A Garganta da Serpente
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A menina que andava engraçado

(André Plez)

Mais um caso comum e despretensioso, onde o nada fere e incomoda, onde a falta de raios solares é presente, deixando tudo envolto por sombras de alvorada... Um episódio como tantos outros; pena que a relatada não se chama Maria, seria bem a propósito, mas, como o contador está despropositado este dia, usarei o seu verdadeiro nome de batismo: Cleusa.

Uma menina que poderia passar despercebida pelas calçadas da pequena cidade, se não fosse o seu jeito de andar. Cleusa, nome geralmente de senhoras, pertencia a esta menina que carregava seus quatorze anos; mas saibam: chegar a esta marca foi um feito! Nasceu para sofrer, como dizia sua avó, senhora batalhadora que carregava marcas encravadas em sua pele ocre, sempre de lenço na cabeça e recendendo a fogão de lenha, onde ficou boa parte da vida, ouvindo os estalidos e os grilos, sonhando e se benzendo... Cleusa, a menina que andava engraçado, nasceu muito doente e logo foi abandonada; a mãe, mulher afoita de desejos insaciáveis, apaixonara-se novamente, deixando a pobrezinha clamando pelo seio, que entregou a um loiro consertador de motores... Pobre menina, deixada nas mãos da senhora sua avó, mulher de muita fé e pouca paciência; também pudera, depois de criar seus oito filhos ainda lhe restava uma neta bastarda? Negada pelo pai (sabe-se lá quem era) e pela mãe... "Menina, ocê naisceu pra sofrê" - foi um dos rogos que mais ouviu em sua infância.

O fato de ser abandonada pela progenitora nos primeiros instantes que chegou ao mundo não causou a dificuldade para chegar à marca dos vinte anos, isso aconteceu da seguinte maneira: apesar de toda a graça que um bebê possui, Cleusa não recebia carinhos ou zelos, muito menos mamadeiras quentinhas e fraldas limpas; cresceu junto aos gatos, aos grilos (sim, tinham muitos grilos em casa), aos cães e, principalmente, com uma velha goiabeira que jazia no quintal, um abrigo perfeito para acomodar um pequeno corpo (as formigas que o digam). Menina doente, teve um sério problema na primeira infância, sendo classificada pelo médico como possuidora de um "leve retardo mental". A pobre avozinha, mulher analfabeta e com calos seculares nas mãos, mal entendeu, levou o recado como quem ouve uma anedota tola. Quando a pobrezinha sofria espasmos eram bênçãos e galhinhos de arruda por todo o lado, onde era gritado aos quatro ventos: "Filha do demonho". A senhora realmente acredita que se tratava de uma possessão. Foi sorte nada de pior ter acontecido, ou azar, como diriam os anjos.

Cresceu admirando a fumaça do velho fogão. Adorava ficar olhando para a pequena nuvem cinérea, que desenhava rostos e formas, que subia devagar (dependendo do vento) e desaparecia, deixando saudade daquilo que ninguém sabia o que era. Assim passava grande parte do dia, com seus pés descalços, seu sorriso tolo e seus olhos assustados e curiosos. Menina de pele bronzeada, de cabelo negro bem liso e de lábios grandes, olhos pretos sempre molhados, nariz seco e orelhas de morcego. Não sabia o que era a escola, até um grupo de voluntários (seria isso mesmo?) aparecer, dizendo à velha senhora que deveria mandar a menina para uma escola especial. A avó negou gritante, mas ficou, naquela noite, pensando na palavra "especial". O que seria especial? Em suas várias décadas de vida jamais entrara em uma escola (o pai não permitia, tinha que trabalhar no roçado), e ficava se perguntando o que teria de especial nisso... acabou vencida pela curiosidade matreira e mandou a menina para tal lugar. Esqueceu-se disso na primeira semana e logo colocou a menina de volta na "mexedura" de doces e gorduras.

