A Garganta da Serpente
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A carta

(André Plez)

Passos surdos eram ouvidos no decorrer da calçada, que estava timidamente iluminada por uma lâmpada suspensa num enorme poste de concreto. A sombra do jovem, que divagava obscuramente, seguia-o desde o início da grande descida, que se iniciava a uns noventa passos atrás.

O material escolar, que tombava frequentemente de suas ósseas mãos, teimava em querer comprovar a força gravitacional, pois de minuto a minuto caía um caderno, ou a pequena bolsa com os lápis e canetas. Esta cena fazia Felipe achar-se mais ridículo que de costume, pois ninguém "normal' derrubaria tantas vezes seus pertences escolares.

Felipe olhou para seus pés, que se mostravam enfurnados em um par de tênis velho e fedorento, que era único em sua pequena coleção de calçados. Seus olhos procuraram outra forma humana no vazio da rua e percebeu tristemente que algumas garotas estavam logo atrás de si, e que conversavam baixamente, como se confabulasse algum segredo, o qual Felipe não poderia saber, nem que isto fosse a última coisa a se fazer no Universo. Sua timidez altiva ganhou mais rigidez, pois viu que o laço de seu tênis esquerdo tinha desamarrado. Imagine só, ele abaixando-se para amarrar os cadarços, que ridículo! Certamente as meninas iriam achar que ele estava fingindo, só para ver elas passarem, e possivelmente nunca mais olhariam para seu rosto, ou pior, espalhariam este incidente para toda a escola.

As três meninas, que desciam despreocupadas sobre a extensa rua de casinhas interioranas, nem deram pela presença de um garoto - que para elas era um desconhecido - que estava sentado na calçada amarrando seus cadarços.

Felipe suava convulsamente, mais ainda quando percebeu que uma das meninas, a mais bela, olhou em sua direção e sorriu ligeiramente. O que significava aquele sorriso? Seria um gesto simples de cumprimento, ou ela estaria tirando sarro daquele pobre infeliz? Para Felipe a última afirmação era a mais favorável. Certamente ela já dizia às amigas: "Você viu aquele idiota do Felipe? É, aquele do segundo ano, estava igual um imbecil sentado amarrando os sapatinhos... que coitado, né? Nunca deve ter ficado com ninguém..." Felipe já sabia de tudo, era isso que realmente elas estavam conversando, enquanto desciam a harmoniosa calçada com pequenos detalhes horizontais, recheados de polígonos.

Esta era sua sina, viver como um esquecido, um insultado. Desde que era pequeno sentia a aspereza da vida, que para ele nunca sorrira ou demonstrara sentimento. A vida era como um carcereiro que sempre serve as refeições nos respectivos horários. Era desta forma, pois ele só vivia enfurnado em sua humilde casa, alimentando-se e nunca vendo seu corpo crescer, sempre estudando e tirando boas notas, mas sem ninguém para admirar-se com elas. Vivia ele e sua mãe na casa, o pai havia desaparecido, mas alguns boatos diziam que o velho estava vivendo no Paraná, com uma garota atriz de filme pornô. Vai saber a verdade... Para Felipe, que nunca conhecera verdadeiramente seu pai, não fazia diferença se era um pervertido.

Felipe lembrava-se, como se fosse naquele momento, de um acontecimento: ele era pequeno, uns oito ou nove anos, e o pai fora flagrado pela esposa e pelo filho único com uma mocinha que ele libidinava havia alguns meses. Aquela cena gravou-se em sua mente e talvez por isso não conseguia comunicar-se devidamente com as garotas de seu colégio, ou com as meninas de sua vizinhança.

Mas o que importava se a lua estava bela e sublime? O que importava se sua vida era uma lástima, uma vida seca, como uma árvore que morre sem poder cultivar seus frutos ou se habituar com os pássaros e as chuvas? Ele era um ser que vivia com o rosto de abortado, sempre limitado por sua fraca conduta. Que porcaria de sina!

Com os cadarços devidamente amarrados recomeçou sua caminhada. Seu corpo jogava-se velozmente em direção das meninas, enquanto algo lhe dizia interiormente: "Pare, não corra tanto, elas podem olhar para trás..." Mas ele continuava e não conseguia parar; foi então que algo maravilhoso aconteceu. A bela moça de cachos dourados, de maçãs salientes e belo sorriso, olhou calmamente em direção sua direção, lançando-lhe um sorriso enternecido, como nunca vira em sua vida; e aquele momento foi inesquecível para seu coração, que sorria e chorava ao mesmo tempo, admirado pela estranha coincidência e por ser a primeira vez que aquilo acontecia.

