A Garganta da Serpente

Ana Terra

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Marina e eu. Por que não? - parte II

(Ana Terra)

Marina e eu fomos ao cinema ver o Último imperador. O filme era longo, ela massageava o meu pé. No escurinho do cinema perdemos a vergonha e o medo.

Perdemos o controle também. Começamos com a massagem de pé, depois tocamos os dedos uma da outra, depois a vista foi se embaçando, o corpo pedia cada vez mais. A mão muda de região, abre um zíper, difícil era controlar os sussurros. 'Vamos ao banheiro, o imperador pode esperar ou pode ir para a Conchichina.' A vantagem era que podíamos ir ao mesmo banheiro sem levantar suspeitas, quer dizer, sem levantar muitas suspeitas porque Marina era boyish pra caramba, difícil de passar despercebida. Felizmente não havia

ninguém no banheiro. Depois ainda voltamos para ver o final do filme.

Vivíamos cada uma na casa dos respectivos pais, ela na casa da mãe já que os pais eram separados. Era tarefa das mais complicadas encontrar um espaço para curtirmos o que mais queríamos. Por isso, de vez em quando qualquer lugar era lugar. Às vezes era difícil nos controlarmos até na rua ou no metrô. Dava vontade de pegar na mão, tocar o cabelo, dar um beijinho, esses coisas normais que todo casal faz mas que, pelo menos naquela época e

naquela cidade não era aconselhável a duas mocinhas. Lembro-me ainda das vozes maldosas 'Sapatão! Sapatão!' Ela continuava altiva e com a cabeça erguida. Acho que eu também parecia assim, ignorávamos para sobreviver, mas no fundo era uma punhalada. A gente nem falava disso depois. Às vezes eu sentia raiva e tentava convencê-la, indiretamente, a ser menos garçon-manqué, mas era impossível. Ela era assim e pronto, era aceitar ou largar. Eu aceitava e gostava dela assim apesar dos aborrecimentos que a sua

aparência nos trazia. Ou me trazia, talvez. Nem eu nem ela tínhamos esclarecido para a família a natureza da nossa relação, ninguém fazia perguntas. Os vizinhos falavam, na escola falavam, no trabalho da minha irmã falavam e eu nunca tomava conhecimento. A única reação clara quanto a isso veio do meu cunhado. Um dia, era aniversário do meu sobrinho e eu convidei Marina. O meu cunhado veio pegou na minha mão, pegou na mão de Marina e perguntou 'Como vai a vida de sapatão?' Eu fiquei vermelha, quente, morta de

vergonha na frente da Marina mas não tive coragem de mandá-lo tomar no cu.

Foi uma pena. Tentei conversar com ele depois mas ele disse que não foi por maldade. Então teria sido por quê?

E assim corria a nossa existência. Quase normal, não fosse os olhares dos outros sobre as 'nossas pessoas', como diria Madame Satã.

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