Algo tão insalubre não deve ser dito às minúcias, deve-se antecipar muitos fatos, para que o leitor não sinta náuseas ou comiseração. O importante é saltar alguns anos no futuro, pois uma parte da triste infância da pequena Cleusa (menina de mãos tolas - esbarrava em tudo e quase sempre espatifava o que lhe coubesse...), já foi contada e não devemos nos alongar. Saltemos, então!

Uma senhora de frágeis cabelos brancos, que adorava saias longas e que, por conta de um capricho juvenil, pintava as unhas de cores berrantes, compadeceu-se da menina e, aos treze anos, levou-a para trabalhar em sua casa, como uma pequena doméstica. Aos poucos foi tomando a menina para si, negando que voltasse à sua antiga casa de paredes esburacadas repletas de grilos. Uma mulher católica que frequentava as missas há vários anos, sem nunca ter faltado, e que comungava com os olhos lacrimejantes, reconhecendo que trazia para o seu interior o poder do sagrado. Onde mais essa boa cristã conseguiria uma empregada tão boa como a Cleusa? Em lugar algum, ainda mais em troca de um prato de comida (as sobras das sobras dos seus dois poodles) e um vestido cheio de flores que usava dia após dia, além de um par de chinelas e um colchão frio às margens da varanda. Uma prenda sem igual, que não objetava nem rosnava, admitia tudo com seus olhos sempre brilhantes de coisa alguma e, por ter vivido anos pisando em chão de terra vermelha, adorava olhar as flores dos azulejos do banheiro, que apenas limpava e não usava. Menina prestativa, levava café para as senhoras, que discutiam o sermão e os outros, sentadas nos grandes sofás, onde diziam a plenos pulmões: "A senhora vai para o céu, cuidar tão bem de tal criatura".

Cleusa passaria despercebida, não fosse o seu jeito de andar. Ia sempre comprar o que faltava em casa na pequena mercearia, levando um bilhete que não sabia ler e o dinheiro, que deveria "voltar em forma de moedas" (era o troco que tinha que vir inteiro, pois era conferido o recibo). Um dia uma das moedas foi perdida, uma das mais pequenas, o que gerou muita mudança na bondosa senhora, que perdeu o controle e a tonalidade branca, desferindo cintadas e mais cintadas no magro busto da descuidada Cleusa.

As pernas muito próximas, ligeiramente tortas, os passos curtos demais. Alguns diziam que se parecia com um pinguim, outros relacionavam àqueles bonequinhos de corda, que andam rapidamente fazendo estalidos e provocando risos. O fato era que, diante da vista apurada dos moradores daquela pequena cidade flutuante, os passos eram muito engraçados, além de toda a alegoria que acompanhava: a expressão assustada; as mãos que ficavam mexendo sem parar, sempre com alguma folha ou galho entre os dedos; o cabelo desarrumado e sujo; o eterno vestido amarelento de flores negras; as chinelas gastas revelando dedos grosseiros; os lábios ressecados; a jovialidade perdida.

Um rapaz, que era vizinho da bondosa senhora, acompanhava por vezes estes passos incertos de Cleusa, rindo junto dos amigos. Estavam sempre em bandos. Época de convívio em grupo, de identificação com os outros, uma fase de aceitação. Adolescência, fase de hormônios pululantes, de desejos ofegantes. Triste era que este rapaz tinha muitas espinhas e não se achava bonito, muito menos era reconhecido como tal. Tinha muitos sonhos noturnos e diurnos, mas ninguém para satisfazê-los. Uma bela tarde, de sol quente, suor na face e desejo aflorado (nesse dia estava mais que o normal), tudo se ligava ao prazer, até mesmo o zumbido de uma mosca era doce gemido. Foi então que um pensamento passou por sua cabeça, ao ver a jovem com outros olhos: uma percepção varonil! Começou por analisar os contornos, que desenhavam um quadril balançante, canelas finas de carne dourada, braços moles e pouco resistentes, cabelo negro bem comprido e dançante, lábios grossos e expressão tola, seios pequenos, porém, pontiagudos. O sol estava realmente forte naquele dia, deixava à mostra o contorno perfeito do corpo, pois atravessava o frágil vestido sem maiores dificuldades. Aquilo foi o ápice para o rapaz que, motivado pelo desejo de ver como eram aqueles seios e outras coisas mais, saltou a janela em direção da rua, alcançando sem problemas a moça que pisava em falso.

