida. Ninguém tinha culpa. Só ela, por ter nascido sob a égide da felicidade que subitamente lhe voltou as costas, abandonando-a assim desse jeito.

Levantou-se para fechar as janelas, não queria estragar a festa dos vizinhos. Viu os aposentos iluminados de dezenas de apartamentos, as árvores de Natal enfeitadas e luminosas (a sua estava bem guardada), as pessoas alegres e bem vestidas conversando felizes. Ficou um tempo enorme na janela, quando foi surpreendida pela súbita sonolência. Provável efeito do espumante.

- Quer saber duma coisa? Pensou. Estou cansada demais para cometer suicídio. Só preciso de uma boa cama para descansar. Minha mente precisa de repouso. Passadas as festas voltarei à terapia. É isso! Besteira este negócio de querer matar-me, ainda mais em pleno Natal. Falava consigo mesma, rindo baixinho, superando a depressão. Incontinênti desprezava na lixeira a seringa e o garrote.

Trocou a roupa de festa pela camisola acetinada, cor de cereja, que só havia usado duas vezes para o marido. Ele gostava. Apreciava-lhe o corpo e nunca permitiu que se sentisse velha. Ao contrário, a rejuvenescia. Deitou-se. Nem teve tempo de fazer as orações tal o cansaço.

Foi encontrada morta pela faxineira, dois dias depois. Segundo a autópsia sofrera um enfarte fulminante. Morrera dormindo, em plena noite de Natal.

(10/12/02)

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