A Garganta da Serpente

Adriana Rodrigues Façanha Barreto

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Banalidade Louvável

(Adriana Rodrigues Façanha Barreto)

Sinto hoje a angústia, o incômodo há muito tempo reprimido e que, justo agora, teima em ocupar-me a mente e os dias. Penso em pessoas, objetos e paisagens vistas e vividas, mas que se foram e deixaram o vazio. Faz calor aqui, não?Tragam-me um copo com água, por favor. Homeopaticamente, goteje nela um tantinho de absinto. Oh, amargo da vida.

Olhando assim, até pareço um urso branco, moribundo e extremamente febril. Indubitavelmente, urso é o que de fato sou. Preguiçoso. Solitário a vagar pelo gelo, deixando que a vida passe e, inerte, morrendo pouco a pouco. Constato, com certo pesar, que o passado de um urso não existe. Existe sim, a repetição, a cada dia, da dor e da solitude sem fim. Chamarei, então, de passado, obviamente, o ontem, mas também o hoje e o amanhã.

Revisito meu passado e encontro inutilidades, tão caras a mim nesses dias. Permito-me odiar esses longínquos e, incrivelmente, atuais tempos. Minha infantilidade adquiriu vida e permeou todos os meus dias, desde que tomei consciência de mim mesmo. São as pequenas babaquices dos meus dias que me fazem esperar que o amanhã seja diferente e eu mude em algum aspecto. Mais uma vez, eu me desencanto e me iludo comigo mesmo.

A quem me lê agora, pode até parecer que minha vida inteira foi feita de loucuras. Mas, afinal, de que se trata a infância senão da mais inocente loucura, a qual nos é permitida sem censuras? Então, tomo posse eterna da infância e da liberdade de aqui expor as mais íntimas loucuras de uma velha criança.

Cada um dos meus vícios, manias, cacoetes e fixações são muito preciosos para mim. Com eles, e só com eles, sou único e feliz. Afinal, quem mais no mundo desfruta tanto do asqueroso ato de pregar na parede do banheiro os nove fios de cabelo que caem religiosamente durante o banho? Só eu. Procuro selecionar rigorosa e criteriosamente meus devaneios, para que eles não se insurjam e me tornem alguém comum. Não, de jeito nenhum! Todo castigo, menos me tornar alguém comum.

O urso que sou é habituado a imaginar diversos passados e futuros para os animais comuns que passam por ele. Passa dias a ruminar como será o ano-que-vem da apática foca. Pensa também como foi o seu dia anterior, suas decepções e agruras. Depois, a devora sem piedade. Eu também, mas não no sentido real do devorar, mas minh'alma absorve prazerosamente pessoas de personalidade vazia, as quais a tornam pesada e desorientada, o que é pior.

Pronto! É desse ato até desprezível e mesquinho de roubar vidas alheias que vem tanta loucura. Desde pequeno acostumei-me a fazer isso. Achava bonito visualizar passados e futuros possíveis para as pessoas, era mágico. Hoje, vejo que tudo isso de nada valeu. Sou um híbrido, carrego em mim vidas que nem sei por onde estão, nem sei se são mais vidas. Posso, agora, ser alguém já morto. Isso me assusta muito.

Tento, então, expulsar da minha consciência a pesada vida de outros. Tenho algum sucesso no início, mas logo depois a mania de devorar futuros e passados alheios se manifesta e acaba matando quem de fato sou.

Que calor insuportável, que tempo quente faz aqui. Aqui, eu digo, dentro de mim. Urso polar queimando por dentro. Sou paradoxal e feliz.

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