A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Arquivo morto

(Andreas de Oliveira)

Parando a alguns metros do corredor, Paulo observou a escuridão que deslizava pelas paredes. Originava-se na tenebrosa sala a que se dirigia o recém contratado ajudante de escritório. Na realidade, aquela era a primeira tarefa do jovem na empresa. Fora admitido na véspera e, desesperado que estava por iniciar suas atividades, não contestou quando o patrão com o qual conversara apenas por telefone lhe solicitou para o turno da noite. Intimidado pela austeridade da voz provinda do outro lado da linha e pela longa busca por emprego, mal teve de tempo de anotar o endereço indicado. Saiu de casa apressado.

Não tinha a vaga ideia do caminho que percorria, nem de onde ficava o lugar a que se dirigia. Sequer sabia algo sobre a empresa em que trabalharia, ou quais seriam exatamente as suas responsabilidades. Apenas trazia consigo a certeza da sorte de ter conseguido um emprego tão facilmente. Afinal, ninguém que conhecia ficara sabendo de uma empresa que precisava de pessoal, e Paulo precisou somente de um telefonema para conseguir a vaga. "Sorte ninguém ter reparado no jornal daquele dia", pensava enquanto caminhava pela noite, "e eu ter sido o único interessado no serviço". A temperatura caía rapidamente.

Paulo aproveitou a luz do único poste intacto da lúgubre rua em que estava para confirmar o endereço. Não queria acreditar no papel que tinha nas mãos. Havia pouco mais que algumas ruelas de calçadas quase destruídas, e uma longa cerca tomada pelo mato. A entrada, quase totalmente escondida pela vegetação, ficava no meio da quadra. Paulo empurrou o pequeno portão enferrujado, e entrou numa grande área vazia. Por causa da escuridão, Paulo não pôde identificar o que havia no que lhe pareceu ser um pátio abandonado. De repente, uma luz vinda da esquerda chamou a atenção do jovem, e ele se dirigiu até ela. O calçamento irregular do pátio fez com que Paulo caísse três vezes, mas ele caminhou até identificar de onde vinha a luz. Era a luz de uma lâmpada, tímida através das frestas de uma janela, e só então Paulo percebeu que havia uma construção ali. "Deve ser o escritório", pensou. Contornando o prédio, Paulo entrou no local.

Era um grande salão vazio. Havia uma caixa no centro da sala, e Paulo se dirigiu até ela. Dentro da caixa estavam documentos já empoeirados, totalmente desordenados e quase sem espaço. "Leve-os ao Arquivo, Morto" dizia um papel colado sobre a caixa. Só naquele momento o jovem notou que nos fundos da sala havia um escuro corredor, e uma sala no final deste. O jovem teve arrepios. Desde criança odiava a escuridão, e aquele corredor tornou vivo o seu pavor infantil. Paulo não sabia se tremia de medo ou por causa do frio, mas a lembrança de que precisava do emprego fez com que pegasse a caixa e entrasse no corredor.

A porta da sala estava emperrada, e Paulo precisou de muita força para abri-la. Tateou, mas não encontrou o interruptor de luz. Resolveu deixar a caixa em qualquer lugar, e sair para procurar uma lanterna. Porém, a porta se fechou num grande estrondo. Atirando a caixa para o lado, Paulo tentou correr na direção da saída, mas parou quando sentiu uma mão segura-lo pelo braço. "Me deixa sair daqui ! Me deixa sair !" gritava, já desesperado. Caindo no chão, Paulo derrubou alguns armários, e foi quase que soterrado por documentos antigos. O cheiro de mofo e a poeira que havia no ar o sufocavam. Arrastando-se na escuridão, Paulo sentiu mais uma vez a mão, agora lhe esmagando a perna. "Não...por favor...". Um hálito quente soprou nas faces de Paulo. Um silêncio esmagador atingiu o local.


Desesperada, a mãe ainda tentava entender o acontecido. Não vira quando o filho saiu de casa, sequer sabia que ele conhecia aquela parte da cidade. Logo pela manhã, recebera um telefonema da delegacia solicitando a presença dela. A faxineira de uma pequena empresa de transportes quase morrera de susto quando, ao abrir a sala do arquivo morto para limpá-la, encontrou o cadáver de um jovem. Para a polícia, era difícil tentar descobrir as razões que teriam levado aquele rapaz a invadir uma propriedade no meio da noite e se trancar numa sala escura. Um mês depois, para confundir ainda mais os policiais, o laudo da autopsia revelaria que o jovem sofrera um colapso cardíaco decorrente de intensas emoções. Provavelmente, Paulo teria morrido de medo. Tudo ficaria quase impossível de ser decifrado, principalmente pelo que se julgou tratar-se de um bilhete suicida. O papel amassado encontrado no bolso do rapaz, trazia dizeres enigmáticos para policiais e familiares:

"Os homens são como arquivos
Presos em limites carnais.
A morte é como esta sala
Os homens são como arquivos..."

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br