A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Ilha mouca

(Anselmo de Sousa Gomes)

Não me dei conta dele quando desembarcamos, dentro da noite fria, enrugados até os ossos por causa das descargas elétricas e do receio. Durante a espessa viagem de três dias inteiros, arranjei ânimo para prestar atenção em alguns de meus novos companheiros de cárcere. Do lado esquerdo do comboio havia as expressões mais mórbidas. Um garoto mal formado contraía-se, cansado de tanto soluçar e urinar nas calças; dois grandalhões mal-cheirosos trocavam olhares cúmplices sempre que se esqueciam de seus ferimentos; um velho raquítico dava a impressão de querer constatar o sucesso de cada respiração; uma mulher da vida sorria sarcástica como se já soubesse o que a aguardava. Do lado oposto, figuras ainda mais estranhas fendiam aquela tristeza com gemidos, pragas e inquietação - eu era um deles. Entre os tais, um rapazola de aspecto torpe consumia um fumo saído não imagino de que esconderijo; três meninotes choravam desesperadamente; uma senhora bem vestida cuspia e xingava, olhando-nos com desprezo; eu, por meu turno, havia contraído qualquer espécie de reação físico-psíquica às feridas, estrebuchando num canto do comboio.

Mesmo cuidando em observar, não o notei. Somente mais tarde vim saber por quê.

A prisão a que nos destinávamos era popularmente conhecida como "Ilha Mouca". Instalada a oeste de Rigonoba, seus muros irregulares de cor escura davam, ao passante que cruzava a via de acesso rumo à cidade, a impressão de uma enorme e lúgubre montanha artificial cravada bem no meio do vale Allete. Recebera esse apelido porque a imposição básica a quem quer que ali se "hospedasse" consistia a inibição pura e simples do ato de falar. Tanto que, logo que um prisioneiro chega, é implantado em sua garganta um mecanismo que suprime imediatamente a atividade das cordas vocais. Desse modo, toda a sua linguagem se reduz a patéticos grunhidos. A finalidade desse recurso é impedir ainda mais a aproximação entre os prisioneiros. Envolvimento pode gerar união e união facilita a contestação. Mudos, somos isolados com nosso próprio universo mental. Em suma, inofensivos.

Devidamente enjaulados, durante o dia preenchemos nossas horas com atividades agrícolas, culinárias, artesanais e mecânicas. São-nos servidas duas refeições diárias, na maior parte constituídas de uma ração insípida. A rotina é bastante rígida, não sendo admitido qualquer tipo de contato com outro condenado. Dormimos em celas unitárias, minúsculas, sendo despertos antes mesmo do amanhecer por um apito irritante, extremamente pontual. Ao longo do tempo, suicídios, acessos de fúria e surtos de loucura eram presenciados, tornando-se em pouco parte do cotidiano da Ilha. Nos dois últimos casos, o castigo quase era invariavelmente a execução.

Cheguei à conclusão de que o emudecimento também é um modo de não sabermos quem é quem neste lugar. Eu, por exemplo, sei apenas de mim. Vim parar aqui por ser pego vendendo vales-alimento a um contrabandista Mataguenho. Precisava do dinheiro para ajudar a uma prostituta local com uns problemas de saúde que a estavam matando. Não que eu me compadecesse. Acontece que a vadia deu de me perseguir pelas ruas, implorando, gritando, chamando a atenção de todos. Não queria que um colega de trabalho visse aquilo e me delatasse na estação metalúrgica. Podia perder o emprego. No entanto, o resultado foi bem pior. Mas o fato é que esse é o meu delito, o único que conheço aqui na Ilha Mouca. De resto, não faço a menor ideia da infração dos outros prisioneiros. Para falar a verdade, nem sei quem são essas pessoas. Vêm de lugares distintos, mesmo dos outros dois continentes. Assassinos, estupradores, ladrões baratos, sádicos, corruptos... Não tenho a menor ideia de quem convive comigo todos os dias. O que teriam feito os três pirralhos chorões, a senhora bem vestida, o rapaz mal formado, os dois grandalhões? E esses outros milhares?

A Ilha não tem como ouvi-los e me contar.

