Passos surdos eram ouvidos no decorrer da calçada, que estava timidamente
iluminada por uma lâmpada suspensa num enorme poste de concreto. A sombra
do jovem, que divagava obscuramente, seguia-o desde o início da grande
descida, que se iniciava a uns noventa passos atrás.
O material escolar, que tombava frequentemente de suas ósseas mãos,
teimava em querer comprovar a força gravitacional, pois de minuto a minuto
caía um caderno, ou a pequena bolsa com os lápis e canetas. Esta
cena fazia Felipe achar-se mais ridículo que de costume, pois ninguém
"normal' derrubaria tantas vezes seus pertences escolares.
Felipe olhou para seus pés, que se mostravam enfurnados em um par de
tênis velho e fedorento, que era único em sua pequena coleção
de calçados. Seus olhos procuraram outra forma humana no vazio da rua
e percebeu tristemente que algumas garotas estavam logo atrás de si,
e que conversavam baixamente, como se confabulasse algum segredo, o qual Felipe
não poderia saber, nem que isto fosse a última coisa a se fazer
no Universo. Sua timidez altiva ganhou mais rigidez, pois viu que o laço
de seu tênis esquerdo tinha desamarrado. Imagine só, ele abaixando-se
para amarrar os cadarços, que ridículo! Certamente as meninas
iriam achar que ele estava fingindo, só para ver elas passarem, e possivelmente
nunca mais olhariam para seu rosto, ou pior, espalhariam este incidente para
toda a escola.
As três meninas, que desciam despreocupadas sobre a extensa rua de casinhas
interioranas, nem deram pela presença de um garoto - que para elas era
um desconhecido - que estava sentado na calçada amarrando seus cadarços.
Felipe suava convulsamente, mais ainda quando percebeu que uma das meninas,
a mais bela, olhou em sua direção e sorriu ligeiramente. O que
significava aquele sorriso? Seria um gesto simples de cumprimento, ou ela estaria
tirando sarro daquele pobre infeliz? Para Felipe a última afirmação
era a mais favorável. Certamente ela já dizia às amigas:
"Você viu aquele idiota do Felipe? É, aquele do segundo ano,
estava igual um imbecil sentado amarrando os sapatinhos... que coitado, né?
Nunca deve ter ficado com ninguém..." Felipe já sabia de
tudo, era isso que realmente elas estavam conversando, enquanto desciam a harmoniosa
calçada com pequenos detalhes horizontais, recheados de polígonos.
Esta era sua sina, viver como um esquecido, um insultado. Desde que era pequeno
sentia a aspereza da vida, que para ele nunca sorrira ou demonstrara sentimento.
A vida era como um carcereiro que sempre serve as refeições nos
respectivos horários. Era desta forma, pois ele só vivia enfurnado
em sua humilde casa, alimentando-se e nunca vendo seu corpo crescer, sempre
estudando e tirando boas notas, mas sem ninguém para admirar-se com elas.
Vivia ele e sua mãe na casa, o pai havia desaparecido, mas alguns boatos
diziam que o velho estava vivendo no Paraná, com uma garota atriz de
filme pornô. Vai saber a verdade... Para Felipe, que nunca conhecera verdadeiramente
seu pai, não fazia diferença se era um pervertido.
Felipe lembrava-se, como se fosse naquele momento, de um acontecimento: ele
era pequeno, uns oito ou nove anos, e o pai fora flagrado pela esposa e pelo
filho único com uma mocinha que ele libidinava havia alguns meses. Aquela
cena gravou-se em sua mente e talvez por isso não conseguia comunicar-se
devidamente com as garotas de seu colégio, ou com as meninas de sua vizinhança.
Mas o que importava se a lua estava bela e sublime? O que importava se sua vida
era uma lástima, uma vida seca, como uma árvore que morre sem
poder cultivar seus frutos ou se habituar com os pássaros e as chuvas?
Ele era um ser que vivia com o rosto de abortado, sempre limitado por sua fraca
conduta. Que porcaria de sina!
Com os cadarços devidamente amarrados recomeçou sua caminhada.
Seu corpo jogava-se velozmente em direção das meninas, enquanto
algo lhe dizia interiormente: "Pare, não corra tanto, elas podem
olhar para trás..." Mas ele continuava e não conseguia parar;
foi então que algo maravilhoso aconteceu. A bela moça de cachos
dourados, de maçãs salientes e belo sorriso, olhou calmamente
em direção sua direção, lançando-lhe um sorriso
enternecido, como nunca vira em sua vida; e aquele momento foi inesquecível
para seu coração, que sorria e chorava ao mesmo tempo, admirado
pela estranha coincidência e por ser a primeira vez que aquilo acontecia.
