A Garganta da Serpente
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Roda do Ano

(Ana Sampaio)

Depois de pouco mais de um ano vivendo na Inglaterra, em casa alugada, compramos nossa própria e nos preparamos para mudar. Minha mãe viajou do Brasil, para ajudar na mudança e na arrumação da nova casa, que ficava na mesma vizinhança, a uns poucos quarteirões da antiga, numa vilazinha de cinco mil habitantes no condado de Kent, ao sul de Londres.

Era uma casa bem maior e mais confortável que a antiga, mas o que tinha de melhor era um imenso quintal, com uma bonita pérgula em estilo mediterrâneo, colada ao muro. Passada a confusão da mudança, colocamos ali uma mesa, onde tomávamos chá no final da tarde, o clima inglês permitindo. Da pérgula, subia uma trepadeira. Era o auge do inverno quando nos mudamos e a planta não passava de um emaranhado de galhos secos, aderindo ao muro com o pouco de vida que lhe restava.

Numa rara tarde de tempo seco, com um solzinho fraco que ameaça aquecer, conversávamos, eu e minha mãe, sob a pérgula, quando ela apontou para a trepadeira e comentou:

- Essa planta, você vai ter de mandar arrancar.

Era mesmo de se pensar que aquele monte de galhos secos retorcidos não poderia ter outro destino que não o caminhão de lixo; parecia tão finda quando é possível estar, não floresceria mais. No Brasil, planta seca está morta, arranca-se, planta-se outra no lugar. Mas ali, no norte da Europa, o que parecia morto, apenas dormia.

Lembrei-me de ter visto outras plantas no mesmo estado em que aquela, quando chegara aquele país, um ano antes. Lembrei-me também quando presenciei, espantadíssima, numa bela manhã, o despontar de pontos verdes por entre a secura de tudo. Aos poucos, enquanto os dias avançavam em direção ao verão, os pontos verdes explodiram numa exuberância de um verde quase tropical. E ficaram de todas as cores no outono. E secaram novamente e caíram no chão e tudo virou mais uma vez o rendilhado de galhos secos contra o céu branco de inverno.

Respondi com um sorriso o comentário de minha mãe:

- Imagina, mandar arrancar! Já, já, ela brota de novo. Está vivinha da silva, é só esperar...

Difícil, para quem está acostumado à imutabilidade tropical das estações brasileiras, imaginar que um dia a vida volta àquelas plantas. Para nós, esse ressurgimento da vida tem mesmo cara e cheiro de milagre.

Os antigos povos europeus celebravam a passagem das estações como algo sagrado, com festas e ritos. Era na natureza que estava sua religião, nela eles viam refletiva a face da Grande Mãe. E tendo tido a oportunidade de vivenciar um ciclo inteiro, em sua totalidade, não achei difícil entender porque. A passagem das estações é o ciclo da vida, o ciclo da nossa vida. Que tem inverno, tem verão, tem estação onde tudo seca, tem momentos de explosões de cores, tem outros onde tudo floresce e viceja. Ensinam muito sobre a vida, esses ciclos. A vida tem começo, meio e fim; não um começo, um meio e um fim, mas vários, como num ano após o outro. E de vez em quando, no auge do inverno, é impossível acreditar que qualquer coisa poderá de alguma forma se transformar, renascer. Mas acontece sempre e não falha, nem na natureza nem na vida da gente.

Minha mãe continuou a olhar com desconfiança a trepadeira seca, assim como outras plantas do meu quintal, inclusive a enorme maple tree, completamente nua, sem uma folha sequer. Prometi a ela que tiraria fotos, assim que os primeiros brotos verdes aparecessem, e as mandaria para o Brasil. E assim fiz, quando chegou maio, com muita chuva e dias mais compridos. E mais uma vez em julho, quando o muro da pérgula desapareceu sob a densa folhagem verde escura. E de novo em outubro, para que ela visse o que eu acho que a natureza europeia tem de mais espetacular: todo o meu quintal coberto de ouro, bronze e vermelho. Todas as vezes que minha mãe recebeu essas fotos, ligou para mim para comentar o quanto tudo aquilo era "impressionante".

De volta ao Brasil já há dois anos, sinto falta dessa natureza em movimento, com seus ciclos bem marcados. Convivendo com eles mês após mês é mais fácil lembrar o quanto são parte de nossas vidas. Quando me dá saudade, me lembro da trepadeira e do meu antigo quintal. E penso que esses ciclos estão mesmo é dentro de mim, a natureza só os reflete.

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