Entre a pequena população contida aqui, está aquele que não notei no comboio. Nos meus primeiros dias de prisioneiro, procurei manter as regras da melhor maneira possível. Trabalhando, comendo e repousando maquinalmente, sem ao menos olhar a minha volta. À hora das refeições, sentava no meu lugar e mastigava no silêncio que me foi forçado. Sem mais, um dia qualquer eu caminhava pelo refeitório quando senti um solavanco por trás. Temeroso às normas, dirigi-me apressado ao meu assento. Só então pude constatar o que havia ocorrido. Um indivíduo macilento, de cabelos volumosos e modos contidos tinha, em sua distração, colidido comigo e consequentemente derramado toda a sua comida. Estava ali, estático, olhando para o chão como se uma poça de sangue tivesse surgido bem na sua frente. Não movia um músculo. Parecia ter perdido instantaneamente a respiração. Logo apareceram guardas, furiosos, desferindo golpes secos de barras metálicas sobre o dorso daquele homem. O mesmo suportou a agressão no mais absoluto silêncio, como se ainda permanecesse em estado de torpor. Foi conduzido de volta à sua cela, no que todos nós tivemos que seguir com nossa refeição, como se nada tivesse acontecido. Fora sempre assim. Uma vez ou outra uma confusão rompia a normalidade daqueles momentos, tendo que ser ignorada por todas as suas testemunhas. A ordem era elemento primordial naquele lugar. No entanto, uma dessas coisinhas ínfimas, inexplicáveis e indeléveis que nos tomam de assalto as entranhas nos instantes mais inesperados deu de me ocorrer bem ali. Não pude deixar de guardar comigo um interesse até certo ponto estranho em relação ao sujeito pálido. Não sei dizer que aspecto daquela figura deprimente ficou grudado na minha memória ou porque diabos passei a, frequentemente, pegar-me pensando nele durante o dia. Não era ninguém, não possuía qualquer qualidade ou esquisitice que se pudesse pôr em relevo. Constituía, dos pés à cabeça, uma sombra sem importância, um a mais para ser devorado pelos muros da Ilha Mouca. Todavia, qualquer faísca de veemência advinda do sujeitinho instaurou-se no meu interior. Além do mais, outra coisa que eu não esperava é que isso fosse render como rendeu.





Um fato comprovado é que o silêncio a tudo expande. Um simples segundo, quando imerso no vazio da completa ausência sonora, ganha um aspecto secular. Principalmente aqui. Não é de estranhar que muita gente dentro destes muros enlouqueça. Eu mesmo poderia jurar que vultos esquisitos cruzam diante de mim, todas as noites. Mas o mais gozado é que, depois de tanto tempo afeito à surdez, você consiga tornar palpáveis os sons gravados na sua memória. O que antes era apenas uma impressão fosca pode se tornar concreto. Percebo nitidamente tons de grave e agudo, melodias da infância, ranger de máquinas antigas, gargarejos de meu pai, o estalido de um beijo, todo o som confuso e belo de uma noite na cidade. Em suma, uma orquestra insana dança para mim noturnamente, enquanto luto pelo sono.

Na noite do incidente acontecido no refeitório, não seria diferente. Recolhi-me no horário instituído, assim como o restante dos prisioneiros. A iluminação das celas iria embora em cinco minutos, sendo que cada uma delas era devidamente monitorada por câmeras de vigilância, equipadas com um sistema especial de funcionamento para a mais completa escuridão. Desse modo, eu estava constantemente cercado de olhos eletrônicos. Precipitava-me no leito quando, tocando maquinalmente meu único bolso traseiro, senti um volume. Antes de qualquer movimento brusco, lembrei das câmeras. Tinha que tornar meus movimentos completamente insuspeitos. Controlando a tensão que se atinha sobre mim, fingi uma coceira e, do modo mais dissimulado possível, arranjei uma forma de catar aquilo imediatamente. Senti uma leve rugosidade, enquanto interpunha o objeto entre os dedos. Deitei-me de bruços, sem movimentos esparsos, virando o rosto parcialmente na direção da parede, enquanto apoiava-o com ambas as mãos, aparentando naturalidade. Foi então que, tendo o item bem próximo de meus olhos, abri cuidadosamente os dedos que o ocultavam. Constatei, confuso, que se tratava de um pedaço velho de madeira. Como fora parar ali? Minhas obrigações diárias até então não haviam me conduzido à carpintaria. Foi no meio dessa indagação que distingui, num dos lados do pequeno estilhaço, uma inscrição, entalhada desgraçadamente por mãos descoordenadas. Sentindo a iminência da escuridão, li: "Você se debatia como um catruch degolado naquele comboio. Chamo-me Dibnus."

