Olhos entregues à janela. Os acenos dos postes baixos faiscavam no empecilho
dos vidros, deixando um rubro quase irritadiço na impressão veloz
com que se superavam. Seu corpo queimava, no que era um aviso prévio
da aproximação dos caldeirões de fundição.
Podia já distinguir os primeiros, a alguns quilômetros de distância,
expulsando milhões de faíscas incandescentes numa fúria
sem vida. Suas mãos não se acalmavam, tentando de forma inútil
e maquinal abrandar a transpiração constante.
Era um amanhecer terrível.
O imenso veículo em que era conduzido estava superlotado. Gente de toda
sorte e idade comprimia-se no metal indiferente de quatro vagões ultrapassados,
prestes ou não a desabar pelo solo pedregoso que se expandia até
o limite da vista. Criavam todos, gentalha e ferragem, barulho incansável,
miscelânea de xingamentos, gargalhadas, atritos metálicos e gemidos.
Eram raros os passageiros que se entregavam, nos poucos instantes entre o vale
e a mina de fusão, ao atordoamento mudo de olhar através das janelas,
ocos como o que viam. O homem de mãos nervosas era um deles. Talvez o
único. Chamava-se Taoo, caco vivo que sustentava um resto de cabelo ainda
não destroçado pela parca alimentação compacta da
Companhia. Contudo, não se sentia um privilegiado. Pelo contrário.
A resistência de seu corpo à destruição fazia-o pensar
no quanto ainda lhe restava pela frente, se a insanidade não batia à
porta. Parecia inacabável o seu futuro.
Desfazia-se nisto.
Em Adrobah, geralmente sobreviver é uma maldição.
Ela era franzina demais para passar sem esforço no pouco intervalo entre
os corpos aglomerados que praticamente entupiam o vagão. Seus braços,
desacostumados, forçavam aqui e ali um peito, uma espádua, um
glúteo. Não emitia o menor ruído. Simplesmente espremia-se,
como sempre, seguindo vagarosa e arfante até o seu objetivo: um assento
reservado.
Chamava-se Côba, e tinha os pensamentos devastados.
Ainda com qualquer coisa de jovialidade, além da agilidade no controle
dos autotrituradores, sentia-se precariamente viva. Seu couro cabeludo reluzindo
a ausência de qualquer fio e o lábio superior pendido davam-lhe
um semblante infantil. Os olhos não tinham brilho, apagando-se num preto
moribundo. Vestia o macacão marrom da Companhia, enfiado num par de botas
azuis muito bem cuidadas.
Enfim, conseguiu acomodar-se. Esticou os braços no assento posterior,
depois os cruzou apoiando o queixo sobre um deles, circunspecta. Todavia, algo
lhe retirou imediatamente daquele torpor. O passageiro do assento paralelo ao
seu, após o intervalo do corredor, começou a ser esmurrado violentamente
por um brutamonte de tórax nu, que rugia ódios incompreensíveis.
Taoo distinguiu uma gota de sangue, esmagada, quase na limitação
do vidro. Ainda estava fresca. Perdeu-se nela. Tentou entendê-la, deduzi-la.
Tocou suas narinas, a ver se não estava sangrando. Nada. Sem sair muito
desses singelos devaneios, voltou-se para o interior do vagão.
Foi aí que se percebeu desperto a uma nova possibilidade de existir.
Côba pretendia falar cada vez menos. Esquecera das pessoas. Não
precisava delas. De vez em quando, esforçava-se por lembrar as formas
de tratamento usuais. A anciã ao seu lado não cansava de vociferar
contra a violência de há pouco. De como tudo se acabava, da humilhação
daquela condição submissa etc. A franzina entrelaçou as
mãos, mirando a ponta de suas botas limpíssimas. Era atacada de
uma indisposição horrenda. A velha não desistia. Nisto,
o vagão cambaleou em uma depressão do terreno. Irritada, Côba
buscou os olhos da anciã com a intenção de um xingamento
áspero.
Porém, distinguiu-lhe de imediato. Mantinha a cabeça pendida e
os dedos a friccionar as fossas nasais.
Foi aí que Taoo se percebeu desperto a uma nova possibilidade de existir.
A multidão entrava novamente em polvorosa. Começavam uns gritos,
uns empurrões. Eram algumas mulheres, que tentavam agredir um apalpador
mal sucedido, fato que comprometia ainda mais a condição dos que
se encontravam de pé, já tão maltratados. Chamavam pelo
guarda do vagão, que ninguém mais conseguira ver por ali depois
que foram levados o brutamonte de tórax nu e o ensanguentado que
ocupava o assento destinado a Taoo. Nesse instante, a confusão explodia.