A lua sorria, lisonjeira. Não era mais uma forma redonda que brilhava no escuro e denso céu, ela sorria e iluminava o coração pulsante de Felipe, que saltitava em meio à sua felicidade taciturna de mendigo que recebe um amigo cão, e que ambos sobrevivem em meio a migalhas e acalantos que são cantados pela lua.

O que estava acontecendo? Seria um sonho bobo? Era só isso... A quem ele estava enganando? Que bobo ele era, por isso a vida era-lhe tão mal, como alguém como ele podia receber um sorriso de tão bela mulher? Ela certamente estava confirmando algum defeito que sua amiga lançara a seu rosto ou corpo. Que tolo, imaginar por alguns segundos que a bela Fernanda do terceiro ano estaria a fim de sua pessoa, que tolo... Ela ria de sua deficiência, de sua estupidez, que estava impressa em seu rosto desde o nascimento.

Felipe observava as meninas melancolicamente, enquanto pegava do chão novamente seu estojo, que escapara de suas mãos, juntamente com uma lágrima, que rompera de seu coração.

A lua estava risonha e ria de nosso amigo, gozando-lhe os inúmeros defeitos, que ele repetia para si próprio de cinco em cinco minutos, como uma oração: "Eu sou um burro, um fracote, não sei jogar nada, não sei falar nada, nunca namorei, nunca brinquei com ninguém na rua, serei sempre um esquecido..." Estas lembranças que cavalgavam ligeiramente em sua mente foram substituídas por uma surpresa: as meninas dobraram a rua que se encontraria com sua casa. Que elas fariam em sua rua? Elas nunca haviam dobrado aquela esquina. O que significava?

Um estremecimento tomou conta do espírito de Felipe, que saiu correndo em direção da esquina, que o separava de sua morada. Ficou encostado no muro da esquina, que era de uma casa pintada na cor da moda, salmão; e que pertencia a um garoto muito metido, que aos quinze anos já dirigia o carro do pai.

Ficou olhando as meninas, que caminhavam velozmente pela calçada, que era ligeiramente enegrecida por quebraduras e matos, de acordo com a aproximação com sua casa. Seu coração saltou-lhe pela boca, quando a bela garoto do terceiro ano virou-se novamente para trás, para se certificar que ninguém as acompanhava. Vendo que não havia ninguém, pois Felipe estava escondido na sombra da esquina, somente com seus olhos à espreita; tocou ligeiramente o ombro de uma de suas amigas apontou para a casa de Felipe, que quase deixou soltar um breve grito. Seus olhos não podiam acreditar no que vislumbravam... Ela retirou uma pequena carta e jogou-a em sua casa, na pequena área que separava a porta da sala com a calçada. Logo após este ligeiro ato, desapareceram, dobrando o quarteirão e caminhando mais abaixo.

Suas mãos procuraram e beliscaram seu braço magro, que logo lançou a seus sentidos a certeza de que aquilo não era um sonho. Agora tudo fazia sentido na mente do pobre Felipe. A linda garota sorrira-lhe simplesmente porque estava gostando dele, e certamente aquela carta era uma declaração, que provavelmente estava assinalada como uma admiradora secreta. Que felicidade, que maravilha tudo aquilo.

Seus pés forçaram-se a alcançar rapidamente sua área, que estava enfeitiçada por aquela tenra carta, que vinha consumada com o doce perfume que resplandecia de sua admiradora.

As peças começavam a encaixar em seu minúsculo tabuleiro de quebra-cabeças. Ela adorava desenhar, foi o que ouviu em comentários na escola e pelo visto ficou sabendo o quanto Felipe sabia desenhar, e apaixonou-se por seus desenhos, que ficaram semana passada expostos no mural do segundo ano. Era isso, não tinha outra explicação. Os dois poderiam desenhar juntos, imaginem só! Os dois pintando juntos com seus lábios próximos e suas mãos quentes a se apertar... Tudo mágico e irreal, parecia um sonho.

O coração de Felipe disparou quando reconheceu a pequena carta em meio à penumbra da área. Sua mãe não deixava a luz acesa, pois gastaria muita energia à toa.

