A Garganta da Serpente
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Um Casamento Alucinante ou Um Casamento Estranho com Zumbis no Meio

(Assis Arruda)

"Bom, mau, eu sou o cara com a arma."
- Ashley J. Williams, Army of Darkness

Vinte e quatro anos, recém-saído de uma faculdade de Publicidade, em verdade, mal cursada; boa aparência e um futuro incerto que por motivo de pretensa esperança insistia em classificar como "promissor". Pouco dinheiro no bolso, muitas ideias na cabeça, trabalhando ocasionalmente, e muitas vezes, mal pago. Uma de suas ideias - talvez a pior - era o casamento. Fazia anos estava de namoro com uma jovem que frequentava a mesma igreja que ele. Ela podia não ser a mulher dos seus sonhos, mas sabia engomar, lavar louça, varrer e cantava no coral. Depois de tantas rejeições e de muito sofrer por amor, encontrar alguém capaz de suportar seus tiques nervosos e aceitar condições de vida bem modestas, ainda que quanto a isso ele tentasse disfarçar, era quase um milagre. Mulher nenhuma o quisera até então, e se não fosse a mãe para o incentivar e trabalhar sua autoestima, teria se conformado com uma vida de solteiro. Quem sabe teria sido melhor assim.

Mas chegara o dia, e já era noite, a cerimônia começaria dentro de pouco mais que uma hora. Ele estava bonito, bem arrumado, cabelo escovado, limpo e cheiroso. A noiva veio depois, parecendo uma boneca de porcelana. Raquel, ou Jurubeba, como era mais conhecida, herdara alguns traços que só poderiam ser dos avós ou de algum parente distante. Não que fosse uma beldade, mas em pouco ou nada lembrava a aparência rude dos pais, típicos roceiros do interior. Também, desde pequena fora morar com os tios na capital, adquiriu modos exemplares e a mesma fé dos tutores. Em todo o tempo de namoro, de Assis nunca vira os pais da sua agora noiva. Conhecê-los pela primeira vez estava sendo uma experiência chocante.

Seu Pontifácio Inácio Jurubeba trazia uma arma de fogo, mais precisamente uma espingarda de caça, e achou lugar no primeiro banco da fila do lado esquerdo, reservado para os convidados da nubente. Sua carranca por si só era capaz de fazer o genro suar e bambear em tremeliques. Do pouco que se sabia dele, duas informações pareciam relevantes: ele já matara quatro lá na sua terra natal, e era dono de um boteco cujo nome Amiguinho Jurubeba parecia contraditório. Todos diziam que "amiguinho" ele não era de ninguém, a não ser que fosse do diabo. E quanto ao diabo, sua mulher se assemelhava ao próprio, mas chupando manga, e banguela. Difícil mesmo era dizer qual dos dois era o pior, pois a mulher além de mais feia que o marido tinha pouca educação e fama de ranzinza. Corria mesmo o boato de que lá nas suas terras o casal era conhecido como Durango Kid e Madame Satã. Porém isso, infelizmente, não era tudo.

Dona Betinha, a madrinha de casamento, chegara esbaforida e aos berros, contando uma história bisonha, difícil de se entender.

Socorrooo!!! Acudam, tem um enxame de gente podre correno pra cá!!! Cada qual mais horrive que o otro! Fechem essas portas, ligeiro! Eles vêm aí, bando de olhudos e dentuços, fedendo que nem cria de jumenta! Depressa, fechem logo tudo!!!

A descrição batia com a turma da rua 32, foi o que de Assis pensou. Ele também não gostava daquele povo, achava uns imundos, não os queria nas suas bodas, mas ao que parece, não fora sigiloso o bastante. Teria que falar com o padrinho de casamento, e esperava que ele tivesse colhões para enxotar os intrometidos quando chegassem na cerimônia. Não teria tempo, porém, de passar o aviso.

