A Garganta da Serpente
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O rejeitado

(A. Valentinna)

Uma noite chuvosa não revela seu segredo, há sempre um clima de mistério no ar. E foi assim que aconteceu naquela noite de inverno. E eu estou incumbido de contar.

Tudo começou pela manhã, André o primogênito da família Garcia levantou com um olhar distante e sombrio, olhou sua família reunida na mesa e evitou sentar-se, aquele clima o enojava. Sentou-se na poltrona, ligou a televisão, porém seus ouvidos se mantinham na cozinha. Ele estava ouvindo a alegria e a euforia dos seus pais, ao lado seu irmão caçula que estava todo orgulhoso, pois seria seu primeiro dia na faculdade de direito. Sua mãe falava alto na intenção de André ouvir:

- Parabéns meu filho, você honra o nome de nossa família...

Essa foi à deixa para André sair para o seu trabalho, furioso. Hoje seria mais um dia de cão naquela empresa de telemarketing, enquanto seu irmão todo "engomadinho" estava na universidade. Na mesma hora teve a terrível visão do seu fracasso, os vestibulares perdidos e com ele as esperanças de ser o orgulho da família e de conquistar um emprego melhor. Restava a ele passar seu dia sentado atendendo ao telefone. Sentiu uma tristeza invadir seu coração, ele não precisaria mais se destacar, seu irmão quatro anos mais novo já o fizera, e agora foi o ódio que o possuiu.

Passou o dia remoendo esse episódio da manhã, imaginou que seria assim para o resto da vida e sem perceber viu que já estava na hora de ir embora. André foi para a praia e ficou pensando em soluções cabíveis para acabar com aquele destino cruel. Horas e horas se passaram, a chuva começou a cair e André voltou pra casa.

Chegou em casa ensopado, sua mãe pediu para ele não molhar o tapete. Ele seguiu direto para seu quarto e se trancou, mesmo assim ouvia o tempo todo os rumores familiares sobre as aulas do seu irmãozinho, sobre seu futuro rico e promissor e até ouviu um " não desampare seu irmão, meu querido!". Esse foi o limite para André.

André respirou fundo e levantou-se, ainda molhado e frio, sua face pálida dava um tom cadavérico e seus lábios tremiam como em uma convulsão febril. Foi à cozinha e da janela do apartamento observou a chuva e tentou se acalmar, mais não conseguiu. Abriu a gaveta e visualizou a faca, estava bem afiada e na lâmina conseguia enxergar seu rosto, ele olhou novamente e não se reconheceu. Quem era esse homem refletido na faca? André tinha certeza que aquele homem não era ele, mas quem era afinal? Neste momento, isso não importava.

Colocou a faca no bolso da calça e seguiu em direção a sala, olhou sua mãe assistindo a novela, seu pai ao lado dela cochilando e seu irmão, seu alvo, no computador, com certeza pesquisando sobre sua futura profissão. Parou à porta, sua mãe novamente lhe pediu que não molhasse o tapete, como se o tapete fosse mais valioso que ele próprio. André olhou-a com desprezo, mais naquele momento seu desprezo maior era pelo seu irmão que quando o viu sorriu mais no auge da sua loucura, André percebeu a malícia nos lábios, o sorriso da vitória que cintilava nos seus dentes brancos e perfeitos. André não suportou e com um só golpe cravou a faca nas costas de seu irmão. Ele caiu em cima do computador e o sangue corria como uma correnteza entre suas pernas. Seus pais nem perceberam de imediato o acontecido, só viram André correr e se jogar pela janela do 14º andar, gritaram de desespero, mais quando olharam e viram seu outro filho imóvel e ensanguentado foi que perceberam a tragédia, mais agora era tarde demais e os dois filhos já estavam mortos.

A chuva continuava a cair impaciente, o corpo de André estava na calçada, todo desfigurado e rodeado por curiosos e conhecidos. A mãe em estado de choque foi parar no hospital, o pai com desespero esperou a polícia chegar e os parentes e amigos comentavam sobre a tragédia questionando os motivos: seria ciúmes? Decepção? Medo? Loucura? Ninguém sabia. Nem nunca perceberam nada em André que prenunciasse esse episódio. Na verdade ninguém nunca o notou.

No enterro os caixões ficaram lado a lado, como se nada tivesse acontecido, porém nas lápides as frases denunciavam o ocorrido. Na do filho caçula dizia: "UMA ESTRELA QUE SEMPRE BRILHARÁ EM NOSSOS CORAÇÕES!" E na de André, friamente dizia: "FOI UM COVARDE ATÉ O FIM!".

Hoje, assim como naquele dia, a noite está chuvosa, da janela do meu apartamento ainda vejo uma gota de sangue de André na calçada, que insistentemente não quer deixar-se remover do chão, não quer cair no esquecimento como se pedisse para que sua vida fosse sempre lembrada.

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