Côba desvairava-se, buscando a Taoo entre a fenda de uma perna e um ventre.
Suas mãos nervosas amassavam carnes alheias, impediam quedas, desferiam
tabefes. A anciã ao seu lado era quase engolida por seu corpo arqueado,
confuso, decidido.
Taoo também não podia se conter. Acordara. Estava tão eufórico
em revê-la que não podia permitir um obstáculo tão
patético. O que sentia em suas entranhas era incêndio. Havia enfim
uma alternativa. Foi nisto que se ergueu, começando a tentar livrar de
seu caminho meia dúzia de mineiros ensandecidos.
Preparava um urro de ira, mas um cotovelo involuntariamente fez-lhe engolir
a revolta. Tombou no assento, percebendo sangue e dor. O guarda surgiu na portinhola
metálica, pescoço erguido e olhar terrível, no exato instante
em que o veículo chegava à primeira estação.
Começou um maior estardalhaço. O homem da lei foi encoberto pela
multidão que precisava desembarcar ali. Não tinham tempo a perder,
nem direito a possuir tempo. Era massa escrava, parafuso sempre atrasado, indefinidamente
movimentando-se no ciclo inglório das entranhas de um mundo desenganado.
Côba não desceria. Sua estação era a última,
tangenciando com as cavernas de transformação, onde praticamente
havia um ser vivo para cada quinze máquinas frias, entre trituradores
operáveis e dróides autômatos. Destinava-se a um confinamento
de setenta e três dias, tendo por únicas companhias um gigantesco
robô não inteligente e dezenas de quilômetros de galerias
mal iluminadas, emudecidas, até que pudesse ter novamente o dia de folga
correspondente ao seu código de série. Poderia então conceber
novamente a convulsão turva da cidade de Baripe diante dos sentidos.
Essa convicção estimulava ainda mais a sua agonia em relação
a Taoo.
Este, entregando-se à janela, consumia-se do impacto sofrido. Nisso,
voltou a si a consciência daquela que a tanto lhe fora arrancada, que
se fazia possível de forma tão iminente na distância idiota
de um corredor. Exalou um sopro baixo, onde um nome familiar varava o ar sem
rumo definido. Os últimos mineiros saíam. Um ronco gasto indicava
a verdade da nova partida. Taoo desceria em seguida. Nas metalúrgicas.
Na incandescência terrível e necessária à sobrevivência
de Adrobah.
O guarda, enfurecido, desferindo pontapés no encosto dos assentos, invadiu
o vagão arrastando um alquebrado sujeito pela gola do uniforme, feito
um animal à beira do abate. Vociferava contra a desordem, que não
suportaria mais nada dali em diante. Arremessou o sujeitinho, mais morto que
vivo, num canto do compartimento, pondo-se bem no meio do mesmo, entre os poucos
que restaram: estava pronto a distribuir violência.
Côba podia ver nitidamente a Taoo. Não havia mais nada físico
entre eles. Podia olhar em seus olhos, que a tragavam imensos, desacreditados.
Achavam-se um no outro, paralelos, novamente possíveis.
Ao mesmo tempo não.
O veículo relançou-se, débil, sob o som grosseiro dos caldeirões
mais próximos. O dia crescia desprezado. Baripe já havia se desfeito
totalmente no passado e na distância. Os dois amados, perplexos, tentavam
se salvar. Não havia mais dor em Taoo. Não havia mais autotrituradores
em Côba. Apenas o guarda.
Apenas Adrobah.
Encontraram isso simultaneamente, desenlaçando os olhos em tácita
combinação. Tal processo pode ter custado vários minutos.
Não perceberam.
Taoo, esticado no assento reservado, que por pouco não teria que reclamar,
acompanhava a previsibilidade do solo negro, em poucos instantes não
notando mais o movimento contínuo do veículo. Uma das mãos
riscava o vidro levemente até o limite metálico da janela, a outra
roçava o emblema da companhia, estampada no uniforme à altura
do peito; sentia toda curva, todo detalhe retíssimo, infalível.
Seu rosto inchava cada vez mais à pancada recebida, enquanto ele preocupava-se
com a possibilidade de ser dispensado por esse motivo.
Côba tentava adormecer. Tinha ainda um bom tempo até a estação.
Sentia-se relativamente sonolenta. Cruzou os braços e deixou o crânio
pender sobre o peito, fechando seus movimentos - pelo menos nas horas que até
desembarcar em seu destino.
Empreendendo uma curva repentina para um grande declive, o veículo precipitou-se
definitivamente no túnel que comunica com as entranhas da região,
sem nada assustar ou desfazer.