A balofa Dona Betinha, parada no portal da entrada principal, não parava de gritar e insistir que fechassem imediatamente todas as portas, mas ela mesma ficava ali, entupindo a passagem como uma rolha na boca de uma garrafa; de repente, uma mão esguia e pútrida veio como por detrás dela, agarrou a sua cabeça, e com um movimento brusco esticou seu pescoço, no qual se encravaram dentes da boca de um cadáver. As pessoas dentro da nave levantaram-se com um grito de horror, e muitos não resistiram ao ímpeto de correr. Enquanto alguns iam para o mais interior do edifício, outros fugiam pelas portas secundárias, sem saber que assim caminhavam direto para a morte. Todavia os seres avançavam como um grande exército ao redor daquele recinto no qual se abrigavam os sobreviventes de um apocalipse zumbi. De Assis entendeu isso e resolveu agir: tomou a arma do sogro - que ainda nem saíra do lugar, e só esboçava uma expressão de dúvida e aborrecimento com tamanha balbúrdia -, e destemidamente investiu contra os mortos-vivos, fazendo-os recuar a tiros. Cada bala saía com um estampido reverberante, e o efeito era não menos poderoso: as criaturas do inferno cambaleavam e tombavam violentamente, soltando gemidos macabros como se numa sinfonia satânica no início da noite. A custo, conseguia repelir os invasores, mas estes também logravam algum êxito, tendo arrastado para fora um certo número de vítimas, sem contar aqueles que adentraram o local em busca de presas fáceis como uma senhora idosa, bem conhecida dos congregados, que dependia de uma bengala para andar.

— Fechem as portas, rápido! — alarmou o noivo, quando enfim pudera livrar as entradas. - Vamos, fechem as portas!

Como ninguém o ouvisse, ele percebeu uma única solução: teria de trancar todas as portas sozinho!

Correu apressadamente para a esquerda, tropeçando entre as pernas dos bancos, porém chegou a tempo de passar a tranca sem maiores problemas. Voltou-se com um suspiro para dar de cara com a turba que novamente infestava a porta da direita. Retornou para lá sacudindo a espingarda no compasso de uma saraivada de balas: a massa tornou a recuar com força, alguns desabavam no umbral, definitivamente mortos. Na tentativa tosca de adentrar a igreja eles vacilavam e caíam por cima da pilha de defuntos, mas não desistiam de se esgueirar uns por sobre os outros, procurando cada qual vencer a porta primeiro. De Assis usava toda a habilidade como atirador adquirida em anos de jogatina de Counter Strike para não errar um tiro mesmo sem fazer pontaria - indignava-se quando não acertava prontamente na cabeça, o único ponto vital dos mortos-vivos. Sabia disso porque assistira George Romero um sem-número de vezes e sempre sonhara em participar de uma produção do gênero. Bem, estava tendo a sua chance.

Agora só restava a última, a porta principal. Do lado de lá uma multidão se espremia na passagem e podia-se ver que alguns já andavam pelo recinto, assustando os convivas. Em meio a choros e manifestações de desespero, a maioria abandonava a nave e fugia para a secretaria e a galeria, deixando-o só na contenção dos zumbis. Implacável, não arredava dedo do gatilho, numa luta injusta e sem trégua. Abateu um a pouco de jantar um menino na escada; outro maldito contornava uma sequência de bancos em direção ao corredor da lateral. De Assis o derrubou antes que chegasse lá.

Uma turba realmente grande disputava a passagem, e ele chegou a pensar que não poderia conter a invasão. Nojentos e contagiosos, os diabos traziam as roupas coladas à pele em avançado estado de decomposição, o que indicava já terem sofrido a mutação há um bom tempo, provavelmente há dias ou até semanas. Contudo, só agora ele tomava conhecimento da praga, quando ela se insurgia pela porta da igreja, justo no dia do seu casamento! E tudo que ele queria era ser uma pessoa normal, com uma vida comum, uma esposa, filho, casa... Se contentava em ser medíocre, em ser assalariado, passar por privações... Seria pedir demais querer ser feliz, ter um lar abençoado onde todos vivessem em harmonia? Por outro lado, morrer ali não deveria ser tão ruim. Até porque não lhe custava nada. Não obstante, o seu instinto de sobrevivência falava mais alto. Além de quê, não queria ser devorado por zumbis com dentes encardidos e um corpo fétido vagando por aí sem destino. Isso era decadência demais até para ele.

As balas se esgotaram e ele ficou parado no meio da igreja; verificou a munição para constatar o vazio; quando levantou os olhos deparou-se com um morto-vivo bem na sua frente, a um passo de tocá-lo. Nada podia fazer, por isso, cerrou as pálpebras em sinal de medo, fez uma careta de dor e aguardou a mordida do bicho. Uma lâmina afiada abriu caminho entre uma porção de miolos podres. O zumbi caiu. O algoz guardou a faca ensanguentada e arrancou com violência a espingarda das mãos do genro. Municiou-a, preparou o tiro e disparou para o teto.

