O sol que ilumina meus dias tem uma cor amarelada que, desde que cheguei, sempre
chama a minha atenção. Há uma certa hora, de manhã
e ao entardecer, em que a cor das coisas se transforma e eu chego a acreditar
que outro mundo aparece, só visível no tom diferente com que o
mundo assume as suas cores. Os amarelos douram-se, à tarde; os esbranquiçados
prateiam-se, pela manhã.
Neste universo de transformações, também meu nome foi
transformado. Cheguei chamando-me de uma forma, hoje chamo-me Djabula. E esse
nome, que neste lugar apelida tudo o que se reveste, transveste ou recobre da
mais pura alegria, alimenta meu desejo de vida a cada segundo. Sendo Djabula,
tornei-me, parece-me, mais eu mesmo - como se essa alegria que vejo hoje bailar
em todos os seres me fosse revelada no instante em que meu novo nome, este que
é o verdadeiro, me foi dado conhecer. Só por isso, já seria
imensamente grato.
No entanto, há mais.
Há as montanhas, que acompanham todos os meus olhares, que suavizam
o horizonte longínquo, que jamais abandonam suas tonalidades azuis. Estas
montanhas azuis me impressionam e, no começo, esperava a cada instante
que se transformassem, que chamassem a si outras cores. Hoje, já me habituei:
e penso até que estes "dragões", como os mais antigos
ainda hoje lhes chamam, realmente nos guardam, com a sua tranquilidade azulada,
das tempestades que possam nos chegar de outras latitudes.
Já houve momentos em que perscrutei, de onde estivesse, os horizontes
demarcados pelos gigantes azuis. Pensei, e ainda penso, que talvez seja a cor,
e não a forma, a guardiã daquilo que pode me abrir a compreensão
do passado. Talvez seja mais fácil de entender assim; ao menos, evita-me
a sensação desconfortável de, se ainda me restassem pernas,
poder procurar descobrir o que existe atrás dessas imagens fantasmagóricas.
Assim, resta-me o azul, sempre e a toda hora azul.
Hoje, também já estou habituado ao negrume das casas queimadas.
Durante os anos de guerra, os anos em que nos assaltavam ora o temor dos homens
que nos assolavam armados no meio da noite, ora o seu próprio e assustador
assalto, a fumaça no horizonte era uma presença constante, e por
ela podíamos saber quantas cubatas ardiam. O horizonte ampliado e plano,
eterno, imutável, infindo, transformou-se nesses longos anos - tanto,
que o receio de olhar para ele, permitindo o arrebate além da realidade,
vivia nos olhos de todos, e todos o evitavam.
Ficaram as poucas casas de cimento, queimadas. Ninguém as reconstrói.
Ninguém as quer esquecer.
Mas eu, Djabula, na realidade pouco de meu tempo gasto olhando essas coisas.
O que ocupa meu dia está longe de tudo isso, de tudo isso que contam
meus pais e irmãos mais velhos, meus tios, meus avós, isso que
contam todos os velhos da aldeia. De manhã, quando me levanto e preparo
para ir buscar a água ao chafariz, encontro já esta minha nova
mãe cansada, como se não dormisse, como se não sentasse,
como se não vivesse. Mas, assim que me vê, abre-se-lhe um sorriso
de dentes brancos que sempre me fascina - fico mudando-lhe a cor da pele para
ver se os dentes escurecem, mas sempre são brancos da cor do leite da
cabra que ordenha na hora em que saio com a lata d'água na cabeça.
Todos os dias a mesma fila, as mesmas brincadeiras entre as moças, as
mesmas pilhérias entre os garotos como eu. Conforme se enchem as latas,
vai-se esvaziando o largo - e eu sei que, como na minha, nas demais cubatas
se prepara agora o caldo grosso de farinha de milho que aquecerá, sem
preencher, todas as barrigas de todas as pessoas.
A água que nos é hoje preciosa, há poucos anos alagou
nosso mundo. Chegou de mansinho, a chuva, e logo se viu que não pararia
mais. A cada dia que espreitávamos para fora da cubata, que íamos
até à mercearia buscar o óleo, o sal, lá estava
ela: resoluta, impassível, imune aos cânticos que entoavam as velhas
e às cerimônias que preparavam os velhos. Chovia, e não
parava.
Em poucos dias, subiu o Umbeluzi, subiu o Incomati, subiu o Limpopo: todos
os rios que conhecemos, e dizem que os que não conhecemos também,
subiram e alagaram os campos de milho, de matapa, de abóbora, de mandioca;
alagaram as cidades e as vilas que encontraram, engoliram pontes e ruas, estradas
e paredes que tentaram barrar seu avanço furioso. Nas ruas da cidade,
as águas subiram e engoliram os andares dos prédios. Nos campos,
inundaram as cubatas e apodreceram a água dos poços. Sem ter para
onde fugir, todos correram para cima, escalando os poucos imbondeiros, arranhando-se
nas quicuias, levantando a perna para alcançar qualquer galho que suportasse
o peso. E, assim como os homens, também os animais procuraram seu refúgio
nas alturas, em busca do auxílio que viesse do mesmo lugar de onde lhes
vinha o suplício: o céu.
Passaram-se horas, dias, semanas - um mês depois, ainda as águas
subiam e a chuva chovia.
Hoje restam as lembranças das marcas nas paredes e nos rostos dos que
ficaram; resta a memória da desgraça e do sofrimento; e sempre
e ainda a esperança que me mantém, a mim e a meu povo, por cima
da poeira da estrada. Parece-me a mim que por muito que chova, ou que não
chova; por muito que queimem, ou matem; por muito que haja ou não haja,
qualquer coisa que neste mundo possa haver, eu e este meu povo permaneceremos,
de certa forma, sob a poeira enganosa da estrada, e nossos continuarão
a ser o caminho e o destino.
Quando cheguei, e recebi meu nome, e me vi abraçado por este a quem
hoje chamo "meu povo", demorei a entender. Mas hoje não há
mais dúvidas em mim: sou Djabula, e é a este povo que pertenço,
tanto quanto ele a mim pertence.