A luz apagou, como se concluísse um passe de mágica.

Durante uma hora inteira não pude me mover, boquiaberto com o que ocorrera. Inúmeras perguntas ocorreram-me, mas nenhuma delas respondia como aquele pedaço de madeira havia ido parar no meu bolso. Depois de algum tempo constatei, mais calmo, que o suspeito reduzia-se a um dos passageiros daquele comboio. Contudo, eu ainda não havia reencontrado nenhum deles aqui dentro. Além do mais, qualquer contato físico é proibido, ordem que procurei cumprir seriamente. Foi então que recordei do incidente. Era isso! Só podia ter sido o tipo macilento. Aquele encontrão não havia sido acidental. O desgraçado planejara tudo! Mas como eu não o notara no comboio? Mesmo sob esta dúvida, aquele sujeitinho era a única alternativa possível...

Passados esses primeiros momentos, dei início a um longo processo psicológico para tentar compreender como se dera aquela façanha; como esse tal Dibnus conseguira estabelecer contato comigo, e por quê.





A noite foi-se num pandemônio. Um turbilhão de pensamentos me suplantara o juízo, soterrando-me de dúvidas e sobressaltos. Dibnus era agora parte de uma realidade súbita, um cataclismo que conturba de vez toda a ordem que eu vinha tentando estabelecer desde o meu ingresso na Ilha. Contato! Um outro havia proposto, de forma ousada e impressionante, aquilo a que chamamos comunicação. Eu me sentia profundamente abalado. Talvez o encontrasse no dia seguinte... Como ele reagiria? Como eu reagiria? Havia muito em que pensar dentro da noite tão curta. Minha excitação era tanta que eu quase me esqueci das câmeras. Desse modo, procurei equilibrar minha inquietação de modo a não levantar suspeitas. Em relação ao pedaço de madeira, depositei-o cuidadosamente no aparelho sanitário de minha cela, enquanto fingia limpar-me, dando em seguida o sinal de descarga e eliminando peremptoriamente a prova.

O amanhecer veio como se eu o arrancasse do horizonte com os próprios punhos. Tudo parecia redesenhado, adornado vivamente de uma nova e assombrosa possibilidade. Naquele dia, todos os prisioneiros dos setores norte e oeste (do qual Dibnus e eu fazíamos parte) estariam encarregados da limpeza e manutenção da frota penal, uma interminável fila de praticamente três centenas de veículos destinados a todo tipo de serviço de transporte, desde a desova de prisioneiros mortos até a condução indiferente dos inspetores periódicos. Tínhamos um longo trabalho pela frente. Mesmo aos milhares, estávamos diante de uma situação sofrível, em se tratando da própria frota. Alguns dos veículos estavam reduzidos a pilhas de sucata, e mesmo os mais conservados apresentavam algum tipo de problema crônico. Porém, as ordens eram para que, ainda no final daquele expediente, o estado geral do patrimônio estivesse em condições infinitamente melhores. Escorados à espessa amurada ou rondando por cima de nossos ombros, uma multidão de guardas observava-nos as tarefas inquisidoramente, loucos por uma fatia de nosso couro criminoso. Mas, para além desse encargo ofensor, os homens de lei estavam ali para garantir a comunicação entre os prisioneiros por meio de um tosco sistema de anotações, no qual repassávamos dúvidas e instruções, devidamente lidas por eles aos destinatários. Solução patética, como tudo o que nos rodeava.

Assim sendo, os trabalhos foram divididos da seguinte forma: quem possuía algum conhecimento de mecânica ficaria responsável unicamente pelo conserto dos veículos, enquanto que os leigos (a esmagadora maioria) cuidariam de tarefas auxiliares, como lavagem, transporte e encaixe supervisionado de peças. Como gravado em meu relatório de habilidades, tinham conhecimento do meu antigo emprego como mecânico aeronáutico. Destarte fui encarregado da manutenção de um enorme rebocador aéreo, nada mais nada menos que uma grotesca velharia caindo aos pedaços. Nem sabia por onde começar. Teria como auxiliares doze criaturas dos mais variados aspectos e procedências. Um punhado da corja adrobana.