— Fora — ordenou ele, terrível. — Já!

Como se ouvissem a voz do Príncipe das Trevas em pessoa, as criaturas se apressaram em deixar o local. Os maiores punham os menores sobre as costas e saíam de fininho. Por onde quer que se visse, os mortos ambulantes davam gritinhos de medo e levavam as unhas que não tinham aos dentes tremelicantes. Corriam todos para a porta, assustadíssimos, dizendo coisas do tipo "Manhê!" e, "O último a sair é uma galinha desdentada!".

Seu Pontifácio caminhou até a entrada principal, fechou-a e passou a tranca. Fora a coisa mais fácil do mundo. De Assis não acreditava naquilo. Devia haver algum engano; esqueceram de lhe explicar qualquer coisa naquela história. Que diabos estava acontecendo?, ele pensou. Nem Darth Vader poderia ser tão convincente.

De Assis conteve o nervosismo e esforçou-se para dizer as palavras quando o sogro voltava percorrendo o tapete vermelho em sua direção. - Caramba! Valeu, hein?

O homem, impassível, ergueu a arma e atirou. A bala estourou no peito do rapaz, lançando-o ao chão. Depressa a mãe e a noiva, escondidas atrás do altar, vieram socorrê-lo.

— Ninguém toma a minha espingarda sem pedir permissão — justificou-se Seu Pontifácio, indo sentar.

— Meu filho, meu filho! — Dona Irene o sacudia e dava tapinhas em seu rosto tentando reanimá-lo. Ele tossiu e depois se contorceu de dor.

— Eu ainda tô vivo? — quis saber.

— E desde quando vaso ruim quebra? — troçou um amigo, que se aproximava mais por curiosidade do que por querer ser útil para alguma coisa.

— Meu pai usa munição de sal grosso. Atordoa mas não mata — explicou Raquel Jurubeba.

— Vai dizer isso pros quatro que ele mandou pra cova lá no interior — retrucou Dona Irene, impaciente.

Sentaram-no num banco; ao seu redor chegavam muitos que estiveram escondidos em algum lugar nos últimos minutos. Em poucos instantes, apinhava gente cochichando de todos os lados. Enquanto a bala queimava em seu peito, de Assis conseguiu sentir-se pior: as tantas vozes entravam em sua cabeça e perturbavam-lhe a mente confusa. Ele ouvia mulheres fofocando entre si - dizendo que Seu Pontifácio era a própria encarnação do demônio-, crianças berrando, velhotes nervosos, sons indistintos, e sinos celestiais batendo em tom de boas-vindas. Mas aí ele pensou que já era sacanagem demais.

Jurubeba o abanava com um leque emprestado, a mãe retornava com um copo de água fria - mas ele queria sair dali. Deixar aquela gente para trás, se libertar dos seus olhares perscrutadores, como se pudessem ler os seus pensamentos. Ele sabia, a maioria estava ali porque fora convidada, mas teria desejado passar o final de semana com a família no sítio ou jogando futebol. Para eles, fora uma péssima ideia vir ao casamento, por isso praguejavam em segredo às suas costas. Um segredo, aliás, muito mal escondido pela cara feia que cada um fazia. O rapaz quis exclamar e dizer a verdade, vieram porque queriam se divertir, comer e se fartar. Nunca perderiam uma oportunidade como essa e também havia muitos ali que nem eram conhecidos seus, mas figurinhas tarimbadas em todas as festas da igreja local. Marcavam presença em tudo. Bastava ter comida.

Ele levantou-se e abriu caminho em meio aos curiosos que o cercavam. Dona Irene insistiu para que tomasse a água, ele não deu ouvidos, alegando precisar se lavar; garantia poder fazer isso sozinho.