A lua sorria, lisonjeira. Não era mais uma forma redonda que brilhava
no escuro e denso céu, ela sorria e iluminava o coração
pulsante de Felipe, que saltitava em meio à sua felicidade taciturna
de mendigo que recebe um amigo cão, e que ambos sobrevivem em meio a
migalhas e acalantos que são cantados pela lua.
O que estava acontecendo? Seria um sonho bobo? Era só isso... A quem
ele estava enganando? Que bobo ele era, por isso a vida era-lhe tão mal,
como alguém como ele podia receber um sorriso de tão bela mulher?
Ela certamente estava confirmando algum defeito que sua amiga lançara
a seu rosto ou corpo. Que tolo, imaginar por alguns segundos que a bela Fernanda
do terceiro ano estaria a fim de sua pessoa, que tolo... Ela ria de sua deficiência,
de sua estupidez, que estava impressa em seu rosto desde o nascimento.
Felipe observava as meninas melancolicamente, enquanto pegava do chão
novamente seu estojo, que escapara de suas mãos, juntamente com uma lágrima,
que rompera de seu coração.
A lua estava risonha e ria de nosso amigo, gozando-lhe os inúmeros defeitos,
que ele repetia para si próprio de cinco em cinco minutos, como uma oração:
"Eu sou um burro, um fracote, não sei jogar nada, não sei
falar nada, nunca namorei, nunca brinquei com ninguém na rua, serei sempre
um esquecido..." Estas lembranças que cavalgavam ligeiramente em
sua mente foram substituídas por uma surpresa: as meninas dobraram a
rua que se encontraria com sua casa. Que elas fariam em sua rua? Elas nunca
haviam dobrado aquela esquina. O que significava?
Um estremecimento tomou conta do espírito de Felipe, que saiu correndo
em direção da esquina, que o separava de sua morada. Ficou encostado
no muro da esquina, que era de uma casa pintada na cor da moda, salmão;
e que pertencia a um garoto muito metido, que aos quinze anos já dirigia
o carro do pai.
Ficou olhando as meninas, que caminhavam velozmente pela calçada, que
era ligeiramente enegrecida por quebraduras e matos, de acordo com a aproximação
com sua casa. Seu coração saltou-lhe pela boca, quando a bela
garoto do terceiro ano virou-se novamente para trás, para se certificar
que ninguém as acompanhava. Vendo que não havia ninguém,
pois Felipe estava escondido na sombra da esquina, somente com seus olhos à
espreita; tocou ligeiramente o ombro de uma de suas amigas apontou para a casa
de Felipe, que quase deixou soltar um breve grito. Seus olhos não podiam
acreditar no que vislumbravam... Ela retirou uma pequena carta e jogou-a em
sua casa, na pequena área que separava a porta da sala com a calçada.
Logo após este ligeiro ato, desapareceram, dobrando o quarteirão
e caminhando mais abaixo.
Suas mãos procuraram e beliscaram seu braço magro, que logo lançou
a seus sentidos a certeza de que aquilo não era um sonho. Agora tudo
fazia sentido na mente do pobre Felipe. A linda garota sorrira-lhe simplesmente
porque estava gostando dele, e certamente aquela carta era uma declaração,
que provavelmente estava assinalada como uma admiradora secreta. Que felicidade,
que maravilha tudo aquilo.
Seus pés forçaram-se a alcançar rapidamente sua área,
que estava enfeitiçada por aquela tenra carta, que vinha consumada com
o doce perfume que resplandecia de sua admiradora.
As peças começavam a encaixar em seu minúsculo tabuleiro
de quebra-cabeças. Ela adorava desenhar, foi o que ouviu em comentários
na escola e pelo visto ficou sabendo o quanto Felipe sabia desenhar, e apaixonou-se
por seus desenhos, que ficaram semana passada expostos no mural do segundo ano.
Era isso, não tinha outra explicação. Os dois poderiam
desenhar juntos, imaginem só! Os dois pintando juntos com seus lábios
próximos e suas mãos quentes a se apertar... Tudo mágico
e irreal, parecia um sonho.
O coração de Felipe disparou quando reconheceu a pequena carta
em meio à penumbra da área. Sua mãe não deixava
a luz acesa, pois gastaria muita energia à toa.
Com muito cuidado e zelo, abriu o cadeado do pequeno portão e entrou
na área, apanhando instintivamente a carta, com medo de alguém
vê-la e enfiou dentro da calça, apertando-a contra o estômago.
