A Garganta da Serpente
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Canibalismo

(Angelita Corrêa Scárdua)

A Lua cheia repousava na linha do horizonte redonda e dourada, conferindo ao mar aveludado e escuro um brilho inigualável de joia. Ela chegou do jardim com rosas entre as mãos e um meio-sorriso no rosto, a pele nua ainda gotejava a atmosfera morna da banheira quando ela colocou as flores sobre a bancada da pia juntamente com o pequeno punhal de prata. A cozinha cheirava doce à canela que emanava das velas acesas, e curiosamente acentuavam a luz castanha do seu olhar enegrecida pelos cabelos que desalinhados escorregavam pela fronte e pescoço até os bicos dos seios. Ao movimentar-se pela cozinha as chamas inquietas pontuavam inadvertidamente as curvas do corpo que se afunilavam em sombras fugidias que ora revelavam, ora escondiam, o triângulo pubiano em pêlos pretos e úmidos.

Ela aspirava o ar da cozinha cada vez mais profundamente, e a medida que o fazia podia saborear a canela e os próprios suspiros. Permitiu-se absorver pelo aroma da especiaria e pelo próprio desejo, deixando que o sangue do dedo espetado pelo espinho de uma das rosas dissolvesse-se em meio a carne vermelha das pétalas que amassava vigorosamente na tigela de cerâmica, e envolveria em açúcar. Com um pano branco cobriu a pequena tigela, reservando-a sob a lua que adentrava a cozinha pela vidraça, e o próprio corpo nas trevas do quarto em que se entregava aos sonhos.

Mal o sol despontara e lá estava ela deixando entre os lençóis brancos seu cheiro de água, rosas e especiarias. No espelho contemplou por alguns minutos a morenez da própria pele emergindo das mãos cheias de água e da espuma que se fixava no ar por um leve aroma de erva-doce. Com um sorriso claro iluminou o próprio rosto e dirigiu-se a cozinha cheia de sede e fome. Ao conteúdo da pequena tigela de cerâmica adicionou água, mais açúcar e o suco de um limão espremido entre as unhas crescidas e os dedos das mãos finas e adocicadas, lambidas e sugadas pelos lábios e a língua que buscava avidamente atenuar o próprio calor. A mistura vermelha e doce foi levada ao fogo brando e coordenada em movimentos sinuosos às ondulações do quadril que insistiam em dançar sobre as longas pernas, nervosas como o ritmo do derback, enquanto mordiscava displicentemente um pedaço de pão macio com o sabor do leite. O líquido viscoso e caramelizado tinha a cor do mel e o cheiro das rosas e estava pronto para ser usado quando ela falava ao telefone numa voz ardente e quase rouca apertando com a boca o fio do aparelho e as palavras.

O dia passou sereno e quente, e a casa foi preenchida pelo ritmo baladi e pelos movimentos serpenteantes do corpo dela que se entregara em êxtase a dança, e a si próprio, enquanto ela limpava pisos e janelas, trocava os lençóis e as toalhas, aguava as plantas e as ideias. O anoitecer a encontrou envolvida pelo odor de óleos de banho e com os cabelos lavados e perfumados e delicadamente arrumados num rabo de cavalo que inclinava-se do meio da cabeça em direção as costas, expostas pelo vestido rubro e transparente que escorregava sedosamente pelas coxas e rodopiava farfalhante ao andar em saltos altos na direção da cozinha.

Na bancada da pia, um morango graúdo perdeu-se num beijo com a boca dela, confundiu-se com o batom carmim e a excitação dos lábios que o devoraram comprimindo-o entre os dentes. Enquanto isso, suculentas, as mãos cortavam uma boa porção da fruta e colocava na sonora jarra de cristal revelando a carne macia recém amputada dos pequenos mamilos vermelhos. Os dedos contornaram o corpo redondo de uma maçã fresca e perfumada enquanto o pequeno punhal de prata o cortava em pequenas partes que foram acomodadas junto aos morangos, formando um bonito contraste entre o branco lívido dos pedaços expostos e a cor encarnada no fundo da jarra. Vertendo entre as falanges, o líquido azedo de um limão, umedeceu e aromatizou as paredes do recipiente de cristal e por fim envolveu o seu conteúdo temperado com cravo e canela.

Ela rolou entre as palmas o vermelho amarelado de uma romã, cujas vísceras foram expostas num corte preciso do pequeno punhal, deixando assim escorrer sobre o mármore da pia o líquido bordô, intenso e transparente, dos bagos desmembrados que se esparramaram sobre a bancada. Com vontade espremeu os membros em pedaços e arrancou-lhes as pequenas sementes róseas e úmidas, que foram aleatoriamente se perdendo no leito castanho do mel de flores que escorria por entre as reentrâncias macias e aromáticas da jarra de cristal.

A luz da geladeira se extinguia através da greta da porta, que se fechava para abrigar o precioso conteúdo do vasilhame de cristal, quando o telefone tocou e ela atendeu-o ainda arfando de ansiedade e de espera. O som ininterrupto do relógio no corredor marcava as batidas do coração. A respiração desordenada fazia o fino tecido do vestido vermelho tremer sobre a pele do colo, revelando a pinta escura que fugia por entre os seios. A brisa marinha invadiu a sala quando ela abriu-se para a varanda deixando-se iluminar pela lua e pela noite... agora era esperar, e silenciosamente ela esperou que a campainha tocasse.

E ela tocou! Caminhando suavemente até a porta, respirou fundo, sentiu o próprio cheiro e o da casa. Dando uma última conferida na arrumação da sala, com suas flores e suave iluminação de velas e abajur e luz lunar, olhou-se no pequeno espelho dourado próximo a entrada arrumando por cima do ombro o rabo de cavalo. Com um sorriso no canto dos lábios envolveu a maçaneta e girou-a silenciosamente, permitindo que o peso da porta fizesse o esforço por ela. Lá estava ele, pronto para adentrar os seus domínios... Lá estava ele, lindo, inquieto, inseguro, ligeiramente tímido e libidinoso... Lá estava ele, sedento... e ela mataria a sede dele, porquê disso dependia a extinção da dela própria.

Ele se acomodava na varanda e ela se dirigiu a cozinha, tirando da geladeira a jarra de cristal e cubos de gelo, enquanto uma garrafa de vinho tinto era aquecida em banho-maria. Da garrafa inclinada sobre a jarra, escorria pela garganta um vermelho sanguíneo que se enervava pela carne macia dos frutos, tal como o desejo dela que se inflamava nas próprias veias e injetava sangue nas dele, submergindo todo o conteúdo no líquido viscoso e doce das flores, e do seu próprio sexo. As sementes róseas se deixavam confundir na uniformidade cromática de toda a mistura navegando sinuosamente no líquido morno das entranhas da jarra, e do corpo dele que desejava refrescar-se no cálice do ventre dela, sem saber que a brisa gelada que transpirava pelas paredes de cristal da taça que acabara de receber em suas mãos continha mais que cubos de gelo, vinho, meles e frutas...

... Ela agradeceu com um sorriso o gole saboroso que ele lhe ofertou da própria boca, e gargalhando silenciosamente, sentenciou... "Te peguei!".

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