Claudicando por força da bala, seguiu pelo corredor da lateral apertando na garganta os gemidos, para não chamar qualquer atenção. Era um vão vazio agora, não muito longo; uma curva mais à frente levava ao banheiro masculino. Era lá que precisava estar, livre de cochichos e sussurros. Com efeito, o seu casamento com Jurubeba estava se transformando num inferno, e a sua vida conjugal ainda nem havia começado! Arrependia-se de tê-la pedido em matrimônio; agora via o quanto estava errado. Sim, ele não quisera saber de mais nada, estava iludido, pensando que seria feliz. Mas ela dissera a verdade, uma verdade tão óbvia se ele não fosse um perfeito idiota. Jurubeba não o amava e ele jamais seria feliz. A sina do fracasso o perseguiria até a morte. Não pôde conter as lágrimas. Vivia uma mentira. Todos os seus temores enfim se realizariam, e ele mesmo podia ver como seria o seu futuro, uma sombra espectral de dor e infelicidade enevoava as suas esperanças. Tudo começava a dar errado a partir dali, era o marco inicial da sua ruína. Se em uma noite podiam acontecer tantas coisas terríveis, o que dizer de uma vida inteira na desgraça? Só o pensamento despertava nele os piores calafrios. Renegara o único amor verdadeiro, real, de sua vida; estupidamente, diga-se de passagem. E mesmo quando este bateu em sua porta, simplesmente não deu fé, e deixou que fosse embora. Oh, céus, quanta demência! E ela agora deveria estar morta! Morta! Devorada por zumbis canibais, sedentos por sua carne fresca e macia. Como ele podia ter deixado isso acontecer? O terror tomou conta do seu corpo, e ele se permitiu desabar, chorando pesadamente a derrota monumental.

Era tudo culpa sua, sim era...



Toda véspera de casamento é agitada, mas o que de Assis não suportava era a mãe tagarelando na cozinha junto com a empregada e duas mulheres fuxiqueiras da vizinhança. Bem que gostava de um negócio mais discreto, só no cartório, foi a noiva que insistiu por uma cerimônia, com direito a véu e grinaldas e tudo. Por causa disso tinha de aguentar a algazarra e ainda ouvir a opinião de todos, considerar os conselhos bobos sobre como se vestir e fazer a barba, como se ele não soubesse o que era um barbeador ou pôr uma gravata. Aliás, a dele era de zíper. Tentavam convencê-lo de que uma borboleta ficaria melhor, e ele sorria aquele sorriso falso para ficar só na evasiva e poder aparecer depois com a gravata que tinha mesmo. É claro que não estava muito aí para a forma como as coisas deveriam ser feitas, mesmo porque não era por sua vontade que ia se casar para um tanto de gente ver.

A campainha tocou ao meio-dia e o rapaz se prestou a atendê-la, evitando assim ter de ouvir mais conselhos de gente que nem sequer era feliz no próprio casamento para poder dar conselhos sobre matrimônio a outrem. Abriu a porta e para sua surpresa estava lá a última visita que esperava num dia como aquele: Natália, o amor de sua vida por quase quatro anos, até que ele mesmo perdeu as esperanças de um dia ser feliz ao lado dela. Uma moça cativante, não apenas pelo capricho com que a natureza a dotou, mas por uma variedade de qualidades raramente vistas numa garota qualquer: a principal era não ser uma cabeça-de-vento, por exemplo. Não significando que todas as garotas de sua idade eram fúteis, mas a falta de conteúdo parece epidêmica e tão perigosa quanto a estupidez. Ela estava parada à sua porta, exatamente como sonhara por todos esses anos. Um sorriso maravilhoso iluminava sua linda face, digna de atriz de cinema nacional, reacendendo a chama de uma paixão que ao menos para ele não havia terminado, não de verdade. Ela tirou os óculos de sol com delicadeza e disse.

— Oi. — Olhava para ele com uma expressão divertida ou talvez um pouco receosa. — Eu tava de passagem e resolvi te ver — voltou a cabeça rapidamente para o carro estacionado lá fora. — E aí, como vão as coisas?

— Vão bem. Entra um pouco, deixa eu te oferecer pelo menos uma água.

— Não, não — a garota recusou. — Eu queria saber se você tá bem porque na verdade eu preciso te dizer uma coisa. — Baixou os olhos, passou a mão pela vasta cabeleira meio sem-jeito e tornou a fitá-lo. — Eu fui a uma vigília de oração ontem - hesitou - e tive uma revelação. Nela eu via você casado com a Jurubeba e você... — pausou procurando uma maneira amena para o que ia dizer. - não era feliz.

De Assis era todo ouvidos. Ela continuou.

— Eu via vocês com muitos filhos, morando numa casa pobre com muitas contas para pagar. Você não conseguia prosperar e a sua carreira profissional se resumia ao fracasso. Aí todas as noites a Jurubeba lhe cobrava e colocava a culpa em cima de você pela miséria que estavam passando. Mais tarde ela começava a lhe trair e a sair com os seus vizinhos e com o seu melhor colega de trabalho, até arrumar emprego num prostíbulo. O seu filho mais velho assumia ser gay aos doze anos e...