Entrou rapidamente dentro de sua casa e nem acendeu a luz da sala, foi rapidamente
para seu quarto, que ficava atrás da cozinha, quase como um cômodo
fora da casa. Jogando os materiais sobre a cama acendeu a luz e correu para
o quarto da mãe. Ela estava dormindo calmamente, lançando aos
ares seu ronco seco e suave. Naquele momento admirava-a, pois seu coração
cantava hinos à alegria.
Correu novamente para seu quarto, trancou-se rapidamente e retirou a carta.
Cheirou-a e sentiu-se flutuar. O cheiro que provinha daquele pequeno envelope
era a fragrância mais bendita que experimentara em toda sua vida. Era
como o ópio que lança seu perfume e faz delirar as mentes beatificadas
pela sua incrível mistura. Ele delirava e imaginava mil e uma situações
com sua nova - e única - admiradora.
A vontade que realmente percorria os sentidos de Felipe era o da comoção.
Ele queria chorar, queria abraçar a carta e romper em pranto, despejando
toda sua vida de lástima. Mas tudo iria acabar, era tudo uma declaração
e ele diria "sim", com toda sua força.
Suas trêmulas mãos abriram o envelope, que não estava colado,
nem continha nome ou endereço. Retirou a folha que estava repousando
dentro do envelope e levou-a instintivamente ao nariz. Novo deja'vú.
Seu espírito sentiu a força da fragrância jovial da menina
e novamente seu espírito entrou em comoção e glória.
Uma vontade de chorar percorreu seus instintos, pois tamanha era a alegria,
que nenhum homem jamais experimentara.
Que letra linda, toda redonda e miudinha. Belíssimas mãos que
desenhavam semelhantes letras. Nem mesmo os anjos do céu possuíam
tamanha graça.
* * *
O despertador tocou as seis da manhã. Era o horário da mãe
de Felipe ir trabalhar. Entrava no serviço as sete, mas tinha que preparar
seu café e fazer uma ligeira arrumação na casa, pois voltava
muito tarde do árduo serviço de faxineira, que exercia em uma
indústria de tecidos sintéticos.
Ela terminava o café e deliciava-se com mais um gole, quando sentiu que
precisava colocar o despertador para acordar, dali a duas horas, seu filho.
Caminhou até seu quarto e aproveitou para trocar-se. Admirou-se no espelho
por alguns segundos e logo se dirigiu ao quarto do garoto. Abriu sorrateiramente
a porta e colocou o despertador sobre o criado-mudo, que ficava ao lado da cama.
Olhou rapidamente para o filho, que dormia de bruços, todo emaranhado
em suas cobertas. Observou que havia uma carta sobre o pequeno móvel
e sentiu um estremecimento.
Há uns três meses atrás, seu ex-marido mandara uma carta
ao filho, dizendo que estava morando no Piauí e que gostaria que o filho
fosse morar com ele. A mãe de Felipe derramou lágrimas e rasgou
a carta, escondendo do filho a verdade. Para ambos o pai havia sumido e ninguém
tinha pistas do seu paradeiro. Aquela carta poderia ser dele, incentivando seu
filho a largá-la e isto não poderia acontecer, Felipe era sua
única alegria.
Correu para a cozinha e abriu a carta. A letra não era de seu ex-marido,
era certamente de alguma garota. "Que estranho" - pensou a mãe
de Felipe. "Meu filho guardando carta de promessa pra santo?"
A carta que Felipe apanhara noite passada era aquelas do tipo "promessa
para alcançar uma graça", a qual temos que copiar vinte vezes
e jogar em diferentes casas, para alcançar a graça pedida.
Os dedos da mãe de Felipe estranharam, quando entraram em contato com
algo estranho, seco e com cheiro de ferrugem. Era sangue. Havia sangue por todo
o verso da carta, que estava ligeiramente coagulado, formando um desenho disforme
e macabro, o qual parecia contar-lhe uma triste história.
Um estremecimento tomou conta do espírito da pobre mãe, que saiu
correndo em disparada, entrando rapidamente no quarto do filho e acendendo a
luz.
O colégio Dr. Armando Figueiredo não chorou a morte suicida de
um de seus apagados alunos, somente reinou a dúvida de tal feito por
algumas horas, depois recomeçou o cotidiano invejável e ritmado
dos outros alunos.
Somente para uma pessoa a vida mostrava-se sem brilho e com profunda desilusão;
era a mãe de Felipe, que procurava em vão alguma resposta. Para
aliviar-se da dor, escreveu vinte vezes a mesma carta que encontrara no criado-mudo
do filho, pedindo para o santo responder-lhe o porque do filho ter cometido
tal pecado.