A Garganta da Serpente
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Djabula - memórias africanas

(Ana Ventura)

O sol que ilumina meus dias tem uma cor amarelada que, desde que cheguei, sempre chama a minha atenção. Há uma certa hora, de manhã e ao entardecer, em que a cor das coisas se transforma e eu chego a acreditar que outro mundo aparece, só visível no tom diferente com que o mundo assume as suas cores. Os amarelos douram-se, à tarde; os esbranquiçados prateiam-se, pela manhã.

Neste universo de transformações, também meu nome foi transformado. Cheguei chamando-me de uma forma, hoje chamo-me Djabula. E esse nome, que neste lugar apelida tudo o que se reveste, transveste ou recobre da mais pura alegria, alimenta meu desejo de vida a cada segundo. Sendo Djabula, tornei-me, parece-me, mais eu mesmo - como se essa alegria que vejo hoje bailar em todos os seres me fosse revelada no instante em que meu novo nome, este que é o verdadeiro, me foi dado conhecer. Só por isso, já seria imensamente grato.

No entanto, há mais.

Há as montanhas, que acompanham todos os meus olhares, que suavizam o horizonte longínquo, que jamais abandonam suas tonalidades azuis. Estas montanhas azuis me impressionam e, no começo, esperava a cada instante que se transformassem, que chamassem a si outras cores. Hoje, já me habituei: e penso até que estes "dragões", como os mais antigos ainda hoje lhes chamam, realmente nos guardam, com a sua tranquilidade azulada, das tempestades que possam nos chegar de outras latitudes.

Já houve momentos em que perscrutei, de onde estivesse, os horizontes demarcados pelos gigantes azuis. Pensei, e ainda penso, que talvez seja a cor, e não a forma, a guardiã daquilo que pode me abrir a compreensão do passado. Talvez seja mais fácil de entender assim; ao menos, evita-me a sensação desconfortável de, se ainda me restassem pernas, poder procurar descobrir o que existe atrás dessas imagens fantasmagóricas. Assim, resta-me o azul, sempre e a toda hora azul.

Hoje, também já estou habituado ao negrume das casas queimadas. Durante os anos de guerra, os anos em que nos assaltavam ora o temor dos homens que nos assolavam armados no meio da noite, ora o seu próprio e assustador assalto, a fumaça no horizonte era uma presença constante, e por ela podíamos saber quantas cubatas ardiam. O horizonte ampliado e plano, eterno, imutável, infindo, transformou-se nesses longos anos - tanto, que o receio de olhar para ele, permitindo o arrebate além da realidade, vivia nos olhos de todos, e todos o evitavam.

Ficaram as poucas casas de cimento, queimadas. Ninguém as reconstrói. Ninguém as quer esquecer.

Mas eu, Djabula, na realidade pouco de meu tempo gasto olhando essas coisas. O que ocupa meu dia está longe de tudo isso, de tudo isso que contam meus pais e irmãos mais velhos, meus tios, meus avós, isso que contam todos os velhos da aldeia. De manhã, quando me levanto e preparo para ir buscar a água ao chafariz, encontro já esta minha nova mãe cansada, como se não dormisse, como se não sentasse, como se não vivesse. Mas, assim que me vê, abre-se-lhe um sorriso de dentes brancos que sempre me fascina - fico mudando-lhe a cor da pele para ver se os dentes escurecem, mas sempre são brancos da cor do leite da cabra que ordenha na hora em que saio com a lata d'água na cabeça.

Todos os dias a mesma fila, as mesmas brincadeiras entre as moças, as mesmas pilhérias entre os garotos como eu. Conforme se enchem as latas, vai-se esvaziando o largo - e eu sei que, como na minha, nas demais cubatas se prepara agora o caldo grosso de farinha de milho que aquecerá, sem preencher, todas as barrigas de todas as pessoas.

A água que nos é hoje preciosa, há poucos anos alagou nosso mundo. Chegou de mansinho, a chuva, e logo se viu que não pararia mais. A cada dia que espreitávamos para fora da cubata, que íamos até à mercearia buscar o óleo, o sal, lá estava ela: resoluta, impassível, imune aos cânticos que entoavam as velhas e às cerimônias que preparavam os velhos. Chovia, e não parava.

Em poucos dias, subiu o Umbeluzi, subiu o Incomati, subiu o Limpopo: todos os rios que conhecemos, e dizem que os que não conhecemos também, subiram e alagaram os campos de milho, de matapa, de abóbora, de mandioca; alagaram as cidades e as vilas que encontraram, engoliram pontes e ruas, estradas e paredes que tentaram barrar seu avanço furioso. Nas ruas da cidade, as águas subiram e engoliram os andares dos prédios. Nos campos, inundaram as cubatas e apodreceram a água dos poços. Sem ter para onde fugir, todos correram para cima, escalando os poucos imbondeiros, arranhando-se nas quicuias, levantando a perna para alcançar qualquer galho que suportasse o peso. E, assim como os homens, também os animais procuraram seu refúgio nas alturas, em busca do auxílio que viesse do mesmo lugar de onde lhes vinha o suplício: o céu.

Passaram-se horas, dias, semanas - um mês depois, ainda as águas subiam e a chuva chovia.

Hoje restam as lembranças das marcas nas paredes e nos rostos dos que ficaram; resta a memória da desgraça e do sofrimento; e sempre e ainda a esperança que me mantém, a mim e a meu povo, por cima da poeira da estrada. Parece-me a mim que por muito que chova, ou que não chova; por muito que queimem, ou matem; por muito que haja ou não haja, qualquer coisa que neste mundo possa haver, eu e este meu povo permaneceremos, de certa forma, sob a poeira enganosa da estrada, e nossos continuarão a ser o caminho e o destino.

Quando cheguei, e recebi meu nome, e me vi abraçado por este a quem hoje chamo "meu povo", demorei a entender. Mas hoje não há mais dúvidas em mim: sou Djabula, e é a este povo que pertenço, tanto quanto ele a mim pertence.

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