— Ei, espera um pouco — interrompeu. — Por que está me dizendo isso agora?

— Bem, eu não queria que você casasse enganado, então...

— Olha aqui, eu vou casar com a Jurubeba amanhã, você não pode simplesmente bater na minha porta e falar mal dela desse jeito.

— E-eu não estou falando mal da Jurubeba, acredite. Pelo contrário, eu queria muito vê-lo feliz. — Suspirou e continuou. — Eu sempre gostei de você, cara. Eu ficava te olhando, observando o teu comportamento, eu via que você também olhava pra mim e eu achava isso legal. Ficava imaginando o dia em que você me pediria em namoro; mesmo depois que você começou a namorar a Jurubeba eu não perdi as esperanças e acreditei que tudo ainda daria certo entre nós dois. Eu até me lembro de quando a Jurubeba conversava a seu respeito com as meninas. Ela dizia que jamais aceitaria namorar um cara tão desajeitado e só estava nessa porque ela também não tinha opções, que era uma encalhada e tal. Daí vocês noivaram e eu fiquei preocupada, mas continuei confiando que uma hora você ia se dar conta do erro. Então a Jurubeba começou a falar que ia casar porque os pais já não tinham mais condição de sustentá-la com o que ganhavam lá no interior e os tios agora tinham um neto pra criar. Não sei como ela pôde falar uma coisa dessas...

— Quem sabe, talvez devesse ter me dito isso antes.

Natália olhou-o com um novo lampejo de admiração. Ele parecia um pouco mais forte e devia estar se cuidando melhor desde a última vez que o vira.

— Nossa, cara, você tá lindo. Pena que a Jurubeba não seja capaz de te dar o valor que você merece.

Ela afastou-se lentamente, tomando o caminho de volta para o carro, onde o pai a esperava. Realmente, não era uma garota de se jogar fora. Morena, de pele clara, portadora de um corpo e saúde invejáveis. Não à toa era personal trainer de academia, tendo terminado a pouco a faculdade de Educação Física. O sorriso encantador e o timbre argentino de sua voz constituíam uma atração à parte, o nariz comprido e estreito, longe de ser feio, denotava um charme e beleza particular, só seus, a somar-se às formas curvilíneas visivelmente trabalhadas. Especialmente hoje estava fantástica, de malha roxa, colã preto e tênis; os cabelos ondulados, soltos, cortejados pelo vento a toda hora. Ela recolocou os óculos, lamentando a sorte de ambos.

— Queria mesmo que as coisas tivessem sido diferentes entre a gente.

Deu um último sorriso, entrou no carro e saiu.

Não adiantava chorar pelo leite derramado, sabia disso, ainda assim, voltou para dentro de casa com raiva de si mesmo, com raiva de Natália. A mãe perguntou quem era quando subia as escadas.

— Nada. Só uma amiga de passagem.

Ele nem poderia imaginar que nunca mais a veria...



De Assis a considerou uma tola, mas agora entendia o quanto esteve errado por pensar assim de alguém tão adorável. Afinal, as garotas realmente esperam uma atitude dos seus pretendentes. Pelo menos, a maior parte delas. Era tolice sim, da parte dele, esperar o contrário. Especialmente quando não fora corajoso o suficiente para abrir o coração e exprimir seu desejo por ela. Tudo o que restava era a tristeza. Tristeza pela perda, por saber que hoje, talvez, poderia estar se casando com alguém que o amava e não com Jurubeba, uma interesseira preparada para arruinar sua vida. Provavelmente, Natália não estava mais viva, deveria ter se transformado numa dessas criaturas, vagando sem destino na escuridão da noite em busca de carne humana; contudo seria lembrada com carinho por tudo que representou para ele até o último dia de sua existência. Moraria em um lugar guardado em seu peito, onde ninguém poderia tomá-la de si outra vez. Não sabia se algum dia seria capaz de perdoar-se, mas tinha uma certeza: jamais seria feliz ao lado de Jurubeba.