Começou com um leve esbarrão e um sonoro "oi", que deixou a moça assustada, fugindo para o canto da calçada, colando-se ao muro. O jovem sorriu e se coçou (as espinhas no árduo verão coçavam muito), esticando a mão em seguida, presenteando a menina Cleusa com uma doce bala com recheio cremoso de morango. Observando mais de perto pôde perceber melhor aquela pele morena e aqueles pequenos seios de bicos que afloravam, que saltavam do tecido frágil. "Sem nada por baixo" - pensou maliciosamente.

"Gostou da bala?" - disse, ao ver que a moça mastigava vorazmente, deixando escorrer um pouco do caldo melado até o queixo, que limpou afoitamente com as costas da mão. "Não precisa ter medo, vem comigo que te dou mais". Sem outra reação esperada, Cleusa virou-se e acompanhou o rapaz, que olhava insistentemente para todos os lados, verificando se ninguém os observava. Por sorte não havia ninguém na rua, que brilhava em contato com o sol. Um suor e um tremor percorreram o rapaz, aumentando drasticamente seu excitamento. Levou-a para a garagem da sua casa, onde poderia brincar sem ser percebido, já que a mãe ocupava-se, como de costume, a escutar programas de rádio e pensar no prato do jantar.

A menina nem pestanejou, arregalou seus olhos assustados e deixou-se ficar nua, da mesma maneira que se deixou deitar, deixou-se beijar, deixou-se dilacerar. Quis sair daquele lugar, mas não teve coragem, pensou apenas que não poderia deixar cair nenhuma das moedas, senão teria outra surra. O rapaz jogou-se sobre ela, suou e gemeu, saindo logo em seguida, colocando a bermuda e mandando que saísse, que sumisse daquele lugar. Não entendeu direito, estava ainda à espera da bala.

Tudo continuou como o costumeiro. Os cafés servidos nos horários de discutir a bíblia e a vida das pessoas, algumas crises solitárias de epilepsia, os gritos para que andasse logo com a faxina, as cintadas que aconteciam com maior frequência. A bondosa senhora começou a desconfiar, quando percebeu que Cleusa enojava-se com facilidade ao limpar os dejetos de seus belos cachorros, bem como ao enjoar comendo as sobras do almoço. Algo estava errado! "Ai meu Deus do céu, essa menina está desrespeitando a minha santa casa".

Depois da constatação, que veio alguns meses após a investida juvenil, a velha senhora surpreendeu-se ao ver a neta parada na porta de sua casa esburacada, com uma pequena trouxa e uma barriga proeminente. Recebeu-a com a mesma frieza simplória de sempre, levantando pragas e rogos ao céu, benzendo-se sem parar com as ósseas mãos.

Devo acrescentar que muitos se perguntavam se Cleusa tinha consciência do que ocorria em seu corpo, mas isso ficava apenas na dúvida, pois ninguém ousava encostar as mãos naquela barriga enorme e ocre. A pobrezinha nasceu sozinha, à base de choro, de palmadas, no mesmo colchão onde sua menina-mãe dormia, com as puxadas fortes de sua bisavó, que praguejava seu destino e sentenciava sua vida, que seria repleta de dor e angústia. Cleusa assistia à sua própria dor com olhos estranhos e débeis, mas logo se acostumou com o pequeno ser que gritava, mas que se calava ao grudar em seu seio. Alguns meses depois Cleusa aprendeu a sentar sua bonequinha chorosa na árvore de goiabeira, que era um abrigo perfeito para ela.

Um caso comum e despretensioso, mas que deve se encerrar por aqui. Contar que poderiam existir duas Cleusas no mundo seria muito nauseante ao leitor, ou pior, pensar que a pequena criatura dotaria as pernas tornas da mãe e as espinhas do pai, seria intragável. Isso se não tivesse aumentado consideravelmente o formigueiro daquela velha goiabeira. Árvore suntuosa que alimenta e abriga.

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