Com muito cuidado e zelo, abriu o cadeado do pequeno portão e entrou na área, apanhando instintivamente a carta, com medo de alguém vê-la e enfiou dentro da calça, apertando-a contra o estômago. Entrou rapidamente dentro de sua casa e nem acendeu a luz da sala, foi rapidamente para seu quarto, que ficava atrás da cozinha, quase como um cômodo fora da casa. Jogando os materiais sobre a cama acendeu a luz e correu para o quarto da mãe. Ela estava dormindo calmamente, lançando aos ares seu ronco seco e suave. Naquele momento admirava-a, pois seu coração cantava hinos à alegria.

Correu novamente para seu quarto, trancou-se rapidamente e retirou a carta. Cheirou-a e sentiu-se flutuar. O cheiro que provinha daquele pequeno envelope era a fragrância mais bendita que experimentara em toda sua vida. Era como o ópio que lança seu perfume e faz delirar as mentes beatificadas pela sua incrível mistura. Ele delirava e imaginava mil e uma situações com sua nova - e única - admiradora.

A vontade que realmente percorria os sentidos de Felipe era o da comoção. Ele queria chorar, queria abraçar a carta e romper em pranto, despejando toda sua vida de lástima. Mas tudo iria acabar, era tudo uma declaração e ele diria "sim", com toda sua força.

Suas trêmulas mãos abriram o envelope, que não estava colado, nem continha nome ou endereço. Retirou a folha que estava repousando dentro do envelope e levou-a instintivamente ao nariz. Novo deja'vú. Seu espírito sentiu a força da fragrância jovial da menina e novamente seu espírito entrou em comoção e glória. Uma vontade de chorar percorreu seus instintos, pois tamanha era a alegria, que nenhum homem jamais experimentara.

Que letra linda, toda redonda e miudinha. Belíssimas mãos que desenhavam semelhantes letras. Nem mesmo os anjos do céu possuíam tamanha graça.

* * *

O despertador tocou as seis da manhã. Era o horário da mãe de Felipe ir trabalhar. Entrava no serviço as sete, mas tinha que preparar seu café e fazer uma ligeira arrumação na casa, pois voltava muito tarde do árduo serviço de faxineira, que exercia em uma indústria de tecidos sintéticos.

Ela terminava o café e deliciava-se com mais um gole, quando sentiu que precisava colocar o despertador para acordar, dali a duas horas, seu filho. Caminhou até seu quarto e aproveitou para trocar-se. Admirou-se no espelho por alguns segundos e logo se dirigiu ao quarto do garoto. Abriu sorrateiramente a porta e colocou o despertador sobre o criado-mudo, que ficava ao lado da cama. Olhou rapidamente para o filho, que dormia de bruços, todo emaranhado em suas cobertas. Observou que havia uma carta sobre o pequeno móvel e sentiu um estremecimento.

Há uns três meses atrás, seu ex-marido mandara uma carta ao filho, dizendo que estava morando no Piauí e que gostaria que o filho fosse morar com ele. A mãe de Felipe derramou lágrimas e rasgou a carta, escondendo do filho a verdade. Para ambos o pai havia sumido e ninguém tinha pistas do seu paradeiro. Aquela carta poderia ser dele, incentivando seu filho a largá-la e isto não poderia acontecer, Felipe era sua única alegria.

Correu para a cozinha e abriu a carta. A letra não era de seu ex-marido, era certamente de alguma garota. "Que estranho" - pensou a mãe de Felipe. "Meu filho guardando carta de promessa pra santo?"

A carta que Felipe apanhara noite passada era aquelas do tipo "promessa para alcançar uma graça", a qual temos que copiar vinte vezes e jogar em diferentes casas, para alcançar a graça pedida.

Os dedos da mãe de Felipe estranharam, quando entraram em contato com algo estranho, seco e com cheiro de ferrugem. Era sangue. Havia sangue por todo o verso da carta, que estava ligeiramente coagulado, formando um desenho disforme e macabro, o qual parecia contar-lhe uma triste história.

Um estremecimento tomou conta do espírito da pobre mãe, que saiu correndo em disparada, entrando rapidamente no quarto do filho e acendendo a luz.

O colégio Dr. Armando Figueiredo não chorou a morte suicida de um de seus apagados alunos, somente reinou a dúvida de tal feito por algumas horas, depois recomeçou o cotidiano invejável e ritmado dos outros alunos.

Somente para uma pessoa a vida mostrava-se sem brilho e com profunda desilusão; era a mãe de Felipe, que procurava em vão alguma resposta. Para aliviar-se da dor, escreveu vinte vezes a mesma carta que encontrara no criado-mudo do filho, pedindo para o santo responder-lhe o porque do filho ter cometido tal pecado.

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