Prosseguiu forçosamente até o banheiro, porém se pensasse que a noite não poderia lhe reservar maiores surpresas, estava muito enganado. Redondamente enganado, até. Um ruído musical fugia do compartimento, uma balada dançante de um astro do pop. Quem esqueceria um player de música ligado no banheiro? Abriu a porta sem se preocupar com o que poderia encontrar lá dentro e o arrependimento foi quase que instantâneo. Um sujeito trajado espalhafatosamente ocupava o vaso sanitário, com as calças descidas até os tornozelos, exalando um odor fortíssimo. O rapaz franziu o cenho de nojo e quis sair depressa, murmurando um "Me desculpe" sem muita convicção.

— Não, espere — respondeu o outro, abaixando o jornal que ocultava a sua cara de palhaço. — Acho que terminei aqui.

Subiu a roupa e levantou-se sem dar descarga. Era a figura icônica de um palhaço, com nariz vermelho e cara branca, que no seu caso parecia pouco hilariante. Desligou o aparelho no bolso e ofereceu a mão sem lavar para um cumprimento.

— Meus parabéns.

— Por quê? — questionou o noivo, ignorando a mão estendida.

Habilmente, o palhaço puxou-o pela gravata e sacou uma faca, a qual fez questão de apertar bem rente ao pescoço do infeliz.

— Você é o primeiro otário que eu pego hoje! — Roubou-lhe a carteira, em seguida soltou um riso de sarcasmo. — Como eu gosto de dizer: "Perdeu, preibói"!

O bandido meteu-lhe um golpe na barriga e o largou no chão, como se fosse lixo.

— Mas que carteira mais sem-graça, cadê dinheiro nisso aqui?! Essa merreca não paga nem o almoço do palhaço!

O jovem rolava de um lado para o outro, agonizando. O bandido agarrou-lhe o braço e pegou o relógio, depois o celular, o lenço de seda no bolso do paletó e até o pingente dourado.

— O que é que você vai fazer com isso, pô?! — gemeu. Tapava a ferida com a palma da mão.

— Vender na feira, ora bolas — respondeu o meliante. - Além do mais, morto não precisa de nada disso.

Como assim? De Assis pensava que todo mundo nas redondezas, quiçá na região toda, tinha ido para o saco, mas ainda haveria até feira onde vender pertences roubados em meio a uma praga de cadáveres ambulantes rondando por aí. É, as coisas não mudaram tanto afinal...

— E o player do George Michael?

— Roubei de um magnata — confessou o bandido. — Tô vendendo por 500 pratas, quer?

— Agora só se for no crediário.

Uma poça rubra se formava ao redor dele. O homem olhou-o com desprezo enquanto guardava os objetos furtados num saco e o levava às costas.

— Desgraçado de uma figa — disse, parecendo indignado. — Como é que tu nasce só uma vez e ainda é desse jeito? Pensava que ia ser estrela, ?

— Tipo o Marlon Brando.

- Nada disso. Aqui tá tu, ferradão, sem dinheiro, pronto pra casar com uma guria folgada, doidinha pra te meter um monte de chifre.

O palhaço ladrão continuou a troçar.

— Mas tu pode morrer. E é a melhor coisa que tu faz. Ninguém vai sentir muita falta de ti não. Nem a tua mãe. Ela vai chorar o teu enterro, mas depois vai achar que foi melhor assim, que foi do jeito que Deus queria e que tu era mesmo muito mole pra essa vida de cão. Aí ninguém mais vai se lembrar de ti. Ninguém vai saber quem tu era, não vai ter ninguém pra escrever a tua história. — O palhaço deu um riso. — Ah, e tu achava que ia ser tema de livro best-seller, né?, os gringo ia tudo ler sobre a tua vida!

— É - admitiu. — De Assis Decide Morrer.

— Agora eu vou indo — o bandido apanhou o chapéu e uma bengala no canto do banheiro. — que essa conversa já tá me deixando deprimido.

O palhaço afastou-se passeando divertidamente enquanto assoviava a Aquarela do Brasil, porém não antes de se despedir, pois também tinha seus momentos de boa educação.

— Até mais colega. Nos vemos no além.

De Assis desejaria nunca mais encontrá-lo, nem aqui ou em qualquer outro lugar. Mas precisava de uma coisa.

— Ei, volta aqui maldito, termina o que começou!

O palhaço deu um giro nos calcanhares e resolveu atender à súplica do infeliz. Afinal, era falta de cortesia não atender ao último pedido de um moribundo. Sacou a arma e veio a galope.

— Já que insiste, aqui vai mais uma por conta da casa!

O homem cravou a lâmina bem fundo no peito do desgraçado, que berrou à dor lancinante do golpe.

