"Acaso, ó Criador, pedi que do barro me moldasses homem? Porventura
pedi que das trevas me erguesses?"
John Milton - Paradise Lost, X, 743-5
Sob as trevas da noite, correndo descontroladamente em largos passos, J.R nota
a reluzente e ensanguentada faca em uma de suas mãos. Por alguns
minutos, cessa a dramática e insana corrida. Os descalços pés,
latejando de dor. Os joelhos, dormentes. A luz da lua, metafórica luz
inalcançável. Os seres das trevas presenciavam o desespero de
uma figura maltrapilha. Gritos ensandecidos quebraram o silencio da noite. (...)
Jacinto Rodrigues para de escrever. O dia já estava clareando. Hoje era
dia de oração, de clamar por misericórdia, de passar o
dia com os irmãos de fé. A bíblia embaixo do braço
e os costumeiros preparativos para abandonar o lar por algumas horas, já
aconteciam.
O cristão, Jacinto. Escritor descendente de escritores cristãos.
Rapaz de família puritana, de sábias palavras e rudimentares vestimentas.
Símbolo de cultura e fé. Interlocutor da comunidade regional.
Chave de um grande segredo.
Semanalmente, o principal veículo de comunicação do município
de Hortolândia, Jornal Diário da Região, publicava pequenos
trechos de uma novela, considerada pela maioria da população da
cidade, que era cristã, como demoníaca. O diabo era enaltecido
naqueles profanos textos e, mesmo sendo renegado pelos cristãos, era
o jornal mais vendido do município. Todos ficavam desesperados para saber
a continuação da trama, incluindo os que a renegavam; Acotovelavam-se
perante o jornaleiro para adquirir o jornal com a proibida e demoníaca
novela, plagiada dos contos do mundo inferior. O autor da comentada obra, assinava
"Mr. Sheol" e se autodefinia como estudioso e membro de uma secreta,
antiga e profana seita.
Por onde Jacinto Rodrigues passava, ruas urbanizadas, lama, luz e trevas. Não
fazia diferença. Sempre murmurando trechos de sua obra poética
preferida; Paradise Lost de John Milton:
Que importa onde eu esteja, se eu o mesmo
Sempre serei, - e quanto posso, tudo?...
Tudo... menos o que é esse que os raios
Mais poderoso do que nós fizeram!
Nós ao menos aqui seremos livres,
Deus o Inferno não fez para invejá-lo;
Não quererá daqui lançar-nos fora:
Poderemos aqui reinar seguros.
Reinar é o alvo da ambição mais nobre,
Inda que seja no profundo Inferno:
Reinar no Inferno preferir nos cumpre
À vileza de ser no Céu escravos.
(John Milton - Paradise Lost - 1.667.)
No casebre, bíblias espalhadas de todos os tamanhos, formatos e anos
possíveis. As lisas paredes, sem estampas. Figuras ali não havia.
Apenas livros, livros, livros e lembranças. A solidão era gigantesca
naquele pequeno recinto tão repleto de ideias de autores antigos
e contemporâneos. No centro da grande mesa que ficava ao lado da lareira,
várias obras enfileiradas, uma sobre as outras e, algumas se sobressaíam
as demais, como a obra de Tristan Tzara e o seu Dadaísmo, enfatizando
o ilógico e o absurdo; O clássico do autor escocês, R.L
Stevenson, O Médico e o Monstro e o grandioso ensaio O Mundo que esnobou
o poeta do autor russo Roman Jakobson - uma obra escrita sob fortes emoções
após a morte do amigo Wladimir Maiakóvski.
Jacinto ocultamente se autodefinia como "pluralista". À noite,
deixava-se possuir pelo seu outro eu "Mr. Sheol", escritor polêmico
de contos épicos que enaltecia as trevas e os seus seres infernais.
Certa vez, Jacinto apaixonou-se loucamente por uma jovem de sua comunidade cristã,
Maria Isolda; Bela jovem da fala simples. Desnuda de ornamentos, carregava consigo
apenas um chumaço de longos e sedosos cabelos lisos, dois grandes olhos
negros brilhantes e uma boca carnuda. Não sentia o mesmo por Jacinto,
tornando-o uma infeliz e perambulante alma pensante, para desespero do seu ser
e felicidade dos seus inúmeros leitores, pois, Isolda, Maria Isolda,
era a inspiração para os contos épicos infernais de Mr.
Sheol.
Mr. Sheol, descrevia as trevas com tantos requintes e detalhes, que às
vezes, causava arrepios nos leitores. Antônio Bernardino, editor e proprietário
do Jornal O Diário da Região, sentia o mesmo ao ler os trechos
da tétrica novela, responsável pelo considerável crescimento
nas vendas do Jornal e de seu império, mas, tanto o editor como os leitores,
tinham algo em comum: não conseguiam parar de ler a medonha e tétrica
novela.
A primeira vez em que Jacinto Rodrigues se deixara ser possuído pelo
autor Mr. Sheol, foi no dia do casamento de sua amada Maria Isolda. Os olhos
da linda jovem brilhavam tanto ao olhar o noivo Gilberto Tristão, que
Jacinto sabia que nunca mais teria uma chance, a não ser, assassinando
o rival, coisa que jamais faria.