Não é preciso dizer que minha mente estava totalmente voltada para Dibnus. Revolvia-me intimamente com o que havia ocorrido no dia anterior, realizando a minha tarefa mais por instinto prático que por atenção. O que o levara a correr um risco tão grande? Por que eu? Havia algo de especial na minha pessoa? Quem diabos era aquele sujeitinho? Estaria ele por ali? Esta última indagação bateu forte, fazendo com que eu desesperadamente corresse os olhos em volta, tentando distinguir sua figura esquisita em meio ao fervilhar silencioso e atordoado que se espraiava por todo o estacionamento. Sim, haveria de estar por ali, afinal de contas pertencia ao mesmo setor que eu. Dibnus, meu inesperado e obsessivo tormento, era um daqueles milhares de infratores diante de meus olhos...





Não acredito em milagres, destino, ou coisas do tipo. Em Adrobah, só há espaço para o ceticismo, o vazio, a retumbante bordoada cotidiana de nossa realidade. É o que nos tem provado a desgraça inalterada da recente história desse planeta. Desse modo, desde que desviara a atenção de minha tarefa para olhar o movimento silencioso do pátio, à procura de Dibnus, eu não esperava nada mais que obter uma sorte ocasional e encontrá-lo: pura probabilidade. Contudo, o que sobreveio a partir de então abalou consideravelmente meus conceitos à cerca de haver ou não um propósito maior em nossa miserável existência. Pois naquele mesmo momento alguém se lançou violentamente contra o meu corpo, envolvendo-me em seus membros feito um filho que se vê forçosamente obrigado a separar-se da mãe. Rolamos no chão e eu senti que algo pontiagudo era inserido dolorosamente em meu abdômen. Desesperadamente atordoado por aquele ataque súbito, debati-me ao máximo no intuito de reconhecer o ofensor. Mas, antes que eu conseguisse qualquer coisa, o sujeito imobilizou-me no solo e, pondo-me face a face consigo, emitiu um ruído gutural que posteriormente vim reconhecer como a tentativa desgraçada de uma gargalhada.

Era Dibnus.





Nos meus tempos de criança, minha mãe levava-me ao Parque Termal de Elva. Porém, o que eu apreciava mesmo ali não eram as fontes de água medicinal. Havia uma pequena alameda silvestre, um tipo de túnel verde que subia sinuosamente em torno de uma elevação rochosa, até um ponto misterioso nas entranhas da mata. Enquanto mamãe desmaiava gostosamente nas águas, eu escapava pelas veredas umbrosas daquele duto natural. Em certo ponto, onde a floresta parecia querer adensar-se mais, surgia inesperadamente sob meus pés aquela revelação: um grandioso vale rochoso aparentemente virgem, espalhando-se de modo labiríntico por toda a consumação do horizonte. Tudo eram então morros chapados, amarelados, que sob a luz crepuscular disfarçavam-se em enormes monstros azul-grená. Ali, bêbado da imagem, eu perdia-me do mundo conhecido.

Era esse fantasmagórico refúgio que eu buscava insanamente em minhas lembranças, então, como alento à desgraça que desabava sobre meus ombros na Ilha infernal. Ainda não estava em condições de compreender o ambiente em que me encontrava, contudo minha primeira impressão entorpecida de sangue e dor era a de um compartimento circular, de uns dois metros quadrados, cujo teto consumava-se numa espécie de formação oval. Todo aquele antro fechava-se em concreto azulado e rígido, havendo como respiradouro somente as frestas ínfimas da estreita porta metálica e o espaço de uma janelinha também ovóide, não maior que uma cabeça, por onde a luz anêmica de um sol ignorante penetrava tristemente. Minha carcaça, alquebrada, jazia esparramada junto à parede. Os guardas estavam famintos de violência naquele pátio e não pouparam de seus recursos sobre Dibnus e eu. Dibnus...