— Espero que esteja mais satisfeito agora.

Voltou a pegar suas coisas e desta vez foi embora, saindo por uma porta no fundo do corredor. Mas bem, não havia zumbis lá fora?

Um grito agudo e o ruído similar ao de um pescoço estrangulado chegaram aos ouvidos do moço. Pouco importava, isso não era problema seu. Esperou o corpo esfriar e a visão escurecer. Esperou mais um pouco. Nada. Sentia um incômodo terrível por causa dos ferimentos, mas não parecia estar deixando este mundo. Um novo burburinho se formava agora, deviam estar procurando-o. Não podia deixar que o vissem assim; arrastou-se o mais apressadamente para a escada, erguendo os braços para galgar os degraus como um nadador na piscina. Contudo, um rastro de sangue denunciava todo o percurso de sua subida. Venceu dois lances de escada com muita determinação para depois nausear o cansaço. Tomou fôlego e continuou pela antessala, iluminada apenas por uma réstia de luz que perpassava da porta vitral da galeria. Aqui eram guardados os ornamentos da igreja, vários jarros com flores plásticas ocupavam a mesa no centro. Ele aproveitou para quebrar alguns deles em sua cabeça. Quando se convenceu de que a brincadeira era inofensiva, avançou para o passo final.

Abriu a porta da galeria. Vários lances de bancos simetricamente organizados de cima a baixo possibilitavam uma visão completa do altar de onde quer que se sentasse. Era um espaço um tanto amplo, havia ventiladores no teto e também com pedestal. Todos estavam parados, pois a galeria estava vazia. Fazendo força para manter-se em pé, apoiado na mureta que o separava de uma queda de seis ou sete metros, encheu os pulmões decidido a acabar com sua existência miserável. Era o último recurso, a última chance que tinha de evitar um casamento indesejado com Jurubeba. Precisava dar certo. Ou errado, vai saber...

Conseguiu pular no momento em que tia Gerisvânia alcançava a galeria.

Ele fez uma trajetória indo de encontro aos assentos de madeira. Um grande estrondo reverberou, todos ficaram estarrecidos. Não esperavam uma entrada do noivo tão bizarra. Tossiu quase sem ar, revirou os olhos, mas para sua infelicidade, fora uma viagem curta demais. Talvez um braço e costela quebrados, com sorte, poderia ter uma hemorragia interna.

A mãe e os parentes vieram de imediato socorrê-lo. Estenderam-no num banco, trouxeram álcool para esfregar em seus pulsos, mertiolate e band-aid para estancar os sangramentos, e pomada de cânfora, um "remédio" com poderes curativos quase xamânicos na opinião de nove entre dez pessoas presentes no lugar.

— Meu filho, meu filho — chorava a mãe. — Você tá bem, meu filho, fala pra mamãe?!

— Tô bem...

— Mas como que você tá bem, meu filho, olha só isso, todo ensanguentado, meu Deus...! — Dona Irene não se decidia se soluçava ou dizia.

Bem perto de me ferrar de vez, pensou, diante do inevitável casamento que tinha pela frente.

Algumas pessoas murmuravam ao redor dele alguma coisa sobre Seu Pontifácio, que ele era o "líder" da turba lá fora, que era só de Assis casar e tudo voltava ao normal, com o caipira retornando para a sua terra e levando os "seus". De Assis ouvia isso enquanto a mãe passava o pente em seu cabelo, arrumando o desalinho.

— Já assistiu Hellraiser? — perguntou um convidado do noivo.

— É claro — respondeu.

— Ele é tipo o Pinhead, tá ligado?, o chefão dos cenobitas, a capetada toda.

— Mas, e o cubo?

A voz no microfone chamou os noivos a comparecerem ao altar nesse instante, por isso de Assis não teve tempo de ouvir a resposta do amigo. Bom, ficava para depois que trocasse as alianças com Jurubeba.

A contragosto foi levado pelos parentes, que o ajudaram a permanecer de pé. Ora, a cerimônia precisava acabar, porque amanhã é segunda-feira e todo mundo tem que acordar cedo para trabalhar. Era um sacrifício pessoal em prol da felicidade alheia, mas se o Batman pode fazer algo assim, de Assis também podia. Afinal, quem disse que ele não era um super-herói?

(Fortaleza, 13/12/2010 - 24/05/2011)
  • Publicado em: 20/04/2017
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