Após o casamento, trêmulo, deprimido e bêbado de ódio,
Jacinto caminhava para casa. As cores dos lindos jardins da praça por
onde costumeiramente passava, diluíram-se. As crianças que brincavam
no parquinho não eram mais crianças. O sorriso das figuras que
perambulavam nas ruas, não eram mais sorrisos. Jacinto não era
mais Jacinto. A escuridão tomora conta da alma daquele jovem cristão
e, a primeira tarefa daquele novo homem ao adentrar-se em casa, foi sentar-se
furiosamente na cadeira, jogar todos os livros que estavam na mesa ao chão,
pegar abruptamente a raridade que pertencia ao seu pai, a máquina de
escrever datada do ano de 1910 da marca Bennett e, começar alucinadamente
a datilografar cenas terríveis do assassinato de um homem que acabara
de se casar.
17 de Setembro de 1977, esse foi o dia do casamento de Maria Isolda com Gilberto
Tristão, também o dia do primeiro capítulo da macabra e
terrível novela Death of the soul.
Todos os dias, ao amanhecer, o jovem cristão notava que não dormira
na cama e sim, debruçado a grande mesa. Ininterruptamente, acordava com
pelo menos duas folhas datilografas a sua frente e, ao lê-las, sabia que
não eram suas e sim, do seu outro eu, Mr. Sheol. Nos preparativos da
saída para a igreja, Jacinto sempre lavava apressadamente o rosto para
não perder o culto, mas, ao olhar-se no espelho, algo vindo de dentro
do seu interior pronunciava repetidamente: "Publique a novela."
No primeiro dia da criação da tétrica novela, Jacinto foi
ao culto e mal conseguiu ouvir o sermão do pastor, pois outra voz tomava
o seu lugar. Na saída do culto, o atormentado rapaz sai às pressas
para a redação do Jornal O Diário da Região. Discretamente,
Jacinto adentra-se na grande redação e, procura pela mesa do editor.
Não demora muito para encontrá-la, pois o recinto mais requintado
da grande sala cheia de divisórias, é a do editor Antônio
Bernardino. Demorou poucos minutos para Antônio sair da sala para atender
alguns convidados políticos e, sem perder tempo, Jacinto aproveita para
jogar o envelope com o primeiro capítulo da tenebrosa novela Death of
the soul em cima da mesa, bem ao lado da plaqueta "Editor". Sai às
pressas da redação com um certo alívio, pois a macabra
voz que vinha do seu interior, cessou completamente. A partir desse dia, as
visitas foram constantes a redação do O Diário da Região.
Jacinto passou várias semanas, atormentado, sonolento e desesperado,
pois não sabia mais o que fazer. Não sabia como cessar a macabra
novela enaltecedora do Diabo. Porém, certo dia, próximo a vibrante
lareira, o pobre rapaz tem uma obscura ideia, semelhante as do seu outro
eu, assassinar Mr. Sheol.
O atormentado rapaz visualiza através da janela da sala o derradeiro
sol se pondo. Sabe que, em poucas horas, Mr. Sheol viria tomar o seu lugar,
então, deu início aos preparativos: Pegou um punhal e o escondeu
atrás de um livro do autor uruguaiano Felisberto Hernández. Sentou-se
calmamente na cadeira, puxou a antiga máquina de escrever a sua frente,
inclinou-se em direção a lareira e vislumbrou as chamas como se
fosse a sua primeira vez. Passou quase duas horas nesta posição,
vez ou outra, olhava para um dos livros que estavam sobre a mesa e, ao olhar
a obra de Hernández, Nadie encendía las lámparas, se lembra
do que deverá fazer ao amanhecer. Jacinto apaga.
Amanhece. Debruçado sobre a mesa e com a cabeça sobre os braços,
Jacinto abre os olhos vagarosamente. À sua frente, uma página
totalmente datilografada e, ao final, a assinatura "Mr. Sheol".
- Ser abominável. Este será seu último manuscrito. De agora
em diante, se quiser escrever, terá que o fazer nos confins do inferno...
Só não sei se lá terá uma máquina de datilografar
tão valiosa como minha Bennett.
Jacinto levanta o livro de Felisberto Hernández. Segura firmemente o
instrumento que o livrará de Mr. Sheol e, por alguns segundos, visualiza
um par de olhos refletindo na pequena arma. Esta seria sua última lembrança,
se não fosse a visão do tom vermelho
que escorria lentamente do abdome ao chão.
Jacinto Rodrigues, cristão, escritor descendente de escritores cristãos.
Rapaz de família puritana, de sábias palavras e rudimentares vestimentas.
Símbolo de cultura e fé. Interlocutor da comunidade regional.
Assassino duplamente qualificado. Livrou a cidade de Hortolândia do delírio
vicioso da inacabada novela Death of the soul. Fez desmoronar o império
de um homem chamado Antônio Bernardino. Nas trevas, fazia companhia eterna
ao autor chamado Mr. Sheol.
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Último manuscrito da novela de Mr. Sheol. (Não publicado):
(19 de Novembro de 1977)
Sob as trevas da noite, correndo descontroladamente em largos passos, Jacinto
Rodrigues nota a reluzente e ensanguentada faca em uma de suas mãos.
Por alguns minutos, cessa a dramática e insana corrida. Os descalços
pés, latejando de dor. Os joelhos, dormentes. A luz da lua, metafórica
luz inalcançável. Os seres das trevas presenciavam o desespero
de uma figura maltrapilha. Gritos ensandecidos quebraram o silencio da noite.
Dois olhos queimando de ódio surgiam das trevas. O ser estava com o abdome
aberto, deixando-se notar os órgãos ainda pulsantes. Nas mãos
da criatura, a página de uma novela, intitulada Death of the soul - O
triste fim de dois escritores.
(Este conto é parte integrante da obra do autor "Heterônimos e Pseudónimos". A obra ainda não foi publicada. Em busca de uma editora)