Marina e eu fomos ao cinema ver o Último imperador. O filme era longo,
ela massageava o meu pé. No escurinho do cinema perdemos a vergonha e
o medo.
Perdemos o controle também. Começamos com a massagem de pé,
depois tocamos os dedos uma da outra, depois a vista foi se embaçando,
o corpo pedia cada vez mais. A mão muda de região, abre um zíper,
difícil era controlar os sussurros. 'Vamos ao banheiro, o imperador pode
esperar ou pode ir para a Conchichina.' A vantagem era que podíamos ir
ao mesmo banheiro sem levantar suspeitas, quer dizer, sem levantar muitas suspeitas
porque Marina era boyish pra caramba, difícil de passar despercebida.
Felizmente não havia
ninguém no banheiro. Depois ainda voltamos para ver o final do filme.
Vivíamos cada uma na casa dos respectivos pais, ela na casa da mãe
já que os pais eram separados. Era tarefa das mais complicadas encontrar
um espaço para curtirmos o que mais queríamos. Por isso, de vez
em quando qualquer lugar era lugar. Às vezes era difícil nos controlarmos
até na rua ou no metrô. Dava vontade de pegar na mão, tocar
o cabelo, dar um beijinho, esses coisas normais que todo casal faz mas que,
pelo menos naquela época e
naquela cidade não era aconselhável a duas mocinhas. Lembro-me
ainda das vozes maldosas 'Sapatão! Sapatão!' Ela continuava altiva
e com a cabeça erguida. Acho que eu também parecia assim, ignorávamos
para sobreviver, mas no fundo era uma punhalada. A gente nem falava disso depois.
Às vezes eu sentia raiva e tentava convencê-la, indiretamente,
a ser menos garçon-manqué, mas era impossível. Ela era
assim e pronto, era aceitar ou largar. Eu aceitava e gostava dela assim apesar
dos aborrecimentos que a sua
aparência nos trazia. Ou me trazia, talvez. Nem eu nem ela tínhamos
esclarecido para a família a natureza da nossa relação,
ninguém fazia perguntas. Os vizinhos falavam, na escola falavam, no trabalho
da minha irmã falavam e eu nunca tomava conhecimento. A única
reação clara quanto a isso veio do meu cunhado. Um dia, era aniversário
do meu sobrinho e eu convidei Marina. O meu cunhado veio pegou na minha mão,
pegou na mão de Marina e perguntou 'Como vai a vida de sapatão?'
Eu fiquei vermelha, quente, morta de
vergonha na frente da Marina mas não tive coragem de mandá-lo
tomar no cu.
Foi uma pena. Tentei conversar com ele depois mas ele disse que não foi
por maldade. Então teria sido por quê?
E assim corria a nossa existência. Quase normal, não fosse os olhares
dos outros sobre as 'nossas pessoas', como diria Madame Satã.