Só então, como que desperto por um choque, pude perceber que havia mais alguém na cela. A luz era terrivelmente fraca, mas eu pude distinguir um montículo humano enroscado em si mesmo, bem à minha frente. Estava imóvel. Desesperado com uma hipótese, dei de movimentar-me em sua direção. Logo pude constatar que havia fraturado a perna esquerda, algumas costelas e dois ou três dedos das minhas mãos, além de haver perdido uma quantia incerta dos dentes. Feito um verme, arrastei-me ao encontro daquele outro, gemendo horrivelmente com meus ferimentos, sentindo o gosto travoso de meu próprio sangue inundar mais e mais a minha boca. Como que percorrendo a distância de um mundo, finalmente encostei-me sobre os ombros daquele estranho. Respirava fracamente e seu corpo inteiro queimava numa febre hedionda... Todavia, sentir-lhe o contato vivo, receber daquela carne alheia o calor de que fora privado me fez estremecer profundamente. Desencavei seu rosto do peito arfante e confirmei minhas suspeitas. Se o plano de Dibnus era de algum modo aproximar-se de mim, então o miserável havia conseguido.



Qualquer prisioneiro da Ilha Mouca sabia que, de uma maneira ou outra, qualquer infeliz que fosse arrastado para a cela de teto oval estava sumariamente condenado à execução. Não seria diferente conosco. Por isso não se importaram em nos deixar no mesmo compartimento, tentativa sórdida de uma piada cruel para nossas últimas horas de vida. Mas não foi bem assim.

Um dos olhos de Dibnus estava inutilizado, enquanto o outro me fitava atentamente. Dizia coisas. Seu estado físico era muito mais lamentável que o meu. No entanto, seu corpo inteiro parecia fervilhar de um ânimo impossível. Todo ele era palavras, frases, sentido. Agarrava meus cabelos, empastelando-os com seu sangue. Nossos corpos, abatidos e trêmulos, comprimiam-se como um só. Não, eu não estava sozinho, não tinha sido apartado do mundo por uma barreira qualquer de solidão em que apenas a minha pessoa existia, sendo tudo o mais delírio. O contato com aquela carne irmã, sujeita ao mesmo que eu, fazia-me repentinamente crer. Dibnus sabia disso o tempo inteiro... aquele desgraçado! Sabia de tudo desde o comboio, quando se fez de invisível aos meus olhos. Talvez tenha me escolhido ali, por um motivo que eu nunca descobri. Agora, naquela cela, contando os últimos instantes de nossas vidas, havia tanto que saber um do outro. Sentia (tenho convicção que Dibnus também) aquela euforia juvenil que atiça os corações em novo contato, perdidos na ansiedade de inteirar-se, trazer para si um universo alheio, incógnito. O tempo corria e eu sentia como se houvesse começado a viver ali.

Com as cordas vocais inutilizadas, a nossa linguagem construía-se pelo corpo: palavras agrupando-se no intervalo dos dedos, escorregando pelos olhos, dançando frenéticas nas palmas dos pés, revoluteando entre as dobras dos joelhos, viajando de um para o outro, entendendo-se nas mãos, nas caretas, nos sons. Desvendamos um reduto onde as palavras convencionais não podem estar. Ali não cabem a voz, os fonemas, o barulho do entendimento. Esse é o espaço abstrato para a comunhão das almas, o refúgio último onde se compactuam as semelhanças. Nesse esconderijo o mundo inteiro esfumaça, perde importância, havendo espaço apenas para um que tacitamente diz e outro que tacitamente ouve.

Para além da dor rascante, do sangue vívido, da consciência de uma morte premente, Dibnus e eu havíamos estacionado naquela dimensão, alheios, resplandecentes de uma luminescência dual que nos tornava inatingíveis.

Dizíamos coisas...





Destarte, quando grudaram em nossa pele o adesivo envenenado, trazendo-nos o branco frio da inexistência, já não fazia diferença. Nossos algozes, ao nos proporcionar a proximidade física naquelas últimas horas, haviam nos dado um presente acima de sua compreensão. Em vez da morte, nosso último pensamento foi sobre o quanto nos preenchia uma sensação gorda de vida.

Mais tarde, quando um dos guardas ia fechar meu corpo no compartimento de incineração, encontrou cravado na fenda entre dois dentes um pedaço pontiagudo de metal. Era o mesmo fragmento com que Dibnus ferira-me no pátio. Eu mesmo o havia alojado ali, como um presente querido. Entretanto, não foi essa descoberta de última hora que tanto sobressaltou aquele oficial, mas um detalhe absurdamente inusitado para a situação. Riscado de maneira inexplicável sobre aquele objeto, na caligrafia inconfundível de Dibnus, lia-se este antiquíssimo provérbio Adrobano:



"Como a água constante é para a rocha
Assim é a voz que chega a um ouvido irmão."

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br